GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR
Mauro de Souza Leite Pinho-TSBCP
O crescente interesse sobre os mecanismos referentes
à biologia molecular dos tumores tem gerado um grande
volume de informações cuja velocidade torna difícil
o acompanhamento dos novos e fascinantes conceitos a
respeito da carcinogênese e suas consequências. O
desenvolvimento de novos e acessíveis procedimentos para a análise do
DNA, genes e proteínas tornaram possível uma multiplicidade
de estudos capazes de identificar suas respectivas
participações na biologia celular em condições teciduais normais
e patológicas. Anteriormente restrito a grandes centros
de pesquisa, o estudo de marcadores moleculares através
de técnicas de imunohistoquímica tem sido viabilizado
como procedimento de rotina em laboratórios clínicos, através
da rápida disponibilidade comercial de um grande número
de anticorpos específicos para proteínas
recentemente identificadas. Como um fator decisivo adicional para
esta expansão da biologia molecular, devemos ainda citar a
grande difusibilidade de conhecimento proporcionada pela
internet, a qual permite um acelerado fluxo de informações
que ultrapassam os limites convencionais de tempo e distância.
Além do já citado grande volume de publicações,
a incorporação destas novas informações ao conjunto
de conhecimentos médicos correntes é ainda bastante
dificultada pela dificuldade de percepção a respeito de seu impacto
sobre os aspectos clínicos e terapêuticos na prática médica diária.
Entretanto, uma revisão da literatura atual sobre
a carcinogênese nos mostra a existência de uma
verdadeira revolução de conceitos, a qual irá certamente
emergir brevemente da esfera da pesquisa para integrar o
conjunto de conhecimentos clínicos na área da oncologia,
com importantes consequências propedêuticas e terapêuticas.
O objetivo desta seção será apresentar uma breve revisão
destes novos aspectos oriundos dos estudos sobre biologia
molecular tumoral, enfatizando seu provável impacto sobre a
concepção clínica a respeito da história natural das neoplasias malignas.
A malignidade e seu
substrato bioquímico
Conforme sabemos, os tumores malignos são
formados por tecidos cuja principal característica pode ser
definida como um acentuado predomínio da produção sobre a
morte celular. Como consequência direta, teremos então um
rápido crescimento quantitativo destas células, as quais
irão progressivamente assumindo um caráter distinto de
sua origem, em especial pela habilidade de sobreviver
em condições menos favoráveis de nutrição e oxigenação.
Na evolução deste processo de descontrole,
observaremos subsequentemente uma perda da estrutura
tecidual, comprometendo inicialmente regiões contíguas,
podendo, em uma etapa mais avançada, extender-se a sítios e
órgãos mais distantes através de vias de disseminação como
os canais linfáticos e vasos sanguíneos. Como evento
final, poderemos ter então um comprometimento das
funções vitais do organismo levando à morte em decorrência
de falência de órgãos, sistemas ou caquexia avançada.
A ausência histórica de conhecimentos consistentes
a respeito do surgimento e desenvolvimento do câncer,
nos levou a considerar esta doença como um processo único
e inexorável, seguindo uma história natural de
padrões análogos, porém distintos, de acordo com a origem
tecidual de cada tumor.
Em decorrência dos grandes avanços ocorridos
na área da biologia molecular, torna-se cada vez
mais possível a identificação dos processos
moleculares relacionados ao comportamento individual das
células. Assim sendo, modificações teciduais observadas
à microscopia podem agora ser correlacionadas
com alterações bioquímicas ocorridas a nível celular.
Dentro deste perfil bioquímico, destaca-se a possibilidade
de identificar quais as proteínas responsáveis pelas
ações celulares. Como todas as proteínas são geradas a
partir de seu gene correspondente, contido de forma
idêntica no genoma de todas as células do corpo, o estudo
da biologia molecular da carcinogênese consiste, em
última análise, na identificação de quais genes são ativados
nas células integrantes dos tumores nas diferentes fases
de sua evolução. Como consequência deste
estudo, buscamos obter então um mapeamento das etapas
da carcinogênese, assim como compreender
seus mecanismos determinantes. Em outras palavras, o
estudo da biologia molecular dos tumores tem por
objetivo encontrar explicações para fatos que hoje
observamos como sendo de natureza aleatória e peculiar a
cada paciente em particular.
A história natural das neoplasias
Embora as neoplasias malignas sejam usualmente consideradas como doenças progressivas, as quais irão,
na ausência de tratamento, levar à morte através de
um processo de disseminação sistêmica, esta suposta
história natural nem sempre corresponde à realidade.
Lesões neoplásicas reconhecidamente precursoras
de carcinomas, como os adenomas colorretais, podem permanecer estáveis durante anos ou décadas sem que
seja observada qualquer alteração no sentido de um
crescimento adicional ou sinais de malignização. Mesmo em
pacientes portadores de distúrbio do ciclo celular de origem
congênita, como a polipose adenomatosa familiar, observa-se
uma tendência à estabilidade na maior parte dos
pólipos intestinais, não sendo ainda conhecidos os mecanismos
pelos quais alguns destes apresentam um maior crescimento
do que outros. Igualmente inexplicados permanecem
os mecanismos responsáveis pela interrupção desta
estabilidade e início do processo de malignização. Por outro
lado, embora a metastatização seja uma das características
mais evidentes dos tumores malignos, é bastante frequente
o achado de tumores volumosos ou localmente invasivos,
os quais não apresentam metástases à distância a despeito
de um longo período de evolução.
Assim sendo, podemos analisar a história natural
das neoplasias malignas e sua correlação com os
presentes achados à luz da biologia molecular mediante
quatro estágios, a saber:
1º Estágio - Surgimento da neoplasia
Este é o estágio mais estudado, já tendo sido
abordado com mais detalhes anteriormente, em outra edição
desta seção.
Sendo o distúrbio inicial do processo de
carcinogênese um desequilíbrio tecidual consequente a uma
aceleração da produção celular, associada a uma redução da
morte celular (apoptose), foi claramente demonstrado que esta
se deve a um acúmulo de distúrbios, envolvendo
proteínas reguladoras do ciclo celular. Estas proteínas
reguladoras podem ser classificadas de acordo com sua função
de estímulo ou inibição da divisão celular, sendo
então denominadas como oncogenes ou proteínas
supressoras de tumor, respectivamente. No caso particular do
câncer coloretal, este acúmulo apresenta característica
sequencial, tendo sido atribuído à uma mutação da proteína APC
o papel inicial de distúrbio do ciclo celular.
Subsequentemente novas mutações em proteínas reguladoras têm
sido descritas, incluindo as proteínas K-ras, DCC e p53.
Em relação a esta última tem sido atribuido grande
importancia no processo de carcinogênese, devido à elevada
incidência desta mutação em grande parte dos tumores
malignos estudados. Sua principal função é a de impedir que
células, contendo anormalidades em seu DNA, sejam capazes
de completar o ciclo de divisão celular, dando origem a
uma geração de células contendo a mesma alteração,
podendo, em última análise, desencadear a formação de um
tecido neoplásico. Este efeito, denominado como supressor
de tumor, é realizado através da correção da anormalidade
do DNA pelas chamadas proteínas de reparo ou pela
indução à apoptose. Entretanto, é importante a compreensão
de que esta importante função não é desempenhada de
forma isolada pela proteína p53 e sim por um conjunto de
proteínas que atuam em cadeia (Quadro 1). Desta forma,
uma alteração que comprometa a ação de qualquer uma
destas proteínas ou de seus respectivos genes, poderá
estar relacionada a um processo de carcinogênese,
conforme demonstrado em diversos estudos.
Quadro 1
Algumas proteínas envolvidas nas alterações do
ciclo celular.
Ciclinas | (A , B, D1, E) |
Quinases ciclina-dependentes | p15, p16, p27, p21 |
Relacionadas à apoptose | p53, Bcl-2, Bcl-x, Bcl-w |
Transdução de sinal | Raf, Ras, etc |
Fatores de transcrição | c-Jun, c-mic, etc |
2º Estágio - Angiogênese
Dentre os muitos aspectos ainda obscuros da carcinogênese podemos destacar os fatores
responsáveis pela perda da estabilidade em um determinado
tecido precursor de neoplasia, com o consequente aumento
da atividade proliferativa e carcinogenética. Como
exemplo, podemos citar os adenomas colorretais, os quais
podem apresentar uma súbita mudança de seu
comportamento biológico, após longos períodos de inércia, e dar início
a um rápido crescimento neoplásico. Diversos estudos
têm demonstrado que este crescimento está na
verdade relacionado a um estímulo tecidual para a neoformação
de capilares e vasos sanguíneos, os quais irão promover
as condições locais necessárias para o crescimento do
tecido neoplásico. Este estágio do desenvolvimento
tumoral, denominado como angiogênese, é também mediado
pela expressão gênica de proteínas específicas cuja ação
refere-se ao estímulo para a produção de tecido vascular.
A concentração destas proteínas, citadas no Quadro 2,
tem também sido relacionada, por diversos estudos,
ao crescimento e prognóstico tumoral e o desenvolvimento
de drogas capazes de inibir sua atividade é hoje uma
das principais linhas de estudo terapêutico em oncologia.
Quadro 2
Algumas proteínas envolvidas na angiogênese tumoral
Fatores de crescimento fibroblástico | (FGFs) |
Fator de crescimento vascular endotelial | (VFGF) |
3º Estágio Motilidade e invasão
Uma das principais características de uma
neoplasia maligna epitelial é sua capacidade de invadir os
planos profundos, podendo assim atingir as vias que
permitem sua disseminação à distância, como vasos sanguíneos
ou linfáticos. Sabe-se hoje que esta invasão é resultado
de uma complexa sequência de eventos que
envolvem alterações de aderências célula-célula e
célula-membrana basal. Após esta mobilização, teremos então um
processo ativo de dissolução da membrana basal, o qual permitirá
o acesso do tecido neoplásico aos planos
subjacentes, caracterizando assim a invasão tecidual maligna.
Conforme demonstrado pelos estudos de biologia molecular dos tumores, cada etapa deste processo
de invasão é mediada pela ação de diversas proteínas
com funções distintas, como elementos de membrana
para aderência ou para a lise do colágeno, conforme
demonstrado no Quadro 3. O estudo da expressão tumoral
destas proteínas e sua correlação com sua capacidade invasiva
da doença neoplásica tem sido realizado por diversos
autores e demonstram um importante potencial no sentido de
definir o estágio evolutivo dos tumores e risco de malignização
de lesões precursoras.
Quadro 3
Algumas proteínas envolvidas no processo de
invasão tumoral.
Proteínas envolvidas na motilidade: | Complexo Arp 2/3, WASP, família Rho, MAP, etc |
Proteínas envolvidas na adesão celular: | Selectinas, galectinas, antígeno Lewis, etc |
Proteínas envolvidas na invasão: | Catepsinas, serina-proteinases, metaloproteinases |
4º Estágio Aderência endotelial
É reconhecida a tendência específica para
desenvolvimento de metástases à distância, de acordo com
a localização primária de cada tumor. Tumores de colon
e reto e estômago, por exemplo, apresentam uma
maior incidência de metástases para fígado e pulmão,
enquanto outros tumores podem manifestar com maior
frequência metástases ósseas, cerebrais, etc. Evidências
recentes demonstram que esta predileção por alguns sítios para
o desenvolvimento de metástases não é resultado do
implante ocasional de células ou da existência de um maior
fluxo sanguíneo originado do sistema porta,
conforme préviamente suposto. Na verdade, sucessivos estudos
têm demonstrado uma especificidade para o
desenvolvimento de metástases entre o tecido doador da célula neoplásica
e o tecido receptor, como os tumores colorretais e o
fígado, por exemplo. Esta especificidade é mediada através
de receptores situados nas membranas da célula metastática
e a célula endotelial do órgão receptor, os quais
possibilitam a fixação da célula neste local, contrariando as forças
de fluxo que dificultam esta adesão.
5º Estágio - Extravasamento para o parênquima
Uma vez ocorrida a aderência entre a célula
metastática e o endotélio vascular, teremos então novamente
a continuidade do processo préviamente descrito
de desenvolvimento tumoral, motilidade e rompimento
da membrana basal. Para isto, seguem-se as mesmas
etapas de ativação de um complexo de atividades moleculares,
o qual irá evoluir para a penetração destas células
neoplásicas no parênquima do tecido hospedeiro das metástases.
6º Estágio - Crescimento do tecido metastático
Seguindo então a história natural da
tumorigênese, teremos então a ocorrência, no órgão hospedeiro, de
uma continuidade do processo de desequilíbrio causado
pelo predomínio descontrolado da produção de novas
células. Estão envolvidas, na ocorrência deste processo,
diversas proteínas citadas acima, com ação sobre o ciclo
celular, apoptose, fatores transicionais, etc.
Perfil genômico tecidual e tumoral: um conceito importante
Ao descrevermos o processo da história natural
dos tumores, notamos que este é dependente da secreção
(ou ausência) de proteínas as quais exercem diferentes
funções na atividade celular. Compreendemos então que,
embora cada célula de nosso organismo apresente um
potencial para a produção (expressão) de todas as proteínas a
partir dos genes contidos de forma idêntica em nosso DNA,
esta produção ocorre de forma desigual dentre os
diferentes tecidos. Este é um raciocínio de mais fácil percepção
ao considerarmos que, embora todas as células possuam
um potencial de produzir insulina, por exemplo, esta irá
ocorrer apenas nas células correspondentes ao tecido
pancreático endócrino. Em outras palavras, embora o gene da
insulina esteja presente em todas as células de todos os tecidos
do corpo, apenas nas células do pâncreas endócrino este
gene será ativado para a produção de insulina. A
esta especificidade individual de cada tecido para a
expressão gênica em proteínas denominamos
perfil genômico tecidual.
Em relação às doenças neoplásicas, o mesmo
raciocínio poderá ser aplicado. Historicamente, tem sido
amplamente reconhecida a grande variabilidade do
comportamento biológico entre os tumores, mesmo quando
apresentando características histopatológicas semelhantes. De
acordo com os aspectos apresentados acima, sabe-se hoje que
este comportamento biológico é consequência da produção
de diferentes moléculas, as quais irão influir na ocorrência
de características tumorais, como tempo de duplicação
do tumor ou sua capacidade metastática. Assim sendo,
fatores prognósticos, até então atribuidos como obra do
acaso, passam a ser progressivamente compreendidos à luz
dos novos conhecimentos os quais buscam, em última
análise, desvendar quais as proteínas atuantes em cada
tecido tumoral individual, ou de outra forma, quais os genes
que foram ativados naquelas células os quais irão compor
o chamado perfil genômico tumoral.
Perspectivas no estudo da biologia molecular tumoral
Apesar do grande volume de pesquisas atualmente realizadas na área da biologia molecular, é ainda
bastante improvável que, em um curto período de tempo,
possamos ter decodificado todo o código genético humano.
Embora uma recente previsão tenha estabelecido em cerca de
30 mil o número de genes existentes em nosso DNA,
esta estimativa poderá ainda sofrer grandes alterações e
muito há que ser feito para que possamos conhecer todos
estes genes e suas respectivas funções. Entretanto, existem
já hoje claras evidências de que a ocorrência de
alterações em determinados genes poderá modificar radicalmente
a história natural de uma neoplasia, levando a
diferenças significativas no prognóstico do paciente e seus índices
de resposta à terapêutica instituída. No momento atual,
estamos em fase de identificar genes individuais com
importância específica para cada tumor e sua influência sobre
o comportamento biológico deste. Iniciam-se também
alguns estudos utilizando preparações capazes de analisar
um grande conjunto de genes de forma simultânea em
cada tumor, devendo estes provavelmente vir a
desempenhar um importante papel clínico em um curto espaço de tempo.
De qualquer forma, abre-se uma grande perspectiva
na área oncológica, através da compreensão dos
fenômenos acima mencionados e pela progressiva interação entre
os conhecimentos da biologia molecular tumoral e
sua aplicação clínica. Como mensagem final gostaríamos
de destacar que, embora estes conhecimentos pareçam
fugir à nossa área de atuação clínica, sua aplicabilidade
prática deve ser considerada como iminente, justificando o
esforço dispendido para a compreensão e acompanhamento destes
novos conceitos que irão por certo modificar
radicalmente o perfil da medicina no milênio que ora se inicia.
Endereço para Correspondência:
Mauro de Souza Leite Pinho
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