RELATO DE CASO
PAULO GUSTAVO KOTZE - FSBCP
FERNANDO VARGAS BUENO - ASBCP
ALEXANDRE VIANNA SOARES
MARCOS DE ABREU BONARDI
CHARLES RONALD VAN SANTEN
MARCUS TRIPPIA
ANTONIO BALDIN JUNIOR - ASBCP
MARIA CRISTINA SARTOR - TSBCP
RENATO ARAÚJO BONARDI - TSBCP
RESUMO: Abscesso intra-abdominal é complicação comum em pacientes portadores de doença de Crohn. Todavia, a associação
entre abscesso hepático e doença inflamatória intestinal é rara.
O objetivo do presente estudo é relatar o caso de um paciente de 40 anos, portador de doença de Crohn perianal e colônica
em tratamento há 7 anos , que desenvolveu em um surto de agudização da doença inflamatória intestinal um abscesso hepático. O
paciente encontrava-se em tratamento com imunossupressor (azatioprina) antes do diagnóstico do abscesso, porém não vinha fazendo uso
correto da medicação apesar das orientações médicas. A tomografia demonstrou lesão heterogênea, expansiva, de 18,5x 13,5x 16,5 cm
no lobo direito do fígado, sugestiva de abscesso hepático. Procedeu-se então à drenagem percutânea da lesão, guiada por
ultrassonografia, com colocação de cateter de demora, associada a antibioticoterapia prolongada. O paciente apresentou melhora importante do
seu quadro clínico, com redução significativa do tamanho da lesão nos exames de imagem de controle após 4 semanas.
Salienta-se que os pacientes portadores de doença de Crohn com queixas álgicas no hipocôndrio direito e febre de
origem indeterminada devem ser submetidos a exames de imagem. Deve-se ainda incluir o abscesso hepático no diagnóstico diferencial
das causas da complicação.
O diagnóstico diferencial com reagudização da doença inflamatória intestinal é difícil, e a suspeita do desenvolvimento de
abscesso hepático deve ser aventada. O tratamento de escolha, nos pacientes com abscesso único, deve ser a drenagem percutânea
associada ao uso de antibióticos. A laparotomia, indicada por princípio, não traz maiores vantagens, aumentando a morbidade conferida
pela doença e pelo procedimento.
UNITERMOS: abscesso hepático, doença de Crohn, drenagem percutânea
INTRODUÇÃO
Os abscessos intra-abdominais constituem
complicação freqüente em portadores de doença de Crohn,
ocorrendo em aproximadamente 20% dos casos (2). Dentre eles,
o abscesso hepático constitui uma complicação rara nos
portadores de doença inflamatória intestinal, com poucos
casos descritos na literatura.
Este estudo tem, por objetivo, relatar o caso de
um paciente, portador de doença de Crohn, que
desenvolveu um abscesso no lobo hepático direito durante uma fase
de reagudização. Além da forma de apresentação clínica,
são discutidos o tratamento e a evolução.
RELATO DO CASO
M.G.S., 44 anos, com diagnóstico de doença de
Crohn perianal e colônica em 1993. Foi submetido a
ileostomia em alça para derivação do trânsito intestinal em 1994,
cerca de 1 ano após o diagnóstico, devido às
complicações perianais. Em tratamento com imunossupressor
(azatioprina 100 mg/dia por 2 anos) com uso incorreto apesar das
orientações médicas desde 1998.
O paciente deu entrada na Unidade de
Coloproctologia em maio de 2000 com queixa de astenia, diarréia
muco-sanguinolenta, febre e dor abdominal difusa nos últimos
30 dias. Ao exame clínico, apresentava-se em mau estado
geral, hipocorado, taquicárdico (FC=108), hipotenso
(PA=90/60) e febril (T=37,9OC). Havia saída de grande
quantidade de secreção muco-sanguinolenta pela ileostomia em
alça. O abdome era flácido, com dor difusa à palpação,
sem sinais de irritação peritoneal. No exame proctológico
observou-se grande edema no períneo, com múltiplos
trajetos fistulosos, dos quais drenava pequena quantidade
de secreção purulenta. O toque retal demonstrou
deformidade do canal anal, com estenose da ampola retal.
Foi iniciado tratamento suportivo para a
agudização de doença de Crohn, com reposição
volêmica, hidrocortisona 100 mg EV 6/6 horas e metronidazol
500 mg EV 8/8 horas.
O paciente foi submetido a colonoscopia, sendo
evidenciada mucosa com edema, hiperemia e friabilidade,
sem ulcerações. O exame progrediu até a 30cm acima da
borda anal. A partir deste nível, havia diminuição do calibre
do cólon sigmóide e abundante secreção
sero-sanguinolenta, impedindo um estudo adequado. O enema opaco
mostrou as características do acometimento colônico. (figura 1)
Figura 1: Enema opaco. |
Após 2 dias do internamento, o paciente iniciou
com dor de forte intensidade na transição tóraco-abdominal
direita, principalmente à mudança de decúbito. Foi
submetido a ultra-sonografia abdominal, onde evidenciou-se
processo expansivo heterogêneo, localizado no lobo
hepático direito, com 18,5 cm no seu maior diâmetro. A
tomografia do abdome confirmou os achados ecográficos que
sugeriam abscesso hepático. (figura 2)
Figura 2: Tomografia computadorizada demonstrando abscesso hepático. |
O paciente foi, então, submetido à drenagem da
coleção guiada por ultra-sonografia. Houve saída imediata
de cerca de 500 ml de secreção purulenta. Foi instalado
um cateter na loja para manutenção da drenagem, sendo
iniciado ceftriaxona de maneira empírica. O resultado da
cultura do material purulento, após 10 dias, mostrou
desenvolvimento de E. coli. sensível a amicacina, gentamicina
e sulfametoxazol e trimetoprim. Após esse período de
drenagem, suspendeu-se a ceftriaxona e iniciou-se
amicacina EV, evoluindo com melhora clínica importante. Novos
exames de imagem confirmaram a diminuição da coleção.
O cateter de demora foi retirado após 13 dias do início
da drenagem. O paciente recebeu alta hospitalar com
sulfametoxazol e trimetoprim por mais 7 dias, totalizando 4
semanas de antibioticoterapia.
Após este período, o paciente estava assintomático.
Os exames de imagem de controle demonstraram redução
significativa do tamanho da loja drenada. (figura 3).
Atualmente, encontra-se em acompanhamento ambulatorial
e com indicação cirúrgica de proctocolectomia, porém,
recusou o tratamento proposto.
Figura 3: Tomografia computadorizada demonstrando redução do tamanho do abscesso após a drenagem percutânea. |
DISCUSSÃO
A associação entre doença de Crohn e abscesso
hepático, apesar de bem documentada, é rara. Foram
descritos cerca de 36 pacientes na literatura até 2000, a maioria
como relatos de casos. Sabe-se que portadores de doença
de Crohn possuem maior predisposição ao
desenvolvimento de abscessos hepáticos do que a população geral
(2,6). Entretanto, devido à baixa incidência, torna-se difícil
fazer estimativas epidemiológicas.
Os pacientes do sexo masculino constituem a
maioria nos casos estudados. (2,3,6). A idade média, por
ocasião do diagnóstico, é de cerca de 36 anos, ligeiramente
menor do que a considerada para os abscessos hepáticos
piogênicos que ocorrem na população geral, de até 54 anos.(6)
Greenstein e colaboradores (2), num estudo de 6
casos, salientam a importância de 4 mecanismos básicos de
associação entre doença de Crohn e abscesso hepático:
1. Extensão direta de abscessos intra-abdominais,
mesentéricos ou subfrênicos para o parênquima hepático;
2. Contaminação, via hematogênica, através da veia
porta, proveniente de outros focos abdominais de infecção;
3. Indiretamente, provenientes de complicações da
doença de Crohn, como colelitíase com abscesso peri-vesicular
ou coledocolitíase com colangite ascendente;
4. Abscesso secundário em carcinomas metastáticos do
fígado.
Não há descrições de abscessos hepáticos em
pacientes portadores de retocolite ulcerativa idiopática. Talvez
este fato se deva pela fisiopatologia da doença, na qual não
há relatos de abscessos intra-abdominais persistentes e
duradouros nesses pacientes.(2)
Condições como: pileflebite; corticoterapia; uso
de imunossupressores por tempo prolongado e
desnutrição podem estar relacionados, facilitando o
desenvolvimento dos abscessos hepáticos em pacientes com doença de
Crohn (2,3,4,6). Entretanto, tais dados não são observados
na maioria dos estudos revisados.
O diagnóstico de abscesso hepático nesses
pacientes geralmente é tardio e difícil de ser realizado. Talvez
isso ocorra pelo fato de que a maioria dos sinais e
sintomas pode ser atribuída à doença inflamatória intestinal por
si só (6). A dor abdominal no hipocôndrio direito, febre
e leucocitose, com desvio à esquerda, são os principais
sinais, conforme observado no caso descrito. Deve ser
dada importância ao aumento da fosfatase alcalina sérica.(6)
Exames de imagem como a ultra-sonografia e a tomografia abdominal orientam o diagnóstico do
abscesso hepático, e devem ser solicitados nos pacientes com
as características acima citadas. (2,6)
O tratamento de eleição atual para os abscessos
hepáticos baseia-se na associação de antibioticoterapia e
drenagem percutânea, guiada por exames de imagem
(2,5,6). Tal método mostrou-se eficaz e seguro na maioria dos
casos em que foi indicado, como ocorreu no caso descrito.
A antibioticoterapia deve ser baseada em
antibiogramas, extendendo-se até um período de 4 semanas (6).
A laparotomia deve ser reservada para os casos de
abscessos múltiplos ou abscessos com longo período de
evolução; ausência de melhora clínica após
drenagem percutânea; e casos em que haja indicação cirúrgica
por complicações intestinais da doença de Crohn, como
abscessos, perfurações e oclusão intestinal (2,6).
O germe mais comumente isolado na cultura da secreção dos abscessos é o
Streptococcus (6), diferente deste caso relatado, cujo germe foi a
Escherichia coli. Todavia, há uma vasta gama de bactérias isoladas
relatadas na literatura. Há descrições, inclusive, de
abscessos estéreis (1).
CONCLUSÕES
Os pacientes portadores de doença de Crohn com
queixas álgicas no hipocôndrio direito e febre de
origem indeterminada devem ser submetidos a exames de
imagem. Deve-se ainda incluir o abscesso hepático no
diagnóstico diferencial das causas da complicação.
O diagnóstico diferencial com reagudização da
doença inflamatória intestinal é difícil.A suspeita do
desenvolvimento de abscesso hepático deve ser aventada.
O tratamento de escolha, nos pacientes com
abscesso único, deve ser a drenagem percutânea e o uso de
antibióticos. A laparotomia, indicada por princípio, não traz
maiores vantagens, aumentando a morbidade conferida
pela doença e pelo procedimento.
SUMMARY: Intra-abdominal abscesses are common complications in patients with Crohn´s disease. However, the association
between liver abscesses and inflammatory bowel disease is rare.
This is a case report of a 40-year old male, who has been treated for Crohn´s disease in the last 7 years, and developed a liver
abscess. The patient was on azathioprine, 100 mg per day, irregularly, for the last two years. CT scan revealed an expansive large lesion in
the right lobe of the liver, suggestive of an abscess. Percutaneous drainage of the abscess was performed, with introduction of a
long-lasting catheter and systemic antibiotics.
Patients with Crohn´s disease with fever and right upper quadrant pain must be investigated with image methods. Liver abscess must
be included in the diferential diagnosis. Patients with single abscess must be treated by percutaneous drainage and antibiotic
therapy. Laparotomy is reserved to the cases of multiple abscesses, other intra-abdominal abscesses or when there is no response to
the percutaneous drainage.
KEY-WORDS: liver abscess, Crohn´s disease, percutaneous drainage.
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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:
Paulo Gustavo Kotze
R. Pres. Taunay, 1200 _ ap.1502
Curitiba _ PR
CEP: 80430-000
e-mail: pakotze@cell.com.br
Trabalho realizado na Unidade de Colo-proctologia do Serviço de Cirurgia Geral do Hospital de Clínicas da UFPR _ Curitiba _ PR