RELATO DE CASO


DOENÇA DE CROHN NA INFÂNCIA: RELATO DE CASO*

Edmundo Anderi JÚNIOR - TSBCP
Marisa Laranjeira
Durval Pessotti JÚNIOR


ANDERI JR. E., LARANJEIRA M., PESSOTTI JR. D. - Doença de Crohn na infância: Relato de Caso. Rev bras Coloproct, 2001; 21(2): 92-95.

RESUMO: Desde sua caracterização clínica em 1932, a doença de Crohn tem sido objeto de inúmeros estudos e relatos e, a despeito deste interesse científico, muitos aspectos desta moléstia como sua etiologia, tratamento e prevenção permanecem obscuros. É relatado o acompanhamento de uma criança com doença de Crohn, com evolução arrastada, recidivante e refratária, que culminou, a despeito de todos os recursos clínicos utilizados, em óbito. Os autores tecem comentários sobre as opções terapêuticas e suas conseqüências, alertando para a gravidade da doença nesta faixa etária.

Unitermos: Crohn correlateral, Doença inflamatória intestinal

INTRODUÇÃO
Crohn, Ginzburg e Oppenheimer, conferiram identidade clínica a uma doença inflamatória de etiologia ainda indeterminada e que ficou conhecida como doença de CROHN. (7)
    Na visão inicial destes autores, esta entidade acometeria apenas o íleo terminal, sendo por eles denominada Enterite Regional.
    Em 1960 Lockhart-Mummery & Morson descreveram primeiramente o acometimento colônico da doença de Crohn e, desde então, tem-se constatado que esta moléstia pode acometer todo o tubo digestivo, bem como tecidos extra-digestivos. (10)
    Incluída como doença inflamatória, à semelhança de RCUI, não possui ainda agentes(s) etiológico(s) determinados. Microorganismos, alergia alimentar e medicação já foram responsabilizados, sem comprovação científica.
    À dificuldade de se entender sua etiopatologia, soma-se o tratamento às vezes empírico e nem sempre eficaz.

RELATO DE CASO
R.F.S., 12 anos, feminina, branca, natural e procedente de Santo André (SP), que, aos oito anos de idade apresentou prurido anal, emagrecimento, alternância do hábito intestinal. Colonoscopia e biópsia realizadas na época revelaram doença de Crohn de cólon esquerdo. Medicada com Sulfassalazina, Metronidazol e Prednisona, evoluiu satisfatoriamente por um ano, quando o quadro diarréico e desnutritivo, aliados a uma suboclusão em cólon esquerdo a 55cm da borda anal, impuseram o tratamento cirúrgico.
    Submetida em 17 de julho de 1997 a laparotomia que revelou acometimento segmentar do cólon ascendente e sigmóide. Uma enteroscopia intra-operatória não identificou nenhum outro sítio de acometimento. Realizou-se colectomia subtotal e íleo-sigmóide anastomose término-terminal sem intercorrências, tendo alta hospitalar no sexto pós-operatório, medicada com Metronidazol e Sulfassalazina. Houve progressiva adaptação do hábito intestinal e com dois meses de pós-operatório, evacuava duas vezes ao dia, fezes pastosas com continência anal, permanecendo assim por um ano e meio, quando surgiram fístulas peri-anais e diarréia.
    Foi então reintroduzida a Prednisona, 10mg por dia, além do uso de derivados do ácido ômega 3.
    Permaneceu bem, por mais seis meses, porém com três a quatro evacuações semi-líquidas ao dia.
    Após três anos da colectomia, e a despeito do uso correto de toda a medicação, formou-se fístula reto-vaginal, além de abscessos peri-anais que drenaram espontaneamente. Optou-se então, pelo uso de 6-mercaptopurina, 1mg por kg de peso.
    Evoluiu para subestenose da anastomose por recidiva do Crohn. Foi internada e, procurando evitar uma amputação de reto e ileostomia definitiva, optou-se por nutrição parenteral prolongada, Ciprofloxacin e manutenção da Prednisona e 6-mercaptopurina.
    Houve melhora das fístulas e parada da diarréia, porém a imunossupressão levou a broncopneumonia, úlceras gástricas, hemorragia digestiva alta e choque séptico com óbito.

DISCUSSÃO
Um estudo retrospectivo da incidência e prevalência da doença inflamatória intestinal pediátrica, durante um período de onze anos em South Glamorgan, mostrou que a incidência mais do que dobrou de 1,30 casos por cem mil da população infantil por ano, no período de 1983 a 1988 passou para 3,11 casos por cem mil no período de 1989 a 1993. Em contraste, a incidência de colite ulcerativa no período sofreu uma diminuição (0,71 por cem mil por ano). (5)
    A doença de Crohn tem seu pico etário de aparecimento entre a segunda e a quarta década da vida, é a mais comum em brancos do que em negros, não havendo diferença quanto ao sexo.
    Não foi identificada uma etiologia específica para a doença. Existem duas importantes áreas de identificação: a microbiológica e a imunológica.
    Há muito os microbiologistas procuram um germe específico que pudesse ser a causa da doença, porém nenhum foi até agora identificado.
    Também foi buscada uma origem imunológica para a doença para a qual existe, indubitavelmente, uma resposta imunológica. Alguns autores têm proposto que uma sensibilização ao leite, durante a infância, diminua a integridade da mucosa e permita que as bactérias ou produtos bacteriológicos penetrem no organismo. Desencadeia-se, então, um resposta imune celular e humoral a estes produtos. Embora uma resposta imunológica tenha certa importância na patogenia desta doença, seu papel como agente etiológico ainda não está esclarecido.
    Alguns autores sugerem que fatores ambientais tenham papel etiológico na doença, que é mais comum em climas temperados do que em climas tropicais. O fumo pode exercer um efeito estimulante sobre a doença.
    O diagnóstico de doença de Crohn em criança era pouco comum até o fim dos anos 70. Talves isto tenha ocorrido porque os clínicos eram relutantes em submeter as crianças a difíceis investigações e à exposição de altas doses de radiação. De qualquer forma, com o advento da colonoscopia pediátrica, o diagnóstico pode ser feito bem mais fácil e precocemente, o que pode ajudar a resolver problemas de retardo de crescimento, puberdade retardada e problemas psicológicos.
    O acometimento perineal ocorre em 50% das crianças com doença de Crohn. Markowitz e cols. descrevem um acometimento perineal extenso, mas nenhum caso de doença de Crohn vulvar sem a formação de fístula reto-vaginal. (11)
    O envolvimento extra-intestinal é mais comum em crianças do que em adultos com doença de Crohn. A doença de Crohn vulvar em crianças tornou-se incomum; a dificuldade está no diagnóstico e uma abordagem multidisciplinar é vital. O exame completo de uma lesão perineal, provavelmente sem importância estética, é mandatória e deve incluir sigmoidoscopia, podendo ser a principal característica de doença gastrointestinal presente.
    Classicamente a utilização de drogas antiinflamatórias envolve a prescrição de sulfassalazina e corticosteróides. A sulfassalazina composto de sulfapiridina e ácido 5 amino salicilico, deve ser prescrita em doses diárias de 2 a 4 gramas.
    O componente amino salicílico (5-ASA) é a fração ativa antiinflamatória da molécula de sulfassalazina. É recomendada para localizações mais altas da doença e nos casos de intolerância ou reações adversas a sulfassalazina.
    A corticoterapia, prednisona em doses iniciais de 40 a 60mg por dia, tem se mostrado de grande utilidade nas fases de atividade, sugerindo-se sua redução gradativa a medida do possível, até a sua retirada total. Em algumas situações os pacientes agudamente, apresentam sinais clínicos de suboclusão intestinal e deverão ser acompanhados, de preferência, hospitalizados. Doses mais elevadas de corticosteróides por via parenteral ou ACTH poderão trazer benefícios na diminuição do edema do componente agudo do processo inflamatório, melhorando a evolução do quadro oclusivo. Nesse tipo de complicação tem sido usada também a colchicina.
    Outras propostas medicamentosas devem ser consideradas quando da má resposta ao esquema clássico: metronidazol em doses de 1g à 2g diários tem resultados por vezes bastante positivos.
    Embora não aceitos unanimente, imunossupressores parecem constituir importante recurso terapêutico, particularmente nos portadores de complicação fistulosa. Essas drogas, habitualmente de segunda escolha, poderão ser indicadas desde o início, na expectativa do controle e fechamento de fístulas de qualquer localização: são de ação lenta e serão avaliadas após três a seis meses de uso. Hemogramas mensais ou quinzenais são necessários, a leucopenia menor que três mil células indica a necessidade de redução ou suspensão.
    A segunda indicação de imunossupressores é no tratamento de pacientes dependentes de doses elevadas de corticosteróides em má evolução clínica. São usados preferencialmente a 6-mercaptopurina e a Azatioprina.
    A doença de Crohn na infância pode causar morbidez significativa. A ativação de células T é considerada o centro da patologia da doença de Crohn e a Ciclosporina é um potente inibidor da ativação da célula T, tendo sido utilizado em adultos com bom resultado, podendo oferecer a possibilidade de remissão quando administrado precocemente no curso da doença. (12)
    Crianças com diagnóstico recente da doença de Crohn receberam Ciclosporina ou tratamento convencional por escolha aleatória, avaliando-se inicialmente e dois meses depois teve-se como conclusão que a melhora com o uso da Ciclosporina não foi muito maior que o tratamento convencional, tendo propiciado aparente melhora clínica e histológica. (12)
    O tratamento cirúrgico não é decisão fácil de ser tomada. A ressecção do segmento comprometido, em geral não garante ao doente a cura do processo, pelo contrário as recidivas são muito freqüentes no intestino remanescente em áreas consideradas previamente sadias.
    As indicações têm por finalidade a correção de complicações agudas ou crônicas e alívio de sintomas não controlados pelos diferentes esquemas de tratamento clínico.
    O tratamento cirúrgico deve ser objetivo, com a menor resseção possível, mesmo que não se remova todo o segmento doente. A preocupação tática deve envolver o tratamento da complicação mais do que o da doença. Grandes resseções não são garantia de melhores resultados para a evolução futura do processo. (3)
    Das diferentes manobras cirúrgicas a resseção ainda é a mais utilizada, acompanhada de anastomoses primárias ou estomias. Derivações internas ou plastias de áreas estenóticas podem ser consideradas em casos particularizados, embora com muita probabilidade de recidivas.
    Dietas enterais elementares ou parenterais totais contribuem, de forma significativa, para a manutenção ou recuperação nutricional, particularmente nos períodos prolongados de pausa alimentar como ocorre nas fases de grave atividade da doença, assim como na tentativa de fechamento de fístulas por interferência no débito de sua secreção. Discute-se também o papel das dietas parenterais ou enterais elementares como forma terapêutica da doença de Crohn pela supressão temporária da oferta oral de possíveis estimuladores antigênicos, uma das hipóteses etiológicas para o desencadeamento e perpetuação do processo inflamatório. (2)
    No caso relatado, houve a necessidade de resseção cirúrgica do cólon afetado que, temporariamente, permitiu a recuperação ponderal e psicossocial da criança porém, a recidiva foi inevitável a despeito de todos os recursos utilizados como a nutrição parenteral e a imunossupressão, e a paciente encaminhava-se para a necessidade da amputação de reto. Uma última e desesperada tentativa de evitar condená-la a uma ileostomia definitiva foi realizada porém, à imunossupressão induziu à complicações pulmonares, sépsis, hemorragia digestiva alta e óbito.

PROGNÓSTICO
Em abril de 1994 os autores relataram que o prognóstico a longo prazo da doença de Crohn que começa na infância e adolescência era o mesmo que em adultos, supondo-se que a idade não tem significado quando se avalia o risco de vida. Há, contudo, forte evidência de que isto não seja verdade. (5)
    Dados de Cardiff sugerem que há um aumento de onze vezes no risco de morte quando o diagnóstico é feito entre dez e dezenove anos de idade e Birmingham relatou aumento de doze vezes no risco de morte comparado ao da população normal no grupo menor de vinte anos de idade. Resultados de Mayo Clinic mostram aumento de doze vezes no risco de morte quando comparado ao da população normal antes dos vinte e um anos de idade. (4)
    Há ainda evidências de recorrências após uma primeira cirurgia definitiva, que são mais prováveis para ocorrer em pacientes jovens; outros não têm descoberto igual efeito sobre a idade, mas comparações entre grupos de adolescentes e grupos mais velhos não foram realizados.
    Na criança acompanhada pelos autores, a realização semestral de colonoscopias, aliada às consultas mensais, permitiu identificar precocemente a recidiva da doença de Crohn e auxiliou nas opções terapêuticas até se esgotarem todos os recursos farmacológicos disponíveis.
    Lautendach e cols. concluíram que os únicos fatores preditivos para a recorrência pós-cirúrgica da moléstia de Crohn foram a perfuração e o longo tempo de doença ativa. (9)
    Puntis e cols. concluíram que as conseqüências em adolescentes, com doença de Crohn em íleo distal e cólon eram similares aos adultos, mas apresentavam recorrências maiores. (13)
    Heler relatou um aumento significante na taxa de recorrências em 284 pacientes menores que vinte e cinco anos, comparado com os 184 pacientes com mais de quarenta anos em acompanhamento de cinco a dez anos após a primeira cirurgia definitiva. (8)
    Greenstain e cols. também encontraram um aumento significativo em cinco a dez anos após a primeira cirurgia definitiva na recorrência em pacientes com menos de vinte e cinco anos de idade.
    Cooke e cols. realizaram estudos em trinta e nove pacientes com menos de dezenove anos e trinta e quatro pacientes acima de quarenta anos e viram a taxa de recorrência após a primeira cirurgia definitiva, nos quais os resultados foram de 49% após cinco anos de cirurgia e 71% após dez anos de cirurgia para o grupo menos de dezenove anos e 22% após cinco anos da cirurgia e 34% após dez anos de cirurgia para o grupo acima de quarenta anos. (5)
    Indicação de operação definitiva em doença de Crohn é, em geral, universalmente definida, mas em muitos centros a aplicação destes princípios é freqüentemente demorada, na esperança otimista do tratamento clínico, o que pode acarretar a piora no quadro do paciente.
    Alguns autores sentem que o fator prognóstico na doença de Crohn, preferencialmente a idade, é o local anatômico do envolvimento da lesão.
    Puntis e cols. relatam que as conseqüências na doença de Crohn íleo-colônica em crianças eram similares às dos adultos. Esta similaridade não se estende àqueles com doença difusa do intestino delgado. (13)

CONCLUSÃO
A experiência dramática do acompanhamento por mais de três anos de uma criança acometida pela doença de Crohn colônica recidivante, utilizando-se todos os recursos terapêuticos, sedimentou a opinião dos autores na indicação cirúrgica apenas na vigência de complicações e quando indicada, realizá-la o mais precocemente possível, já que o curso da moléstia pode apresentar períodos de melhora traiçoeiros, que podem induzir a um maior investimento farmacológico, que também não é isento de complicações e uma perda de tempo preciosa.

SUMMARY: Since its clinic characterization at 1932, Crohn's disease has received a lot of studies and reports, but as yet, many aspects of this illness, like its etiology, treatment and prevention persist unclear. It's related a child accompanying with a drawn development Crohn's disease, relapse and refractory, that culminated in death, in spite of all clinic and surgical efforts. The authors comment about Crohn's disease treatment and its results, and the solemnity in childhood.

Key words: Coloretal Crohn´s disease

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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12. NICHOLLS, S.; DOMIZIO, D.; WILLIAMS, C.B.; DAWNAY A.; BRAEGGER C.P.; MAC DONALD, T.T.; WALKER-SMITH, J.A. - Cyclosporin as initial treatment for Crohn's disease. Arch. Dis. Child, 71(3):231-4,1994
13. PUNTIS, J.; MCNEISH, A.S.; ALLAN, R.N. - Long term prognosis of Crohn's disease with onset in childhood and adolescence. Gut, 25:329-36,1984

Endereço para Correspondência:
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Trabalho realizado no Centro Hospitalar do Município de Santo André, ligado à Faculdade de Medicina do ABC.