GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR


PERFIL GENÔMICO TUMORAL: EXPLICANDO O ACASO

Mauro de Souza Leite Pinho-TSBCP


PINHO MSL _ Perfil genômico tumoral: Explicando o caso. Rev bras Coloproct, 2001; 21(3): 202-205.

O crescente interesse sobre os mecanismos referentes à biologia molecular dos tumores tem gerado um grande volume de informações cuja velocidade torna difícil o acompanhamento dos novos e fascinantes conceitos a respeito da carcinogênese e suas consequências. O desenvolvimento de novos e acessíveis procedimentos para a análise do DNA, genes e proteínas tornaram possível uma multiplicidade de estudos capazes de identificar suas respectivas participações na biologia celular em condições teciduais normais e patológicas. Anteriormente restrito a grandes centros de pesquisa, o estudo de marcadores moleculares através de técnicas de imunohistoquímica tem sido viabilizado como procedimento de rotina em laboratórios clínicos, através da rápida disponibilidade comercial de um grande número de anticorpos específicos para proteínas recentemente identificadas. Como um fator decisivo adicional para esta expansão da biologia molecular, devemos ainda citar a grande difusibilidade de conhecimento proporcionada pela internet, a qual permite um acelerado fluxo de informações que ultrapassam os limites convencionais de tempo e distância.
    Além do já citado grande volume de publicações, a incorporação destas novas informações ao conjunto de conhecimentos médicos correntes é ainda bastante dificultada pela dificuldade de percepção a respeito de seu impacto sobre os aspectos clínicos e terapêuticos na prática médica diária.
    Entretanto, uma revisão da literatura atual sobre a carcinogênese nos mostra a existência de uma verdadeira revolução de conceitos, a qual irá certamente emergir brevemente da esfera da pesquisa para integrar o conjunto de conhecimentos clínicos na área da oncologia, com importantes consequências propedêuticas e terapêuticas. O objetivo desta seção será apresentar uma breve revisão destes novos aspectos oriundos dos estudos sobre biologia molecular tumoral, enfatizando seu provável impacto sobre a concepção clínica a respeito da história natural das neoplasias malignas.

A malignidade e seu substrato bioquímico
Conforme sabemos, os tumores malignos são formados por tecidos cuja principal característica pode ser definida como um acentuado predomínio da produção sobre a morte celular. Como consequência direta, teremos então um rápido crescimento quantitativo destas células, as quais irão progressivamente assumindo um caráter distinto de sua origem, em especial pela habilidade de sobreviver em condições menos favoráveis de nutrição e oxigenação. Na evolução deste processo de descontrole, observaremos subsequentemente uma perda da estrutura tecidual, comprometendo inicialmente regiões contíguas, podendo, em uma etapa mais avançada, extender-se a sítios e órgãos mais distantes através de vias de disseminação como os canais linfáticos e vasos sanguíneos. Como evento final, poderemos ter então um comprometimento das funções vitais do organismo levando à morte em decorrência de falência de órgãos, sistemas ou caquexia avançada.
    A ausência histórica de conhecimentos consistentes a respeito do surgimento e desenvolvimento do câncer, nos levou a considerar esta doença como um processo único e inexorável, seguindo uma história natural de padrões análogos, porém distintos, de acordo com a origem tecidual de cada tumor.
    Em decorrência dos grandes avanços ocorridos na área da biologia molecular, torna-se cada vez mais possível a identificação dos processos moleculares relacionados ao comportamento individual das células. Assim sendo, modificações teciduais observadas à microscopia podem agora ser correlacionadas com alterações bioquímicas ocorridas a nível celular. Dentro deste perfil bioquímico, destaca-se a possibilidade de identificar quais as proteínas responsáveis pelas ações celulares. Como todas as proteínas são geradas a partir de seu gene correspondente, contido de forma idêntica no genoma de todas as células do corpo, o estudo da biologia molecular da carcinogênese consiste, em última análise, na identificação de quais genes são ativados nas células integrantes dos tumores nas diferentes fases de sua evolução. Como consequência deste estudo, buscamos obter então um mapeamento das etapas da carcinogênese, assim como compreender seus mecanismos determinantes. Em outras palavras, o estudo da biologia molecular dos tumores tem por objetivo encontrar explicações para fatos que hoje observamos como sendo de natureza aleatória e peculiar a cada paciente em particular.

A história natural das neoplasias
Embora as neoplasias malignas sejam usualmente consideradas como doenças progressivas, as quais irão, na ausência de tratamento, levar à morte através de um processo de disseminação sistêmica, esta suposta história natural nem sempre corresponde à realidade.
    Lesões neoplásicas reconhecidamente precursoras de carcinomas, como os adenomas colorretais, podem permanecer estáveis durante anos ou décadas sem que seja observada qualquer alteração no sentido de um crescimento adicional ou sinais de malignização. Mesmo em pacientes portadores de distúrbio do ciclo celular de origem congênita, como a polipose adenomatosa familiar, observa-se uma tendência à estabilidade na maior parte dos pólipos intestinais, não sendo ainda conhecidos os mecanismos pelos quais alguns destes apresentam um maior crescimento do que outros. Igualmente inexplicados permanecem os mecanismos responsáveis pela interrupção desta estabilidade e início do processo de malignização. Por outro lado, embora a metastatização seja uma das características mais evidentes dos tumores malignos, é bastante frequente o achado de tumores volumosos ou localmente invasivos, os quais não apresentam metástases à distância a despeito de um longo período de evolução.
    Assim sendo, podemos analisar a história natural das neoplasias malignas e sua correlação com os presentes achados à luz da biologia molecular mediante quatro estágios, a saber:
1º Estágio - Surgimento da neoplasia
Este é o estágio mais estudado, já tendo sido abordado com mais detalhes anteriormente, em outra edição desta seção.
    Sendo o distúrbio inicial do processo de carcinogênese um desequilíbrio tecidual consequente a uma aceleração da produção celular, associada a uma redução da morte celular (apoptose), foi claramente demonstrado que esta se deve a um acúmulo de distúrbios, envolvendo proteínas reguladoras do ciclo celular. Estas proteínas reguladoras podem ser classificadas de acordo com sua função de estímulo ou inibição da divisão celular, sendo então denominadas como oncogenes ou proteínas supressoras de tumor, respectivamente. No caso particular do câncer coloretal, este acúmulo apresenta característica sequencial, tendo sido atribuído à uma mutação da proteína APC o papel inicial de distúrbio do ciclo celular. Subsequentemente novas mutações em proteínas reguladoras têm sido descritas, incluindo as proteínas K-ras, DCC e p53. Em relação a esta última tem sido atribuido grande importancia no processo de carcinogênese, devido à elevada incidência desta mutação em grande parte dos tumores malignos estudados. Sua principal função é a de impedir que células, contendo anormalidades em seu DNA, sejam capazes de completar o ciclo de divisão celular, dando origem a uma geração de células contendo a mesma alteração, podendo, em última análise, desencadear a formação de um tecido neoplásico. Este efeito, denominado como supressor de tumor, é realizado através da correção da anormalidade do DNA pelas chamadas proteínas de reparo ou pela indução à apoptose. Entretanto, é importante a compreensão de que esta importante função não é desempenhada de forma isolada pela proteína p53 e sim por um conjunto de proteínas que atuam em cadeia (Quadro 1). Desta forma, uma alteração que comprometa a ação de qualquer uma destas proteínas ou de seus respectivos genes, poderá estar relacionada a um processo de carcinogênese, conforme demonstrado em diversos estudos.

Quadro 1
Algumas proteínas envolvidas nas alterações do ciclo celular.

Ciclinas  (A , B, D1, E)
Quinases ciclina-dependentes p15, p16, p27, p21
Relacionadas à apoptose p53, Bcl-2, Bcl-x, Bcl-w
Transdução de sinal Raf, Ras, etc
Fatores de transcrição c-Jun, c-mic, etc

 

2º Estágio - Angiogênese
Dentre os muitos aspectos ainda obscuros da carcinogênese podemos destacar os fatores responsáveis pela perda da estabilidade em um determinado tecido precursor de neoplasia, com o consequente aumento da atividade proliferativa e carcinogenética. Como exemplo, podemos citar os adenomas colorretais, os quais podem apresentar uma súbita mudança de seu comportamento biológico, após longos períodos de inércia, e dar início a um rápido crescimento neoplásico. Diversos estudos têm demonstrado que este crescimento está na verdade relacionado a um estímulo tecidual para a neoformação de capilares e vasos sanguíneos, os quais irão promover as condições locais necessárias para o crescimento do tecido neoplásico. Este estágio do desenvolvimento tumoral, denominado como angiogênese, é também mediado pela expressão gênica de proteínas específicas cuja ação refere-se ao estímulo para a produção de tecido vascular. A concentração destas proteínas, citadas no Quadro 2, tem também sido relacionada, por diversos estudos, ao crescimento e prognóstico tumoral e o desenvolvimento de drogas capazes de inibir sua atividade é hoje uma das principais linhas de estudo terapêutico em oncologia.

Quadro 2
Algumas proteínas envolvidas na angiogênese tumoral

Fatores de crescimento fibroblástico (FGFs)
Fator de crescimento vascular endotelial (VFGF)

 

3º Estágio Motilidade e invasão
Uma das principais características de uma neoplasia maligna epitelial é sua capacidade de invadir os planos profundos, podendo assim atingir as vias que permitem sua disseminação à distância, como vasos sanguíneos ou linfáticos. Sabe-se hoje que esta invasão é resultado de uma complexa sequência de eventos que envolvem alterações de aderências célula-célula e célula-membrana basal. Após esta mobilização, teremos então um processo ativo de dissolução da membrana basal, o qual permitirá o acesso do tecido neoplásico aos planos subjacentes, caracterizando assim a invasão tecidual maligna.
    Conforme demonstrado pelos estudos de biologia molecular dos tumores, cada etapa deste processo de invasão é mediada pela ação de diversas proteínas com funções distintas, como elementos de membrana para aderência ou para a lise do colágeno, conforme demonstrado no Quadro 3. O estudo da expressão tumoral destas proteínas e sua correlação com sua capacidade invasiva da doença neoplásica tem sido realizado por diversos autores e demonstram um importante potencial no sentido de definir o estágio evolutivo dos tumores e risco de malignização de lesões precursoras.

Quadro 3
Algumas proteínas envolvidas no processo de invasão tumoral.

Proteínas envolvidas na motilidade: Complexo Arp 2/3, WASP, família Rho, MAP, etc
Proteínas envolvidas na adesão celular: Selectinas, galectinas, antígeno Lewis, etc
Proteínas envolvidas na invasão: Catepsinas, serina-proteinases, metaloproteinases

4º Estágio Aderência endotelial
É reconhecida a tendência específica para desenvolvimento de metástases à distância, de acordo com a localização primária de cada tumor. Tumores de colon e reto e estômago, por exemplo, apresentam uma maior incidência de metástases para fígado e pulmão, enquanto outros tumores podem manifestar com maior frequência metástases ósseas, cerebrais, etc. Evidências recentes demonstram que esta predileção por alguns sítios para o desenvolvimento de metástases não é resultado do implante ocasional de células ou da existência de um maior fluxo sanguíneo originado do sistema porta, conforme préviamente suposto. Na verdade, sucessivos estudos têm demonstrado uma especificidade para o desenvolvimento de metástases entre o tecido doador da célula neoplásica e o tecido receptor, como os tumores colorretais e o fígado, por exemplo. Esta especificidade é mediada através de receptores situados nas membranas da célula metastática e a célula endotelial do órgão receptor, os quais possibilitam a fixação da célula neste local, contrariando as forças de fluxo que dificultam esta adesão.

5º Estágio - Extravasamento para o parênquima
Uma vez ocorrida a aderência entre a célula metastática e o endotélio vascular, teremos então novamente a continuidade do processo préviamente descrito de desenvolvimento tumoral, motilidade e rompimento da membrana basal. Para isto, seguem-se as mesmas etapas de ativação de um complexo de atividades moleculares, o qual irá evoluir para a penetração destas células neoplásicas no parênquima do tecido hospedeiro das metástases.

6º Estágio - Crescimento do tecido metastático
Seguindo então a história natural da tumorigênese, teremos então a ocorrência, no órgão hospedeiro, de uma continuidade do processo de desequilíbrio causado pelo predomínio descontrolado da produção de novas células. Estão envolvidas, na ocorrência deste processo, diversas proteínas citadas acima, com ação sobre o ciclo celular, apoptose, fatores transicionais, etc.

Perfil genômico tecidual e tumoral: um conceito importante
Ao descrevermos o processo da história natural dos tumores, notamos que este é dependente da secreção (ou ausência) de proteínas as quais exercem diferentes funções na atividade celular. Compreendemos então que, embora cada célula de nosso organismo apresente um potencial para a produção (expressão) de todas as proteínas a partir dos genes contidos de forma idêntica em nosso DNA, esta produção ocorre de forma desigual dentre os diferentes tecidos. Este é um raciocínio de mais fácil percepção ao considerarmos que, embora todas as células possuam um potencial de produzir insulina, por exemplo, esta irá ocorrer apenas nas células correspondentes ao tecido pancreático endócrino. Em outras palavras, embora o gene da insulina esteja presente em todas as células de todos os tecidos do corpo, apenas nas células do pâncreas endócrino este gene será ativado para a produção de insulina. A esta especificidade individual de cada tecido para a expressão gênica em proteínas denominamos perfil genômico tecidual.
   
Em relação às doenças neoplásicas, o mesmo raciocínio poderá ser aplicado. Historicamente, tem sido amplamente reconhecida a grande variabilidade do comportamento biológico entre os tumores, mesmo quando apresentando características histopatológicas semelhantes. De acordo com os aspectos apresentados acima, sabe-se hoje que este comportamento biológico é consequência da produção de diferentes moléculas, as quais irão influir na ocorrência de características tumorais, como tempo de duplicação do tumor ou sua capacidade metastática. Assim sendo, fatores prognósticos, até então atribuidos como obra do acaso, passam a ser progressivamente compreendidos à luz dos novos conhecimentos os quais buscam, em última análise, desvendar quais as proteínas atuantes em cada tecido tumoral individual, ou de outra forma, quais os genes que foram ativados naquelas células os quais irão compor o chamado perfil genômico tumoral.

Perspectivas no estudo da biologia molecular tumoral
Apesar do grande volume de pesquisas atualmente realizadas na área da biologia molecular, é ainda bastante improvável que, em um curto período de tempo, possamos ter decodificado todo o código genético humano. Embora uma recente previsão tenha estabelecido em cerca de 30 mil o número de genes existentes em nosso DNA, esta estimativa poderá ainda sofrer grandes alterações e muito há que ser feito para que possamos conhecer todos estes genes e suas respectivas funções. Entretanto, existem já hoje claras evidências de que a ocorrência de alterações em determinados genes poderá modificar radicalmente a história natural de uma neoplasia, levando a diferenças significativas no prognóstico do paciente e seus índices de resposta à terapêutica instituída. No momento atual, estamos em fase de identificar genes individuais com importância específica para cada tumor e sua influência sobre o comportamento biológico deste. Iniciam-se também alguns estudos utilizando preparações capazes de analisar um grande conjunto de genes de forma simultânea em cada tumor, devendo estes provavelmente vir a desempenhar um importante papel clínico em um curto espaço de tempo.
    De qualquer forma, abre-se uma grande perspectiva na área oncológica, através da compreensão dos fenômenos acima mencionados e pela progressiva interação entre os conhecimentos da biologia molecular tumoral e sua aplicação clínica. Como mensagem final gostaríamos de destacar que, embora estes conhecimentos pareçam fugir à nossa área de atuação clínica, sua aplicabilidade prática deve ser considerada como iminente, justificando o esforço dispendido para a compreensão e acompanhamento destes novos conceitos que irão por certo modificar radicalmente o perfil da medicina no milênio que ora se inicia.

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Mauro de Souza Leite Pinho
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