IN MEMORIAM
ANNIBAL RIBEIRO DE ALMEIDA E LUZ
Há 86 anos nascia no Rio de Janeiro,
Annibal, o mais novo dos onze filhos de Andrelina e
Álvaro Ribeiro de Almeida e Luz. Nesta cidade Annibal
cursou a Faculdade de Medicina da Universidade do
Brasil, hoje UFRJ. Diplomou-se em 1939, iniciando sua
vida profissional na Santa Casa de Misericórdia do Rio
de Janeiro.
Em 1943, é convocado para o serviço militar
e no ano seguinte enviado para a Itália como
cirurgião da FEB. Naquele cenário trágico desponta com
grande brilho o talento do Tenente Médico Annibal
Luz. Transcrevo a seguir o elogio feito em ofício pelo
Major Wesley Reid, Chefe de Cirurgia do 7 th Station,
hospital aliado de quase mil leitos, comandado por
americanos na Itália:
" ...Lt. Luz has done excelent work in the operating room, as consultant on rectal cases, and in the care of surgical patients on his wards. During his services here, Lt. Luz has performed 182 operative procedures in the operating room. In this large volume of surgery, Lt. Luz has demonstrated an exceptionally fine surgical skill, sound judgement and meticulous care. I know I speak for the entire surgical staff in saying that we are proud to have had the oportunity to associate with him, an excelent surgeon and a cultured gentleman."
Nesta época Annibal Luz contava apenas
29 anos mas seu talento e suas qualidades
humanísticas já encontravam reconhecimento. Terminada a
guerra, de volta à casa, ele já estava condecorado com
as Medalhas de Guerra e de Campanha.
Posteriormente foi agraciado com a condecoração da Ordem do
Mérito Militar e da Ordem do Mérito Médico.
Após 1945, trabalhando com Sylvio
D´Ávila, inicia a prática da moderna coloproctologia no Rio
de Janeiro se consagrando como o notável cirurgião
que conhecemos.
No Hospital de Ipanema chefiou o Serviço
de Coloproctologia por um breve período antes de
Horácio Carrapatoso.
Foi um dos primeiros membros da Sociedade Brasileira de Coloproctologia, ex-Presidente e nos
seus últimos anos, Sócio Honorário.
Tive o privilégio e a honra de conviver
com Annibal Luz por três décadas completas.
Figura humana extraordinária, perfil invulgar de um
grande médico, dotado de sólido caráter, com
respeito consciente ao princípio da autoridade, à moral,
à honestidade e à proficiência na vida profissional.
Seu falecimento em 11 de Junho após
longa enfermidade foi o último capítulo de uma grande
obra. Apesar da emoção que sinto pela perda do
grande amigo e orientador gostaria de transmitir aos leitores
a alegria que esta convivência me proporcionou. E
tentar lhes explicar, através de algumas situações
curiosas que presenciei, a riqueza da sua personalidade.
Em 1973 fui convidado para trabalhar com Annibal Luz. Um honroso convite para quem
ainda não havia terminado o curso de medicina. No dia
e hora marcados me apresentei na Casa de Saúde
São José. Em uma sala de estar da clínica ele
conversava com outros colegas. Aproximei-me com a cautela e
o respeito necessários para se falar com uma
autoridade. Fui recebido com efusividade e em seguida o
Dr. Annibal retirou-se da sala. Fiquei estático
procurando o meu erro, já vendo minhas pretensões indo por
água abaixo. Um momento após ele volta à sala
trazendo uma cadeira para que eu me sentasse.
Fiquei estarrecido. Aquele homem ilustre foi buscar
uma cadeira para mim!!! Sentei-me com extremo
cuidado sem querer soltar todo o peso do corpo, temendo
que tudo aquilo só pudesse ser uma peça para o
novato. Não era. Eu ali começava a conhecer a
esmerada educação do Dr. Annibal Luz.
Apesar de modesto e reservado ele era
muito consciente do seu valor e nunca permitiu que
se desvalorizasse o trabalho do médico. Uma ocasião,
eu já com vários anos de formado, ele me pede
notícias de um paciente por mim operado - uma amputação
de reto - e eu com uma certa soberba, própria da
idade, iniciei a resposta dizendo que tinha sido uma
"operação fácil". Ele me interrompeu de imediato: "não,
Ronaldo, não tem nada de fácil. Apenas você está
aprendendo direito". Aquele "está aprendendo" foi tudo que
eu precisava ouvir. Entendi bem o recado e desisti
de pensar que já sabia de tudo.
Quem o conheceu de perto soube que apesar
de sofrer de uma artrite deformante ele jamais se
queixou de nada. Dava a impressão que aquela grave
deformidade de várias articulações era indolor. Isto, na verdade, era
a expressão prática de sua disciplina e auto controle.
Como em determinado dia de calor tórrido que os cariocas
bem conhecem. Estava programada uma cirurgia para
câncer de reto num paciente muito obeso e o ar
condicionado do centro cirúrgico parou de funcionar. A
temperatura dentro da sala beirava os quarenta graus. Aguardamos
a chegada do Dr. Annibal certos que o procedimento
seria suspenso ou pelo menos adiado para o período da
noite. Ele chegou, comentou de passagem que estava
"meio quentinho" e pediu que se iniciasse a anestesia.
Durante cerca de cinco horas operou sem demonstrar
qualquer contrariedade. Ao término da cirurgia - eu quase
que desidratado - ele me solicitou que o ajudasse.
Atendi prontamente temendo que se sentisse mal. Ajudei-o
a despir o avental cirúrgico e fiquei surpreso ao notar
que ele não estava suado. Mas isto não foi nada
em comparação com o que se seguiu. Pediu-me que
tentasse tirar do seu conduto auditivo um fragmento de
cotonete plástico que acidentalmente lá se partira.
Fiquei pensando como alguém é capaz de operar durante
cinco horas sob temperatura desumana sem sequer suar
e ainda esperar o fim dos trabalhos para remover
um objeto de 2 cm encostado no tímpano. Para não
me confundir ainda mais decidi não analisar a
sugestão que ele seria capaz de controlar suas
reações corporais.
Annibal Luz formou muitos assistentes e
não tenho notícia de um sequer que demonstrasse por
ele menos que admiração. Sem jamais ter seguido
carreira universitária, foi um eminente professor. O
interesse pela coloproctologia no Rio de Janeiro se deve,
em grande parte, à sua atuação e ao seu carisma.
Ele foi, sem dúvida, um expoente da
sua geração. Mestre da coloproctologia,
personalidade fulgurante, exerceu a profissão com
espírito missionário e vocação autêntica. Um exemplo de
quem comandou seu próprio destino, enobrecendo-o
na prática da medicina. Um cirurgião extraordinário e
um refinado cavalheiro.
Ronaldo Salles (RJ)