ARTIGOS ORIGINAIS


EMPREGO DA ESTEREOLOGIA EM PESQUISAS COLORRETAIS

Francisco Lopes-Paulo -TSBCP


LOPES-PAULO F. Emprego da estereologia em pesquisas colorretais. Rev bras coloproct, 2002; 22(2):73-76

RESUMO: A estereologia, também chamada de morfometria, é um conjunto de métodos de quantificação de estruturas morfológicas, constituindo-se um instrumento valioso na avaliação de resultados de trabalhos experimentais. Este trabalho apresenta as bases teóricas da estereologia, complementado com um estudo dos volumes parciais das diversas camadas que constituem a parede colônica de ratos adultos da raça Wistar, para auxiliar a compreensão do emprego dessa metodologia que, a nosso ver, pode ajudar a quantificar numericamente os resultados de vários experimentos, permitindo uma comparação estatística confiavel entre grupos de estudo.

Unitermos: estereologia, morfometria, quantificação, cólon, estrutura

INTRODUÇÃO
A quantificação de elementos estruturais das paredes do cólon e reto é parte fundamental de estudos experimentais e anátomo-patológicos realizados nesses órgãos. É freqüente o uso de critérios subjetivos como, por exemplo, a classificação de determinadas alterações em "leves, moderadas ou intensas", o que torna difícil a comparação de resultados e a reprodução de experimentos. Para solucionar falhas como essa, tem sido usada com freqüência crescente a estereologia, também chamada por alguns de morfometria1,2, que permite quantificar numericamente as mais variadas estruturas, sejam elas macro ou microscópicas.

Estereologia
Em 1848, o geólogo francês Delesse3, interessado em determinar a proporção de determinados minérios contidos em rochas, criou um sistema de linhas paralelas, de comprimento total conhecido (Ct) que, aplicado sobre a superfície de corte de uma determinada rocha, permitia a medida do comprimento parcial dessas linhas que caía sobre um determinado componente que se desejava quantificar (Cp). Portanto, a proporção do elemento em estudo na rocha (Pe) podia ser determinada pela fórmula: Pe = Cp / Ct . 100 %. Demonstrou ainda que o volume parcial ocupado pelo elemento na rocha (Vv) era numericamente igual à área ocupada por esse elemento na superfície de corte da mesma (Ss) e que por sua vez era numericamente igual à fração do sistema de linhas que caiam sobre o elemento em estudo (Pe). Portanto: Vv = Ss = Pe. Ressaltou também que, para aplicação desse método, os corpos em estudo deviam ser isotrópicos, ou seja, os diversos elementos que o compõem deviam estar distribuidos ao acaso e homogeneamente no espaço. Atualmente são utilizadas "grades" estereológicas, ou sistemas-teste, que facilitam o emprego dessa metodologia. As grades são figuras, geralmente retangulares, de área conhecida, contendo em seu interior um número predeterminado de pontos e segmentos de retas ou de arcos ciclóides, que podem ser sobrepostas às estruturas analisadas para a contagem de pontos e interseções das linhas que caem sobre o elemento em estudo. A escolha da grade vai depender da experiência do pesquisador com seu uso ou do tipo de análise que se deseja realizar. Exemplos de diversos tipos de grade podem ser encontrados em publicações especializadas, como a de Mandarim-de-Lacerda (1995)4.

MATERIAIS E MÉTODOS
Para exemplificar a aplicabilidade do método, descrevemos a seguir um estudo realizado para determinar o volume parcial das diversas camadas que compõem a parede colônica de ratos adultos da raça Wistar, que serviu de base para realização de outros estudos nesses animais. Para tanto foram utilizados 10 ratos, com peso médio de 379,37 g (mín=300g; máx=396g).
    Os animais foram submetidos a anestesia geral com tiopental sódico (Thionembutalâ, Abbott), na dose de 50 mg/kg de peso.
    Em cada animal, foi realizada uma incisão mediana da parede abdominal, medindo 2 cm de extensão, equidistante do gradil costal e da borda superior da pelve. Em seguida foi introduzido por via anal, um catéter de peridural 20 G (Becton-Dickinson), sendo então retirado um segmento de cólon, com 2 cm de extensão, situado entre 6 e 8 cm de distância do orifício anal.
    Os segmentos de cólon obtidos foram clivados em "anéis" de 5 mm de comprimento, abertos no sentido longitudinal e distendidos sobre papel filtro. A fixação foi feita em solução de Bouin, por 12 horas, sendo o material em seguida desidratado em uma série crescente de álcoois e incluído em parafina. Durante a inclusão, as peças, que tinham formato plano e retangular, foram posicionadas com seu eixo longitudinal perpendicular ao plano de microtomia. Dessa forma, obtivemos cortes aproximadamente perpendiculares à superfície da parede colônica. De cada "anel" foram obtidos 2 cortes consecutivos, com a espessura de 5 mm, num total de 8 cortes por animal. Em seguida, foram corados pelo tricrômico de Gomori e montados entre lâmina e lamínula, com resina sintética.

Obtenção de Imagens dos Cortes Histológicos
Os cortes histológicos foram analisados por meio de um sistema microscópico computadorizado, composto por um microscópio óptico Olympus BH-2, dotado de objetivas plano-acromáticas. A ocular é acoplada a uma câmera de vídeo marca Galai, que transmite as imagens obtidas a um microcomputador, modelo Pentium-II de 300 Mhz, com 64 megabytes de memória RAM. Esse computador exibe imagens em um monitor super VGA, com "dot pitch" 0,28 e aumento final de até 500 X .
    As imagens, assim transmitidas, foram capturadas e tratadas por meio do programa "Image-Pro Plus for Windowsâ", versão 1.2, desenvolvido pela Media Cybernetics (1993- 94), que permite a análise das estruturas histológicas, sendo capaz de realizar diversas medidas e contagem de estruturas teciduais. De cada corte foi analisado um campo aleatório, num total de 8 campos para cada animal.

Estruturas Analisadas
Com aumento de 100 X, foram analisados os volumes parciais da mucosa (Vv m), da muscular da mucosa (Vv mm), da submucosa (Vv s) e da muscular própria (Vv mp). Com aumento de 250 X foi medida a altura das criptas de Lieberkühn (Ac), medida essa realizada diretamente pelo programa, após calibragem do sistema para o aumento utilizado. Com aumento de 500 X, foram analisados os volumes parciais ocupados na mucosa pelo epitélio (Vv epi) e pela lâmina própria (Vv lp).

Análise Estereológica
A análise estereológica para determinação de volumes parciais foi feita por meio da superposição de um sistema teste do tipo ciclóide às imagens dos cortes da parede colônica (Figura-1). Esse sistema-teste era composto por 35 arcos ciclóides e 70 pontos-teste. O volume parcial (Vv) de uma determinada estrutura foi calculado pela razão entre o número de pontos da grade que caíam sobre o elemento em estudo e o número total de pontos da grade. Os cortes histológicos foram realizados para estereologia de cortes verticais5, de acordo com os seguintes pré-requisitos: a)- o tecido deve possuir um eixo vertical identificável, neste estudo representado pelas criptas de Lieberkühn; b)- os cortes verticais devem ser paralelos entre si e normais à horizontal, aqui representada pela interface entre a mucosa e a submucosa; c)- os cortes verticais devem posicionar-se aleatoriamente em relação ao plano horizontal (aleatoriamente rodados em torno do eixo vertical).

 

Figura 1 - Sistema-teste do tipo "ciclóide", aplicado sobre uma imagem de corte histológico da parede colônica (500 X).

 

RESULTADOS
A altura das criptas de Lieberkühn (Ac) variou de 466,73 a 670,80 mm, com mediana de 566,32 mm. A análise, sob aumento de 250 X, mostrou que o volume parcial da mucosa (Vv m) variou de 42,08 a 52,39 %, com mediana de 46,17 %; o volume parcial da muscular da mucosa (Vv mm) variou de 13,57 a 21,88 %, com mediana 18,68 %; enquanto o volume parcial da submucosa (Vv s) variava de 5,51 a 11,06 % ; com mediana de 9,77 %. O volume parcial da muscular própria (Vv mp) variou de 23,27 a 29,00 %, com mediana de 25,82 %. Com aumento de 500 X, verificou-se que o volume parcial do epitélio (Vv epi) variou de 70,35 a 81,07 %, com mediana de 73,39 %, enquanto o volume parcial da lâmina própria (Vv lp) variou de 18,92 a 29,64 %, com mediana de 26,60 %. A análise estatística detalhada desses dados está representada na Tabela-1.

 

Tabela 1 - Resumo estatístico dos diversos parâmetros analisados.

Variável  -95% +95% Med  Mín  Máx  S2 S EP  CE
Ac  10  562,64 516,05 609,23 566,32 466,73 670,80 4241,58 65,12 20,59 3,65
Vv m 10 46,73 44,54 48,93 46,17 42,08 52,39 9,43 3,07  0,97 2,07
Vv s 10  9,29  7,98 10,59 9,77 5,21 11,06 3,33 1,82 0,57 6,13
Vv mp 10  25,72 24,56 26,87 25,82 23,27 29,00 2,61 1,61 0,51 1,98
Vv mm 10  18,24 16,45 20,04 18,68 13,57 21,88 6,29 2,50 0,79  4,33
Vv epi 10  73,98 71,70 76,26 73,39 70,35 81,07 10,16 3,18 1,00 1,35
Vv lp 10  26,01 23,73 28,29 26,60 18,92 29,64 10,16 3,18  1,00 3,84

          

DISCUSSÃO
Segundo os trabalhos de Delesse3, Chalkley6, Weibel & Gomez7 e Elias & Hide8, para serem utilizados os métodos estereológicos, os cortes analisados devem ser isotrópicos, ou seja, os diversos elementos que o constituem devem estar distribuídos ao acaso e homogeneamente no espaço. Dessa forma qualquer corte bidimensional, aleatório e uniformemente isotrópico, passa a ser representativo de um todo tridimensional, independentemente da direção em que esse corte seja realizado.
    A mucosa colônica não é um meio isotrópico, pois possui estruturas de orientação definida, como é o caso das criptas de Lieberkühn, que apresentam disposição paralela entre si e são perpendiculares à superfície mucosa. Para contornar o problema da anisotropia de estruturas como a mucosa colônica, Baddeley et al.5 propuseram o método de estereologia de cortes verticais, no qual os cortes são perpendiculares à uma superfície "horizontal", representada por um plano existente na estrutura em estudo ou criada arbitrariamente pelo pesquisador. Neste estudo, consideramos como plano "horizontal" o limite entre a mucosa e a submucosa. Esses autores ressaltaram que, para a realização da estereologia de cortes verticais, devem ser usados sistemas-teste do tipo "ciclóides" (Figura-1). Os sistemas-teste do tipo ciclóides são grades retangulares construídas por computador, compostas por pontos e linhas-teste curvas que, quando sobrepostas às imagens de cortes histológicos, distribuem-se de modo aleatório e uniformemente isotrópico e, segundo Gundersen et al.9 compensam a anisotropia estrutural dos cortes verticais.
    Elias10 (1981) estudou as alterações da superfície epitelial da mucosa colônica em pólipos adenomatosos. Rodning et al11 (1982) quantificaram as células de Paneth na mucosa ileal de ratos. Baak e Oort12 (1983) quantificaram o número de células contendo diversas imunoglobulinas na mucosa retal de pacientes portadores de doença intestinal inflamatória. Lopes-Paulo13 (1987) quantificou as células cilíndricas e caliciformes em biópsias retais obtidas por retossigmoidoscopia. Esse mesmo autor estudou, ainda, as alterações das diversas camadas da parede colônica em ratos submetidos a colostomia, assim como os efeitos da L-glutamina na sua prevenção, quantificando numericamente as alterações com o uso da estereologia de cortes verticais14.

CONCLUSÃO
A estereologia tem se mostrado, portanto, um método de quantificação confiável, traduzindo numericamente os resultados de trabalhos experimentais, devendo o seu emprego ser considerado quando da realização de estudos que necessitem a comparação de alterações estruturais, quer seja em animais ou em humanos.

Summary: Stereology, also known as morphometry, is a set of methods for quantitation of morphologic structures, being a valuable tool to evaluate results of experimental works. This paper presents the theoretical basis of stereology and a study of the partial volumes of the colon wall layers in adult male Wistar rats, in order to exemplify the use of stereology. That method can aid to get in numbers the results of several studies, allowing confident statistical comparison between study groups.

Key words:
stereology, morphometry, quantitation, colon, structure

Referências Bibliográficas
1. Aherne WA, Dunhill, MS. Morphometry. São Paulo, Edward Arnold, pp. 205, 1982.
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5. Baddeley AJ, Gundersen HJG, Cruz-Orive LM. Estimation of surface area from vertical sections. J Microsc; 142:259-276, 1986
6. Chalkley HW , Cornfield I., Park H. A method for estimating volume-surface ratios. Science; 110: 295-7, 1949.
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10. Elias H, Hyde DM, Mullens RS, Lambert FC. Colonic adenomas: stereology and growth mechanisms. Dis Colon Rectum; 24:331-42, 1981.
11. Rodning CB, Erlandsen SL, Wilson ID, Carprnter AM. Light microscopic morphometric analysis of rat ileal mucosa: component quantitation of Paneth cells. Anat Rec; 204: 33-38, 1982.
12. Baak JPA, Oort J. A manual of morphometry in diagnostic pathology. Berlin, Springer Verlag, pp. 105-108, 1983.
13. Lopes-Paulo F. Estereologia da mucosa retal - ensaio metodológico. Tese de mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 1987.
14. Lopes-Paulo F. Efeitos da L-glutamina na parede do cólon derivado: estudo estereológico experimental em ratos. Tese de doutorado, UFRJ, Rio de Janeiro, 1999.

Endereço para correspondência:
Rua Ferreira Pontes, 430, bloco 1, apt 404
Bairro Andaraí
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E-mail: fpaulo@centroin.com.br

Trabalho realizado na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ  
Disciplina de Cirurgia Proctológica