ARTIGOS ORIGINAIS
SIDNEY ROBERTO NADAL _ TSBCP
CARMEN RUTH MANZIONE _ TSBCP
SERGIO HENRIQUE COUTO HORTA _ FSBCP
VIVIANNE DE MOURA GALVÃO _ FSBCP
NADAL SR, MANZIONE CR, HORTA SHC, GALVÃO VM. _ Comparação das doenças perianais dos doentes HIV+ antes e depois da introdução dos inibidores da protease. _ Rev bras Coloproct, 2001; 21(1): 5-8.
RESUMO: O HIV (vírus da imunodeficiência humana), ao multiplicar-se, provoca imunodepressão facilitando a que vários agentes etiológicos causem doenças em todos os órgãos e sistemas do organismo humano. O atual esquema tríplice, que utiliza inibidores da transcriptase reversa e da protease, tem se mostrado eficaz na diminuição do número de vírus circulantes (carga viral), propiciando o aumento dos linfócitos T CD4, melhorando a imunidade, com conseqüente controle das doenças associadas. Várias das que acometem a região anorretal também são causadas por agentes oportunistas e, teoricamente, com a utilização desse esquema terapêutico, deveriam ser controladas mais facilmente. O objetivo do nosso estudo é analisar retrospectivamente os prontuários dos portadores de HIV+ encaminhados para primeira consulta no ambulatório de Proctologia, comparando os períodos em que os doentes não recebiam os inibidores da protease e quando essas drogas já estavam disponíveis para uso. Atendemos 449 doentes (383 homens e 66 mulheres) no período de janeiro de 1994 a dezembro de 1995 e comparamos com 451 (353 homens e 98 mulheres) consultados entre janeiro de 1997 a dezembro de 1998. Em números absolutos, diagnosticamos mais fístulas e abscessos no primeiro período e condilomas acuminados perianais no segundo período. A análise estatística dos nossos resultados revelou que o número de doentes HIV+ portadores de condilomas acuminados perianais foi maior no período após a introdução dos inibidores da protease no arsenal terapêutico para a SIDA/AIDS.
UNITERMOS: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, Infecção pelo HIV, Condiloma acuminado, Úlceras perianais, Inibidores da Protease.
INTRODUÇÃO
O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), por
causar diminuição da imunidade, predispõe à instalação
de doenças, muitas vezes consideradas raras, em todos os
segmentos do corpo humano. A região anorretal não é
poupada e acredita-se que 30% desses doentes
apresentarão doenças perianais na evolução da Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (AIDS) (1).
As doenças anorretais incidem mais em
homossexuais masculinos e, com menor freqüência, naqueles que
não praticam sexo anal receptivo (2). Todavia, a evolução
das lesões é semelhante em ambos os grupos(3). Estes
doentes apresentam tanto condições comuns
como hemorróidas, fístulas, fissuras e doenças venéreas que
incluem gonorréia, sífilis, condiloma acuminado e
clamídia (1,2,4,5), quanto achados de maior prevalência entre
os soropositivos, tais como, úlceras por
citomegalovírus (CMV) e herpes simples, candidíase e úlcera
anal idiopática (2,4,6). As neoplasias da região também
são mais freqüentes que na população soronegativa
(2,6,7,8), principalmente o sarcoma de Kaposi, linfomas e
carcinomas espinocelulares, estes últimos associados à
infecção pelo papilomavírus humano (HPV) (7,9,10,11).
Em trabalho recente, comparando as doenças
perianais diagnosticadas em doentes HIV+ e em soronegativos,
observamos maior incidência de condilomas, neoplasias,
úlceras e abscessos entre os doentes HIV+(12), sendo a
úlcera a manifestação mais característica desses
enfermos, uma vez que as demais também ocorreram em
pacientes HIV negativo (12). O condiloma acuminado e a
maioria das úlceras, que são causadas pelo Herpesvirus
simples, têm transmissão sexual. Sua frequência aumentada,
em doentes soropositivos para o HIV, sugere a associação
dessas doenças com imunodepressão. O coquetel de
drogas, que inclui inibidores da transcriptase reversa e da
protease, disponível desde 1996, vem obtendo sucesso na
redução da carga viral, aumentando com isso o número de
linfócitos T CD4 que sugerem o estado imunológico do paciente.
Com objetivo de saber se a melhora imunológica
determinada pelo uso dos novos medicamentos alterou a
incidência das doenças perianais nos doentes HIV+,
decidimos avaliar os diagnósticos feitos em doentes com
sintomas anorretais, encaminhados para primeira
consulta, comparando períodos antes e depois da utilização em
larga escala do coquetel de drogas antiretrovirais.
MÉTODO
Comparamos 449 doentes atendidos no período de
janeiro de 1994 a dezembro de 1995 com 451 outros
avaliados entre janeiro de 1997 e dezembro de 1998.
Todos eram HIV+ com sintomas anorretais encaminhados
para primeira consulta no Ambulatório da Proctologia.
Optamos por esses dois períodos distintos,
excluindo o ano de 1996, porque no biênio 94/95 não havia
disponibilidade das drogas inibidoras da protease, sendo que no
biênio 97/98, praticamente todos os doentes com
contagem de linfócitos T CD4 inferior a 200/mm³, o que
reflete a baixa imunidade, utilizavam esse medicamento.
No Grupo 1 (94/95) havia 383 homens e 66
mulheres e no Grupo 2 encontramos 353 homens e 98 mulheres.
A faixa etária predominante situou-se entre a terceira e
a quarta década da vida. O exame proctológico foi
realizado em todos os casos para confirmação do
diagnóstico, eventualmente acompanhado de biópsias e coleta de
material para cultura.
Os resultados encontrados foram submetidos ao
teste estatístico do Qui-quadrado com níveis de
confiabilidade de 5%.
RESULTADOS
Os condilomas acuminados predominaram em ambas os grupos, seguidos pelas úlceras, hemorróidas e
fístulas perianais (Tabela 1). A análise estatística dos
resultados revelou o aumento da frequência de condilomas
(p=0,00) no segundo período, mas a diminuição dos
abscessos, fístulas perianais e ulceras idiopáticas no grupo 2, não
pode ser confirmada estatisticamente, o que só ocorreu
quando as doenças foram somadas (p=0,005)
A avaliação estatística também mostrou haver
aumento da incidência de mulheres no segundo período (p=0,008)
Tabela 1. Comparação entre os diagnósticos das
doenças perianais de 900 doentes HIV+ examinados em
primeira consulta em duas épocas distintas: antes e após o uso
do coquetel de drogas antiretrovirais. I.I.E.R.1999.
diagnóstico | biênio 94/95 | biênio 97/98 | |
Condilomas | 94 | 143 | p=0,000 |
Úlceras | 81 | 79 | |
Hemorróidas | 88 | 72 | p=0,269 |
Fístulas | 68 | 51 | p=0,109 |
Fissuras | 43 | 38 | |
Abscessos | 23 | 11 | p=0,053 |
Tumores | 07 | 06 | |
UICA | 08 | 04 | p=0,379 |
Outros | 58 | 100 | |
TOTAL | 449 | 451 | |
UICA: Úlcera Idiopática do Canal Anal |
DISCUSSÃO
A AIDS é uma doença causada por retrovírus. Os
vírus são microorganismos que necessitam entrar no
núcleo da célula para conseguir se reproduzir. O vírus, para
multiplicar-se, utiliza parte do código genético do
hospedeiro, durante a divisão celular, provocando sua destruição.
Nos pacientes HIV+, as células de defesa do
organismo, chamadas de linfócitos T CD4, tais como
soldados, são enviadas para destruir os vírus. Essa atividade de
defesa acaba por diminuir o número dessas células,
determinando queda da imunidade, facilitando o
aparecimento das doenças oportunistas.
Para tratar a AIDS, existem atualmente dois tipos
de medicação: os inibidores da transcriptase reversa,
também chamados de anti-retrovirais, que retardam a
multiplicação dos retrovírus e os inibidores da protease,
que não deixam os vírus entrar na célula. Os
anti-retrovirais foram os primeiros a ser utilizados e o mais antigo é
a ZIDOVUDINA (AZT), mas pode causar anemia e mielossupressão, o que reduz a produção dos linfócitos
T CD4, piorando a imunidade(13). A segunda droga a
ser usada foi a DIDANOSINA (DDI), que pode
provocar pancreatite, hepatite, diarréia, convulsões e
neuropatia periférica(13). Além dessas, temos ainda
a ZALCITABINA (DDC) pode complicar com
pancreatite, problemas cardíacos, diarréia e neuropatia e
a ESTAVUDINA (d4T), que pode ocasionar neuropatia
periférica(13). O controle do tratamento é feito com a
contagem dos linfócitos T CD4 (13).
Os inibidores da protease são medicações mais
recentes e que foram lançadas no mercado em 1996. Ao
impedir que o vírus entre na célula, evitam sua
multiplicação, provocando diminuição do número de vírus
circulantes. Com isso, os linfócitos T CD4 tendem a aumentar
em número, melhorando a imunidade, não permitindo que
as infeções oportunistas apareçam. São elas:
o SAQUINAVIR, que pode provocar diarréia, o INDINAVIR, que pode causar cálculo renal e
problemas no fígado e o RITONAVIR, que pode complicar com
náuseas e diarréia e hepatopatia(13). O controle
da efetividade é feito com a contagem dos vírus
(contagem viral) e dos linfócitos T CD4 (13).
O esquema atual para tratamento da AIDS é
composto por três drogas, daí ser chamado de esquema triplo
ou tríplice, ou simplesmente coquetel. O mais usado é o
AZT + DDI + SAQUINAVIR(14). Deve ser introduzido se
o número de linfócitos T CD4 for inferior a 500/mm³.
Os remédios são trocados conforme os efeitos colaterais e
a sua efetividade. Para controle da efetividade do
esquema são realizados exames de contagem viral e de linfócitos
a cada três meses(14). Espera-se com a introdução do
coquetel que o número de linfócitos circulantes aumente
em decorrência da diminuição da carga viral.
Agentes etiológicos como o papilomavirus humano
(HPV), causador dos condilomas; o Herpesvírus, o
Citomegalovírus (CMV) e a Candida albicans, que provoca a monilíase,
são todos relacionados a doenças que surgem em decorrência
de depressão imunológica. Daí se esperar a queda na
incidência destas doenças. Apesar da melhora da imunidade dos
nossos doentes não observamos diminuição da incidência de
afecções perianais. Ao contrário do esperado, aumentou o número
de doentes com condilomas acuminados. Talvez, o
aparecimento dessas doenças na região perianal não seja apenas
relacionado à imunidade sistêmica, mas também à imunidade local.
Não encontramos na literatura revista qualquer menção a esse
aspecto, nem casuística comparando as doenças perianais
nos doentes HIV+ antes e depois da introdução dos inibidores
da protease no arsenal terapêutico para a AIDS. Também
observamos o aumento do número de mulheres atendidas, o
que coincidiu com o crescimento de soropositividade para HIV
no sexo feminino. O número de fístulas, de abscessos e de
úlceras idiopáticas, embora tenha sido menor no segundo período,
não mostrou diferença estatisticamente significante. Todavia,
quando somados revelaram que a incidência de sepse perianal
foi menor no segundo grupo, indicando que a melhora da
imunidade sistêmica inibe o aparecimento dessas doenças.
Com base nos resultados obtidos nas condições de
realização do presente estudo concluímos que a incidência
de condilomas perianais nos doentes HIV+ aumentou e os
quadros sépticos diminuíram no período após a introdução
dos inibidores da protease no arsenal terapêutico para a AIDS.
SUMMARY: The human immunodeficiency virus (HIV) provokes immunosuppression that causes diseases in all parts of the body. Nowadays, the triple scheme of drugs, composed with reverse transcriptase inhibitor and protease inhibitor, is effectual. It makes a decrease in the number of viruses (viral load) and an increase in the number of CD4+ lymphocytes, improving immunity and controlling associated diseases. Some anal diseases are also caused by opportunist agents and, using this anti-viral drugs, they must be controlled easier. The aim of this study was to analyze HIV+ patients referred to Proctology, comparing two different periods: when patients did not receive protease inhibitors and when these drugs were available to use. We have attended 449 patients (383 males and 66 females) from 94 January to 95 December and compared with 451 patients (353 males and 98 females) examined from 97 January to 98 December. In numbers, we have diagnosed more fistulas and abscesses in the first period and condylomata acuminata in the second period. Statistics showed that condylomata acuminata increased and anal sepsis decreased after protease inhibitors therapy to treat HIV+ patients.
KEY WORDS: AIDS, HIV infection, Condylomata acuminata, Anal ulcers, Protease inhibitors.
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Endereço para correspondência:
Dr. Sidney Roberto Nadal
Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 381 / apto. 23
05415-030 - São Paulo - SP
E-mail: nadal@mandic.com.br
*Equipe Técnica de Proctologia do Instituto de Infectologia Emílio Ribas _ São Paulo.