ARTIGOS ORIGINAIS


ANÁLISE DA PREVALÊNCIA POR SEXO E IDADE NAS DOENÇAS ANORRETAIS FREQÜENTES

Mauro de Souza Leite Pinho - TSBCP
Luís Carlos Ferreira
Evandro C. G. de Vasconcelos
Nilo Antunes de Souza Filho
Marcelo Cechinel Reis


PINHO MS, FERREIRA LC, VASCONCELOS ECG, SOUZA FILHO NA, REIS MC. Análise da prevalência por sexo e idade nas doenças anorretais freqüentes. Rev bras coloproct, 2002(3):158-163

RESUMO: Objetivos: Apresentar uma análise da prevalência referente ao sexo e idade das doenças anorretais mais comuns em ambulatório de Coloproctologia. Pacientes e métodos: De um total de 2323 pacientes atendidos em 88 meses foram incluídos 1024 os quais apresentavam doenças anorretais freqüentes (doença hemorroidária, trombose peri-anal, fissura e fístula anal) conforme critérios rígidos e avaliados pelo mesmo examinador. Resultados e Conclusões: As doenças anorretais freqüentes representaram 44% dos atendimentos e destes, 59% foram pacientes do sexo feminino. Observou-se predominância do sexo masculino para hemoróidas, trombose peri-anal e fístulas/abscessos, enquanto que plicomas e fissuras foram observadas com maior freqüência nas mulheres. A análise de incidência por faixas etárias demonstrou redução gradual com o avanço da idade sugerindo uma etiopatogenia não degenerativa para as doenças analisadas. Estes resultados sugerem a importância do estudo epidemiológico para a compreensão da história natural das doenças anorretais.

Unitermos: doenças anoretais, epidemiologia, sexo, idade

Apesar de sua elevada prevalência, as doenças anorretais comuns são freqüentemente consideradas como distúrbios de baixa complexidade e reduzidos índices de morbi-mortalidade. Como conseqüência, poucos tem sido os estudos referentes à sua epidemiologia, elemento de grande importância para a melhor compreensão de seus aspectos fisiopatológicos e história natural.
    Sendo freqüentemente diagnosticadas e tratadas em âmbito de atenção primária à saúde, diagnósticos inadequados se perpetuam de forma indiscriminada, gerando uma indefinição de conceitos, os quais impossibilitam o desenvolvimento de estudos epidemiológicos de escala maior realizado por médicos especialistas em doenças anorretais.
    O objetivo deste estudo é apresentar uma análise da prevalência, referente a sexo e idade, sobre as doenças anorretais mais freqüentes em pacientes atendidos em um ambulatório especializado em Coloproctologia, por um mesmo médico e seguindo critérios diagnósticos bem definidos, visando identificar possíveis implicações para o conhecimento da história natural destas doenças.

MATERIAIS E MÉTODOS
A partir de um universo total de 2323 pacientes consecutivos atendidos no ambulatório de Coloproctologia do Hospital Municipal São José de Joinville - SC, no período de janeiro de 1994 a maio de 2001, foram incluídos neste estudo 1024 pacientes portadores de doenças anorretais freqüentes, segundo os critérios descritos abaixo:
¨ Doença hemorroidária sintomática caracterizada por queixas de protrusão anal, sangramento ou dor conseqüentes ao rebaixamento e/ou ingurgitação dos coxins venosos anais. Não foram considerados como portadores de doença hemorroidária pacientes cujos sintomas eram decorrentes exclusivamente de processos inflamatórios agudos ou crônicos de pregas cutâneas perianais desenvolvidas, designadas neste estudo como plicomas. Não foram ainda considerados como portadores de doença hemorroidária pacientes com sintomas oriundos de outras patologias cujo exame anorretal revelou a presença de dilatação assintomática de coxins venosos.
¨ Trombose perianal definida pela presença de tumefação aguda em margem anal cutânea, correspondendo à presença de coágulo com bordos bem definidos sem associação a sintomas hemorroidários, conforme estudo publicado anteriormente (1).
¨ Fissura anal caracterizada pela presença de ulceração em epitélio do canal e margem anal, freqüentemente associada à constipação intestinal e provocando sintomas dolorosos à evacuação(2).
¨ Doença fistulosa anal evidenciada através de sua forma crônica pela presença de pelo menos um orifício identificado (interno ou externo) com saída de secreção purulenta, ou de forma aguda pela presença de abcesso perianal sem causa extrínseca aparente, como a presença de corpo estranho, por exemplo (3).
    Todos os pacientes foram avaliados de forma prospectiva por um mesmo examinador (M.P.) e tiveram seus dados cadastrados num sistema informatizado, juntamente com informações incluindo sexo e idade.

RESULTADOS
A prevalência das doenças anorretais comuns incluídas neste estudo foi de 1024 pacientes, representando 44% sobre o total de 2323 pacientes atendidos no período, conforme demonstrado na Tabela-1. A distribuição pôr sexo no grupo total de pacientes mostrou um predomínio do sexo feminino, com 1373 pacientes (59 %) comparados a 1050 pacientes do sexo masculino (41 %).

Doença  n %
Hemorróidas  297 12
Trombose perianal 266  11
Fissura  256  11
Fístulas / abcessos 111  5
Plicomas  94 
Subtotal  1024  44
Tabela 1 - Prevalência das doenças anorretais frequentes na casuística geral do ambulatório de Colo-Proctologia (n = 2323)


    A distribuição por sexo referente às patologias específicas apresentou, no entanto diferenças acentuadas, conforme demonstrado na Tabela-2 e Figura-1.

 

Figura 1 - Prevalência por sexo

 

Doença  Masculino  Feminino
Hemorróidas  183 (62%) 114 (38%)
Trombose perianal 145 (55%) 121 (45%)
Plicomas  12 (12%) 82 (88%)
Fissura 82 (32%) 174 (68%)
Fistulas/abcessos 75 (63%) 36 (37%)
Total  497  527
Tabela 2     

    A análise total do grupo referente à prevalência por faixa etária, conforme observado na Figura-2, demonstra um predomínio entre a terceira e quinta décadas de vida, seguindo-se a partir de então uma redução progressiva de acordo com a idade crescente.

Figura 2 - Doenças anorretais freqüentes - prevalência por faixa etária



    Este padrão de distribuição de prevalência por faixa etária modifica-se ao analisarmos cada doença específica, conforme vemos na Tabela-3 e Figura-3.

 

Doença  Idade
(mediana / anos)
Hemorróidas  46
Trombose perianal 36
Plicomas  37
Fissura  32
Fístulas / abcessos

39

Tabela 3


Figura 3 - Prevalência por faixa etária em cada doença.


 

DISCUSSÃO
Embora as doenças anorretais freqüentes sejam tradicionalmente reconhecidas como a área de atuação mais prevalente dentro da Coloproctologia, o presente estudo revela que sua participação, no total de atendimentos de um movimentado ambulatório especializado no âmbito da medicina pública, atingiu um total de apenas 44%, sendo o restante da procura devido a queixas originárias de distúrbios intestinais ou condições anorretais variadas e com menor freqüência. É importante ressaltar que distúrbios funcionais como a constipação intestinal, a qual representa sem dúvida a queixa abdominal mais freqüente, podem coexistir com as doenças aqui estudadas, uma vez que para cada paciente foi registrado apenas um diagnóstico, considerado como aquele causador dos sintomas responsáveis pela procura ao atendimento médico especializado.
    A análise dos números aqui apresentados nos revela ainda um outro dado conflitante com uma outra crença estabelecida segundo a qual a doença hemorroidária seria a patologia de prevalência bastante superior às outras patologias anorretais. A avaliação rigorosa por um mesmo avaliador, seguindo critérios rígidos capazes de diferenciar condições freqüentemente mal delimitadas como edema de plicomas, trombose perianal ou protrusão hemorroidária, nos mostra que a prevalência da doença hemorroidária sintomática aproxima-se bastante de outras patologias como trombose perianal ou fissura anal. É importante destacar que, em estudo prospectivo previamente realizado, tivemos a oportunidade de demonstrar que a trombose perianal, conforme definida no presente trabalho, não apresenta qualquer relação fisiopatológica com a doença hemorroidária 4.

Prevalência relacionada ao sexo
A observação da prevalência relacionada ao sexo de cada uma das diferentes doenças anorretais freqüentes nos mostra algumas peculiaridades que justificam uma análise relacionada à sua possível fisiopatologia. A predominância da doença hemorroidária sintomática em pacientes do sexo masculino reforça um possível papel etiológico atribuído ao grau de obstrução ao retorno venoso dos coxins anais em conseqüência da pressão esfincteriana, a qual encontra-se em média significativamente superior nos homens, quando comparadas à sua equivalente no sexo feminino5. Interessante ainda notar que a reconhecida maior freqüência da constipação intestinal em pacientes do sexo feminino não contribuiu aparentemente para um aumento da prevalência da doença hemorroidária neste sexo, o que pode sugerir uma confirmação de conceitos atuais, segundo os quais a fisiopatologia das hemorróidas estaria diretamente relacionada a uma maior freqüência defecatória, contrariando conceitos clássicos existentes até então6.
    Ao contrário do acima exposto, o amplo predomínio de mulheres portadoras de fissuras anais no grupo aqui analisado parece confirmar a íntima relação clínica e fisiopatológica entre esta patologia e a constipação intestinal. Da mesma forma, a maciça predominância de plicomas em pacientes do sexo feminino pode refletir sua origem fisiopatológica relacionada à história obstétrica, constipação intestinal ou ambas, através de mecanismos até hoje não esclarecidos de forma adequada.

Prevalência relacionada à idade
A observação da curva de prevalência relacionada à idade nos permite obter importantes informações referentes à história natural das doenças anorretais freqüentes.
    A análise da referida freqüência do grupo como um todo ou através dos subgrupos restritos a cada patologia nos mostra um padrão bastante semelhante entre si e decrescente de acordo com a evolução das faixas etárias. Considerando-se que o acesso ao ambulatório é facultado de forma igualitária a todas as faixas etárias e sociais da população e que eventuais dificuldades de locomoção por parte dos pacientes idosos podem ser provavelmente compensados por uma maior disponibilidade de tempo quando comparados aos indivíduos ainda comprometidos com atividades profissionais, parece-nos válido assumir que a freqüência de atendimentos observada no presente estudo é conseqüência estrita da necessidade de resolução de sintomas existentes. Como possível exceção a esta afirmativa, podemos destacar a demanda para tratamento de plicomas anais, predominantemente feminina e freqüentemente motivada por motivos estéticos, os quais podem ser assumidos como mais reduzidos em faixas etárias mais avançadas.
    No que diz respeito às outras patologias sejam hemorróidas, fissuras, fístulas ou tromboses perianais, a observação do caráter decrescente de sua prevalência com o avanço da idade sugere a ausência de um componente degenerativo em sua fisiopatologia e história natural. Este achado parece-nos facilmente compreensível em pacientes portadores de fissura anal ou trombose perianal, cujas fisiopatologias parecem estar diretamente relacionadas a condições reconhecidamente mais presentes em indivíduos mais jovens como a constipação intestinal e realização de esforços físicos, respectivamente.
    Entretanto, o achado de uma prevalência progressivamente menor de pacientes mais idosos portadores de sintomas de doença hemorroidária sugere um importante questionamento referente à origem degenerativa e ao caráter evolutivo desta doença. Ao contrário, os números encontrados no presente estudo sugerem que os sintomas da doença hemorroidária acometem predominantemente indivíduos na faixa etária situada entre 30 e 50 anos após a qual apresentam-se de forma cada vez menor como causa de procura de atendimento médico. Considerando-se a teoria do deslizamento inferior dos coxins venosos já previamente mencionada como verdadeira 5, pode-se inferir que esta redução gradual dos sintomas hemorroidários possa ser atribuída à concomitante redução da pressão esfincteriana anal relacionada ao avanço da idade em decorrência do processo degenerativo muscular. Quanto à progressivamente menor incidência de pacientes portadores de fístulas anais relacionada à faixa etária, observa-se idêntico perfil epidemiológico na literatura com pico de incidência nas segunda e terceira décadas, diminuição progressiva e redução importante a partir dos 60 anos de idade (7). Em outro estudo epidemiológico, Sainio et cols. (3) relatam semelhanças acerca da incidência, relacionada ao sexo e idade, dos pacientes portadores de fístula anal.
    Assim sendo, o resultado do presente estudo epidemiológico demonstra um importante valor potencial para a melhor compreensão da fisiopatologia e conseqüentemente da história natural das doenças anorretais comuns.

Summary: Aim of the study: To assess the prevalence of common anorectal diseases regarding gender and age incidence. Methods: One thousand twenty four patients with symptomatic hemorroids, anal fistula, anal fissure, perianal thrombosis or perianal skin tags according rigid criteria by the same observer were included in the present study. Results and Conclusions: Fourty-four per cent of all patients who attended the Colo-Proctology Outpatients Clinic during an eighty-eight months period had symptomatic common anorectal diseases with predominance of females (59%). Greater incidence of hemorroids, perianal thrombosis and anal fistula were found in men while anal fissures and skin tags were predominant in women. A decrease of incidence with advancing age suggested a possible non-degenerative component for those disorders as well as the relevance of epidemiological data to understanding the pathophysiology of anorectal diseases.

Key words:
Anorectal diseases, hemorroids, anal fissures, anal fistula, epidemiology

REFERÊNCIAS
1. Arullani A, Berloco P, Alloni R, Altomare V & Ripetti V. Clinical Manifestations and Diagnosis of hemorroids. Ann Ital Chir 1995;66(6): 751-6.
2. Lock MR & Thomson JPS. Fissure-in-ano: the initial management and prognosis. Br J Surg 1977; (64):355-58.
3. Sainio P. Fistula-in-ano in a defined population. Incidence and Epidemiological Aspects.Ann Chir Gynaecol 1984; 73(4):219-24
4. Pinho M, Altenburg F, Kleinubing H, Macedo CF, Vedolin AC, Feistler RS. Trombose perianal não se relaciona com doença hemorroidária. Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões 1999;26 (3): 131-4
5. Thomson WHF. The Nature of Hemorroids.Br J Surg 1975; 62: 542-552
6. Johanson JF & Sonnenberg A. Constipation is not a risk factor for hemorrhoids: a case control study of potential etiological agents. Am J Surg 1994; 89 (11):1981-6.
7. Vasilevski CA & Gordon PH. Results of treatment of fistula-in-ano. Dis Colon Rectum 1984; (28): 225231.

Endereço para correspondência:
Mauro de S. L. Pinho
Rua Palmares, 380
Joinville (SC) - 89 203-230

Trabalho realizado no Departamento de Cirurgia - Hospital Municipal São José - Joinville-SC e Disciplina de Clínica Cirúrgica _ Departamento de Medicina _ UNIVILLE - Joinville-SC