IN MEMORIAM


DAHER ELIAS CUTAIT
"A LEMBRANÇA É UMA FORMA DE ENCONTRO"

José hypólito da Silva - RSBCP
José Alfredo dos Reis Neto - TSBCP


1960!

"Inauguramos hoje o I Congresso Latino-Americano, II Internacional e X Brasileiro de Proctologia. Seja-nos permitido............"

Com estas palavras Daher E. Cutait modificava o curso da especialidade no Brasil. Não mudava os limites da especialidade, mudava o Brasil e o mundo para a especialidade, até então limitada a um pequeno (e notável) número de especialistas, porém sem um reconhecimento internacional. Até então o Brasil era apenas mais um país no universo médico mundial. A partir deste Congresso o mundo veio a conhecer a importância da Proctologia Brasileira, nosso avanço na especialidade, a apurada técnica de nossos cirurgiões e, acima de tudo, trouxe um incentivo para todos aqueles que se iniciavam na especialidade.
    Muitos, como eu, foram influenciados por esta figura dinâmica e que se colocava par a par em discussões e conversas com "monstros" do cenário mundial.
    Stelzner, Hughes, Bacon, Ferguson, Ravitch, Swenson, Turell, Turnbull, Brooke, Morson, Todd, Truelove, Bensaude, Ehrenpreis, Samenius, Stefanini e tantos outros mais que a memória não se acorda!
    Era eletrizante para um recém-graduado poder estar perto de todas estas figuras. O que mais nos impressionava, no entanto, era o respeito por todos demonstrado para com a figura eletrizante de Daher Cutait. Em todos os cantos, em todas as reuniões, em todas as discussões, em todos os momentos se podia ver e sentir sua presença.
    Foi o que me levou a especialidade!
    Anos mais tarde Todd me dizia do respeito e admiração dos ingleses para com a especialidade no Brasil. Esperavam ensinar e foram ensinados.
    Que admiração ao conhecer a técnica de Cutait para o tratamento do megacolo adquirido. Que espanto ao ouvir sobre a endo-anal de Simonsen.
    Como é que esses brasileiros operam!
    Aquele foi um ano de transformação da especialidade. Em 40 anos nos transformamos na segunda maior Sociedade da especialidade do mundo, com colegas reconhecidos em todos os cantos do mundo.
    Este momento trazido por Daher Cutait para nossa Sociedade foi apenas uma de suas inúmeras realizações.
    Dez anos após voltava a brilhar a figura de Daher ao trazer para o Brasil o III Congresso da International Society of University Colon and Rectal Surgeons. Novamente o Brasil era sede de um evento dos maiores especialistas do mundo sob a batuta desse notável maestro Daher Cutait. Já então o Brasil representava o alicerce da Proctologia Sul-americana.
    Mas sua atividade e denodo não pararam por ai.
    Em 1982 era Daher eleito para trazer ao Brasil o 30 Congresso Mundial de coloproctologia. Em 1986 realizava-se em São Paulo um maravilhoso congresso, não só do ponto de vista científico mas também financeiro. Desta vez tive o orgulho de trabalhar ao seu lado. Aliás, foi uma equipe impressionante: Angelita, Manzione, José Hipólito, Simonsen e muitos outros. Lembro-me de alguns fatos importantes desse evento. Em 1983, como Presidente da Sociedade Brasileira de Proctologia e incentivado por Daher coloquei a Sociedade como parceira da Federação Brasileira de Gastroenterologia e da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva como patrocinadoras do futuro Congresso Mundial. Deveríamos arcar com 20% das despesas, o que correspondia na época a 4.000 cruzeiros (uma quantia que gerou muita polêmica por ocasião da assembléia da Sociedade). Ao termino do Congresso retornava aos cofres de nossa Sociedade uma quantia aproximada de 250.000 dólares. Novamente uma mudança em nossa Sociedade. A partir desta data adquirimos nossa liberdade, nossa sede própria, nosso orgulho de independência.
    Duas mudanças radicais de nossa Sociedade ocasionada por esta figura ímpar: em 1960 nosso reconhecimento científico e em 1986 nosso "status" de independência.
    Porém, Daher Elias Cutait não foi apenas um baluarte de nossa Sociedade. Ele foi um exemplo. Nos 40 anos que freqüento a Sociedade jamais deixei de admira-lo como exemplo. Primeira fila em todas as sessões. Jamais dormia. Sempre atento e observador. Comentador sagaz e analista probo.
    Recordo em 1963, quando no Congresso Brasileiro de São Paulo, fui por ele interpelado: ....."menino, essa sua técnica é interessante. Porém, necessita maior estudo. Continue que quero ver os resultados......." Comentava Daher, na ocasião, sobre a técnica de Duhamel que eu recém apresentava os resultados de 4 pacientes operados e na empolgação da juventude dizia das maravilhas dos resultados.
    Desde essa ocasião sempre me chamava afetuosamente "menino". Em 1966 ele me deu uma grande lição: ao apresentar meus resultados da operação em Porto Alegre, ele, carinhosamente me chamou de lado e comentou "menino, aquele diapositivo do Netter é muito bonito, porém, aquelas terminações nervosas são muito difíceis de serem vistas na cirurgia. Pense nisso..." Nunca mais coloquei desenhos de anatomia em minhas apresentações.
    Tive a grande oportunidade de contar com Daher em minhas duas teses. Em 1967 ( em minha tese de Doutorado sobre a operação de Duhamel) ele me chamou em sua casa e disse: "menino, sua tese é como uma grande e bonita casa, porém desarrumada. Reescreva". Assim o fiz, com a ajuda incondicional dele.
    A partir de 1974 (com minha Livre-Docência) Daher passou a me chamar afetuosamente de "professor", porém somente em nossas conversas privadas. Aliás, por essa ocasião passei intermináveis semanas em sua casa, aproveitando de sua amizade e de seus conhecimentos. Da ternura da Ivone. E das balinhas ao fim das refeições.
    Por ocasião da tese desfrutei outra de suas grandes demonstrações. Escolhi como cirurgia realizar uma promonto-fixação para cura de um prolapso retal. Ao fim da cirurgia, seu comentário particular: "menino, que prazer em estar vendo sua cirurgia" Isto dito com profundo sentimento de ternura. Aliás foi a última ocasião em que ele me chamou de menino.
    Daher Elias Cutait foi um mestre. Ensinava e vibrava com os alunos.
    Um grande cirurgião. Operava e sofria com os pacientes.
    Um cientista. Imaginava e realizava seus sonhos.
    Um amigo. Em qualquer hora e a todo momento.
    Citar os seus trabalhos e a sua colaboração para o crescimento da cirurgia colorretal no Brasil levaria páginas e páginas e alguns meses.
    Foram tantas as oportunidades de participação, de aprendizado e de convivência que sempre me senti envolvido por sua personalidade.
    Quero citar alguns acontecimentos que podem muito bem avaliar como sua amizade me foi cara e como nem sempre somente os laços da ciência foram predominantes em nosso relacionamento.
    Há dois anos necessitei passar por um tratamento específico, uma cirurgia delicada. Durante minha curta permanência no hospital ele esteve ao meu lado, com seu suporte e seu carisma, com um grande apoio para que eu pudesse superar mais esse passo em minha vida. Em todos os lugares do hospital havia a recomendação: este é o amigo do Dr. Daher.
    Durante a realização do último Congresso Brasileiro de Coloproctologia, ano passado, fui agraciado com seu livro. Uma epopéia de vida vivida e apreciada. Sentado em uma mesa junto à secretaria do Congresso, ele ali permanecia por horas, assinando e distribuindo sorrisos. Por várias vezes dava uma escapadinha e ia observar as salas. Era impossível deixar de participar!
    Desfrutei de sua amizade, de seus comentários, de suas observações, de suas ponderações, de sua integridade e de sua sabedoria por 40 anos. Da amizade e da ternura de sua esposa, de estarmos juntos nos locais mais distintos do mundo, de participarmos de Congressos, de trocarmos idéias, de jantarmos e das permanentes balinhas de sobremesa.
    Dele recebi experiência e através dela adquiri maturidade profissional.
    Infelizmente não pude estar a seu lado quando morreu! Porém, senti a mesma emoção da perda de um ente querido: de um pai em meu trabalho e em minha carreira.
    Ao Daher meu eterno pranto.


José Alfredo dos Reis Neto


 

O Professor Daher E. Cutait nasceu em São Paulo em 28 de setembro de 1913, filho de Elias Cutait e de Eugenie Zoroub. Formou-se em 1939 na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Durante a vida acadêmica, realizou estágios em várias enfermarias da Santa Casa da Misericórdia de São Paulo. Como médico, desde cedo direcionou sua atenção à cirurgia do aparelho digestivo e encontrou, na pessoa do Professor Benedito Montenegro, o paradigma maior que sempre procurou seguir, tomando-o como exemplo pela sua postura ética e profissional. No início de 1942 embarcou para a América onde permaneceu como bolsista até abril de 1943. Lá teve oportunidade de trabalhar em Nova York, na Universidade de Colúmbia, com o famoso dr. Whipple e em Ann Harbor - Michigan com o Dr. Coller. De volta ao Brasil, iniciou suas atividades na Santa Casa sob a chefia do Professor Montenegro. Com a inauguração do Hospital das Clínicas em 1944, o serviço universitário passou a ser exercido nesse nosocômio. Começou suas atividades no Pronto Socorro, onde realizou a primeira operação dessa Instituição, aí permanecendo até 1955. Na enfermaria do HC, chefiou o grupo de proctologia desde 1947 até sua aposentadoria em 1983. Teve destacada participação no ensino da especialidade que abraçou, exercendo-a continuamente, transmitindo todo seu saber aos alunos do curso curricular, aos residentes, em cursos assistencial foi exercido nos ambulatórios, nas enfermarias e no Pronto Socorro; nesses locais sempre foi figura querida, pelas maneiras gentil e competente com que tratava os doentes, paternal e cavalheiresca os discípulos, distinta e respeitosa os funcionários. O interesse pela pesquisa foi traduzido por inúmeras comunicações, artigos em revistas e livros e trabalhos de divulgação. Conquistou muitos prêmios científicos. Fez várias viagens de estudo ao exterior. Defendeu tese de Docência em 1953 sobre o tema "Tratamento do megassigma pela retossigmoidectomia", tendo sido aprovado com distinção. Publicou três livros e editou vários filmes científicos. Na vida associativa, desempenhou com destaque inúmeras atividades, sobressaindo as presidências da Sociedade Brasileira de Coloproctologia em dois mandatos, da Associação Latino-Americana de Coloproctologia (ALACP), da Federação das Entidades Latino-Americanas de Cirurgia (FELAC), da "International Society University of Colon and Rectal Surgeons" (ISUCRS), do capítulo de São Paulo do "American College of Surgeons", do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. Participou e presidiu vários congressos médicos, nacionais e internacionais, destacando-se o Congresso mundial de Coloproctologia realizado em São Paulo em 1986. Foi membro correspondente de muitas Sociedades Médicas. Recebeu dezenas de homenagens, mas aquelas que mais o sensibilizaram foram o diploma e a medalha "Arnaldo Vieira de Carvalho", outorgados pela Faculdade de Medicina da USP e o título de "Honorary Fellow" pelo "Royal College of Surgeons of England".
    Sua profícua vida acadêmica, onde foi exemplo de dedicação à Instituição, de amizade aos colegas, de interesse pelos doentes, encontrou paralelo no amor que dedicou aos seus familiares. Pude testemunhar com admiração o relacionamento respeitoso e venerando que dedicava à sua espôsa e, aos filhos, sempre demonstrando tolerância e incentivo.
    Dr. Daher continuará vivo na memória dos que o conheceram. Sua figura imponente, caráter impoluto e o sorriso amigo e cativante a todos contagiava. Ao seu redor circulavam os jovens e os velhos, cada um sorvendo o ensinamento e a sabedoria das suas palavras.
    Como discípulo, reverencio o mestre com gratidão imorredoura. Como homem, a grandeza do ser humano no trato com o semelhante. Como médico, o cirurgião.
    Faleceu em São Paulo em 6 de junho de 2001, aos 87 anos de idade.

José Hyppolito da Silva