RELATO DE CASO


ABSCESSO HEPÁTICO COMO COMPLICAÇÃO NA DOENÇA DE CROHN: RELATO DE CASO

PAULO GUSTAVO KOTZE - FSBCP
FERNANDO VARGAS BUENO - ASBCP
ALEXANDRE VIANNA SOARES
MARCOS DE ABREU BONARDI
CHARLES RONALD VAN SANTEN
MARCUS TRIPPIA
ANTONIO BALDIN JUNIOR - ASBCP
MARIA CRISTINA SARTOR - TSBCP
RENATO ARAÚJO BONARDI - TSBCP


KOTZE PG, BUENO FV, SOARES AV, BONARDI MA, VAN SANTEN CR, TRIPPIA M, BALDIN JUNIOR A, SARTOR MC, BONARDI RA - Abscesso Hepático como complicação na doença de crohn: Relato de caso. - Rev bras Coloproct, 2001; 21(2): 88-91.

RESUMO: Abscesso intra-abdominal é complicação comum em pacientes portadores de doença de Crohn. Todavia, a associação entre abscesso hepático e doença inflamatória intestinal é rara.
   
O objetivo do presente estudo é relatar o caso de um paciente de 40 anos, portador de doença de Crohn perianal e colônica em tratamento há 7 anos , que desenvolveu em um surto de agudização da doença inflamatória intestinal um abscesso hepático. O paciente encontrava-se em tratamento com imunossupressor (azatioprina) antes do diagnóstico do abscesso, porém não vinha fazendo uso correto da medicação apesar das orientações médicas. A tomografia demonstrou lesão heterogênea, expansiva, de 18,5x 13,5x 16,5 cm no lobo direito do fígado, sugestiva de abscesso hepático. Procedeu-se então à drenagem percutânea da lesão, guiada por ultrassonografia, com colocação de cateter de demora, associada a antibioticoterapia prolongada. O paciente apresentou melhora importante do seu quadro clínico, com redução significativa do tamanho da lesão nos exames de imagem de controle após 4 semanas.
   
Salienta-se que os pacientes portadores de doença de Crohn com queixas álgicas no hipocôndrio direito e febre de origem indeterminada devem ser submetidos a exames de imagem. Deve-se ainda incluir o abscesso hepático no diagnóstico diferencial das causas da complicação.
   
O diagnóstico diferencial com reagudização da doença inflamatória intestinal é difícil, e a suspeita do desenvolvimento de abscesso hepático deve ser aventada. O tratamento de escolha, nos pacientes com abscesso único, deve ser a drenagem percutânea associada ao uso de antibióticos. A laparotomia, indicada por princípio, não traz maiores vantagens, aumentando a morbidade conferida pela doença e pelo procedimento.

UNITERMOS: abscesso hepático, doença de Crohn, drenagem percutânea

INTRODUÇÃO
Os abscessos intra-abdominais constituem complicação freqüente em portadores de doença de Crohn, ocorrendo em aproximadamente 20% dos casos (2). Dentre eles, o abscesso hepático constitui uma complicação rara nos portadores de doença inflamatória intestinal, com poucos casos descritos na literatura.
    Este estudo tem, por objetivo, relatar o caso de um paciente, portador de doença de Crohn, que desenvolveu um abscesso no lobo hepático direito durante uma fase de reagudização. Além da forma de apresentação clínica, são discutidos o tratamento e a evolução.

RELATO DO CASO
M.G.S., 44 anos, com diagnóstico de doença de Crohn perianal e colônica em 1993. Foi submetido a ileostomia em alça para derivação do trânsito intestinal em 1994, cerca de 1 ano após o diagnóstico, devido às complicações perianais. Em tratamento com imunossupressor (azatioprina 100 mg/dia por 2 anos) com uso incorreto apesar das orientações médicas desde 1998.
    O paciente deu entrada na Unidade de Coloproctologia em maio de 2000 com queixa de astenia, diarréia muco-sanguinolenta, febre e dor abdominal difusa nos últimos 30 dias. Ao exame clínico, apresentava-se em mau estado geral, hipocorado, taquicárdico (FC=108), hipotenso (PA=90/60) e febril (T=37,9OC). Havia saída de grande quantidade de secreção muco-sanguinolenta pela ileostomia em alça. O abdome era flácido, com dor difusa à palpação, sem sinais de irritação peritoneal. No exame proctológico observou-se grande edema no períneo, com múltiplos trajetos fistulosos, dos quais drenava pequena quantidade de secreção purulenta. O toque retal demonstrou deformidade do canal anal, com estenose da ampola retal.
    Foi iniciado tratamento suportivo para a agudização de doença de Crohn, com reposição volêmica, hidrocortisona 100 mg EV 6/6 horas e metronidazol 500 mg EV 8/8 horas.
    O paciente foi submetido a colonoscopia, sendo evidenciada mucosa com edema, hiperemia e friabilidade, sem ulcerações. O exame progrediu até a 30cm acima da borda anal. A partir deste nível, havia diminuição do calibre do cólon sigmóide e abundante secreção sero-sanguinolenta, impedindo um estudo adequado. O enema opaco mostrou as características do acometimento colônico. (figura 1)

 

Figura 1: Enema opaco.


    Após 2 dias do internamento, o paciente iniciou com dor de forte intensidade na transição tóraco-abdominal direita, principalmente à mudança de decúbito. Foi submetido a ultra-sonografia abdominal, onde evidenciou-se processo expansivo heterogêneo, localizado no lobo hepático direito, com 18,5 cm no seu maior diâmetro. A tomografia do abdome confirmou os achados ecográficos que sugeriam abscesso hepático. (figura 2)

 

Figura 2: Tomografia computadorizada demonstrando abscesso hepático.


    O paciente foi, então, submetido à drenagem da coleção guiada por ultra-sonografia. Houve saída imediata de cerca de 500 ml de secreção purulenta. Foi instalado um cateter na loja para manutenção da drenagem, sendo iniciado ceftriaxona de maneira empírica. O resultado da cultura do material purulento, após 10 dias, mostrou desenvolvimento de E. coli. sensível a amicacina, gentamicina e sulfametoxazol e trimetoprim. Após esse período de drenagem, suspendeu-se a ceftriaxona e iniciou-se amicacina EV, evoluindo com melhora clínica importante. Novos exames de imagem confirmaram a diminuição da coleção. O cateter de demora foi retirado após 13 dias do início da drenagem. O paciente recebeu alta hospitalar com sulfametoxazol e trimetoprim por mais 7 dias, totalizando 4 semanas de antibioticoterapia.
    Após este período, o paciente estava assintomático. Os exames de imagem de controle demonstraram redução significativa do tamanho da loja drenada. (figura 3). Atualmente, encontra-se em acompanhamento ambulatorial e com indicação cirúrgica de proctocolectomia, porém, recusou o tratamento proposto. 

 

Figura 3: Tomografia computadorizada demonstrando redução do tamanho do abscesso após a drenagem percutânea.

 

DISCUSSÃO
A associação entre doença de Crohn e abscesso hepático, apesar de bem documentada, é rara. Foram descritos cerca de 36 pacientes na literatura até 2000, a maioria como relatos de casos. Sabe-se que portadores de doença de Crohn possuem maior predisposição ao desenvolvimento de abscessos hepáticos do que a população geral (2,6). Entretanto, devido à baixa incidência, torna-se difícil fazer estimativas epidemiológicas.
    Os pacientes do sexo masculino constituem a maioria nos casos estudados. (2,3,6). A idade média, por ocasião do diagnóstico, é de cerca de 36 anos, ligeiramente menor do que a considerada para os abscessos hepáticos piogênicos que ocorrem na população geral, de até 54 anos.(6)
    Greenstein e colaboradores (2), num estudo de 6 casos, salientam a importância de 4 mecanismos básicos de associação entre doença de Crohn e abscesso hepático:
1. Extensão direta de abscessos intra-abdominais, mesentéricos ou subfrênicos para o parênquima hepático;
2. Contaminação, via hematogênica, através da veia porta, proveniente de outros focos abdominais de infecção;
3. Indiretamente, provenientes de complicações da doença de Crohn, como colelitíase com abscesso peri-vesicular ou coledocolitíase com colangite ascendente;
4. Abscesso secundário em carcinomas metastáticos do fígado.
    Não há descrições de abscessos hepáticos em pacientes portadores de retocolite ulcerativa idiopática. Talvez este fato se deva pela fisiopatologia da doença, na qual não há relatos de abscessos intra-abdominais persistentes e duradouros nesses pacientes.(2)
    Condições como: pileflebite; corticoterapia; uso de imunossupressores por tempo prolongado e desnutrição podem estar relacionados, facilitando o desenvolvimento dos abscessos hepáticos em pacientes com doença de Crohn (2,3,4,6). Entretanto, tais dados não são observados na maioria dos estudos revisados.
    O diagnóstico de abscesso hepático nesses pacientes geralmente é tardio e difícil de ser realizado. Talvez isso ocorra pelo fato de que a maioria dos sinais e sintomas pode ser atribuída à doença inflamatória intestinal por si só (6). A dor abdominal no hipocôndrio direito, febre e leucocitose, com desvio à esquerda, são os principais sinais, conforme observado no caso descrito. Deve ser dada importância ao aumento da fosfatase alcalina sérica.(6)
    Exames de imagem como a ultra-sonografia e a tomografia abdominal orientam o diagnóstico do abscesso hepático, e devem ser solicitados nos pacientes com as características acima citadas. (2,6)
    O tratamento de eleição atual para os abscessos hepáticos baseia-se na associação de antibioticoterapia e drenagem percutânea, guiada por exames de imagem (2,5,6). Tal método mostrou-se eficaz e seguro na maioria dos casos em que foi indicado, como ocorreu no caso descrito. A antibioticoterapia deve ser baseada em antibiogramas, extendendo-se até um período de 4 semanas (6).
    A laparotomia deve ser reservada para os casos de abscessos múltiplos ou abscessos com longo período de evolução; ausência de melhora clínica após drenagem percutânea; e casos em que haja indicação cirúrgica por complicações intestinais da doença de Crohn, como abscessos, perfurações e oclusão intestinal (2,6).
    O germe mais comumente isolado na cultura da secreção dos abscessos é o Streptococcus (6), diferente deste caso relatado, cujo germe foi a Escherichia coli. Todavia, há uma vasta gama de bactérias isoladas relatadas na literatura. Há descrições, inclusive, de abscessos estéreis (1).

CONCLUSÕES
Os pacientes portadores de doença de Crohn com queixas álgicas no hipocôndrio direito e febre de origem indeterminada devem ser submetidos a exames de imagem. Deve-se ainda incluir o abscesso hepático no diagnóstico diferencial das causas da complicação.
    O diagnóstico diferencial com reagudização da doença inflamatória intestinal é difícil.A suspeita do desenvolvimento de abscesso hepático deve ser aventada.
    O tratamento de escolha, nos pacientes com abscesso único, deve ser a drenagem percutânea e o uso de antibióticos. A laparotomia, indicada por princípio, não traz maiores vantagens, aumentando a morbidade conferida pela doença e pelo procedimento.

SUMMARY: Intra-abdominal abscesses are common complications in patients with Crohn´s disease. However, the association between liver abscesses and inflammatory bowel disease is rare.
    This is a case report of a 40-year old male, who has been treated for Crohn´s disease in the last 7 years, and developed a liver abscess. The patient was on azathioprine, 100 mg per day, irregularly, for the last two years. CT scan revealed an expansive large lesion in the right lobe of the liver, suggestive of an abscess. Percutaneous drainage of the abscess was performed, with introduction of a long-lasting catheter and systemic antibiotics.
    Patients with Crohn´s disease with fever and right upper quadrant pain must be investigated with image methods. Liver abscess must be included in the diferential diagnosis. Patients with single abscess must be treated by percutaneous drainage and antibiotic therapy. Laparotomy is reserved to the cases of multiple abscesses, other intra-abdominal abscesses or when there is no response to the percutaneous drainage.

KEY-WORDS: liver abscess, Crohn´s disease, percutaneous drainage.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. André, M.; Aumaitre, O.; Papo, T.; Kemeny, J.L.; Vital-Durand, D.; Rousset, H.; Ninet, J.; Pointud, P.; Charlotte, F.; Godeau, B.; Schmidt, J.; Marcheix, J.C. & Piette, J.C. Disseminated aseptic abscesses associated with Crohn´s disease: a new entity? Dig. Dis. and Sci.;43: 420-8, 1998.
2. Greenstein, A.J.; Sachar, D.B.; Lowenthal, D.; Goldofsky, E. & Aufses, A.H. Pyogenic Liver Abscess in Crohn´s Disease. Quarterly Journal of Medicine, New Series; 56: 505-18, 1985.
3. Manjunatha, S.; Mcintyre, P.B. & Lynn, A. Multiple Liver Abscesses in Crohn´s Disease. British Journal of Hospital Medicine; 47: 375-6, 1992.
4. Narayanan, S.; Madda, J.P; Johny, M.; Varga, G.; Prakash, B. & Koshy, A. Crohn´s disease presenting as Pyogenic Liver Abscess with preview of previous case reports. Am. J. Gastroenterol.; 93: 2607-9, 1998.
5. Safrit, H.D.; Mauro, M.A. & Jaques, P.F. Percutaneous Abscess Drainage in Crohn´s Disease. A. J.R.; 148: 859-62, 1997.
6. Vakil, N.; Hayne, G.; Sharma, A.; Hardy, D.J. & Slutsky, A. Liver Abscess in Crohn´s Disease. Am. J. Gastroenterol.; 87: 1090-5, 1994.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:
Paulo Gustavo Kotze
R. Pres. Taunay, 1200 _ ap.1502
Curitiba _ PR
CEP: 80430-000
e-mail: pakotze@cell.com.br

Trabalho realizado na Unidade de Colo-proctologia do Serviço de Cirurgia Geral do Hospital de Clínicas da UFPR _ Curitiba _ PR