RELATO DE CASO
JOÃO JOSÉ FAGUNDES -TSBCP
JUVENAL RICARDO NAVARRO GÓES-TSBCP
CLÁUDIO SADDY RODRIGUES COY-ASBCP
MARIA DE LOURDES SETSUKO AYRIZONO-ASBCP
MIKI MOCHIZUKI
MARCOS CHADU
LUIZ SÉRGIO LEONARDI
RESUMO: Contrariamente ao megaesôfago, parece ser incomum a associação entre megacólon chagásico e câncer colorretal. Na literatura consultada foram descritos 8 casos, aos quais os autores acrescentam outros 4 de sua experiência. A localização dos tumores vai do ceco ao reto. Ocorreram adenomas em 5 pacientes, sendo 3 destes pertencentes a esta casuística. Há descrito um caso de associação com polipose adenomatosa familiar. A associação relativamente elevada com adenoma faz supor a existência de população cujos riscos sobrepujaram a proteção conferida pela ectasia. O prognóstico parece ser pior.
Unitermos: megacólon chagásico, câncer colorretal, câncer, megacólon
introdução
Os doentes portadores de megaesôfago
chagásico apresentam, de maneira reconhecida, maior
propensão ao desenvolvimento do câncer esofágico em relação
à população geral, variando os índices de 3,9% a
10%(1,9,10). A mesma relação parece não ser observada no
megacólon chagásico. Assim é que apenas oito casos de
associação entre megacólon e câncer puderam ser encontrados
na literatura. Além dessa, relatamos mais 4 casos de
nossa experiência, observados no período de 1984 a 2000.
Os 12 casos estão sumarizados na Tabela-1.
RELATO DOS CASOS
Paciente no 1
Mulher, branca, 47 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas. História
de constipação intestinal crônica, surgindo dor
abdominal nos últimos 6 meses, que progressivamente
se acentuou. Perda de 12kg em 3 meses. O enema
opaco mostrou, além de megassigmóide, lesão vegetante
no cólon descendente cuja biópsia, por
colonoscopia, revelou tratar-se de adenocarcinoma. À
laparotomia encontrou-se extensa carcinomatose peritoneal e
do grande epíploon, além de ascite e fixação do tumor
à parede posterior. Como não havia obstrução, nada
foi feito, ocorrendo o óbito após 3 meses.
Paciente no 2
Homem, branco, 60 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas.
História de constipação intestinal crônica, tendo
surgido diarréia e sangue nas fezes nos últimos 3
meses, quando perdeu 5 kg. O enema opaco mostrava
lesão estenosante na junção retossigmoideana, megarreto
e megassigmoide. O estreitamento mostrou-se
impérvio ao colonoscópio. Metástases hepáticas e
linfonodomegalia foram identificadas pela
tomografia computadorizada. À cirurgia encontrou-se
acentuada dilatação do sigmóide, aglomerados linfonodais
no mesocólon e numerosas metástases hepáticas
sem nenhuma possibilidade de ressecção. Foi
realizada operação de Duhamel-Haddad, com o segundo
tempo realizado 16 dias após. De 39 linfonodos obtidos
do espécime cirúrgico, em 21 havia metástase.
O carcinoma era mucoprodutor e moderadamente diferenciado. Distribuídos entre o cólon
descendente distal e o sigmóide, havia 5 adenomas, entre 3 e
10 mm de diâmetro, sendo 3 sésseis. O exame
histológico confirmou a presença de megacólon. O óbito
ocorreu após 8 meses.
Paciente no 3
Mulher, branca, 74 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas. Tinha
uma cirurgia prévia, sigmoidectomia, realizada 30
anos antes em outro serviço, em razão de
megacólon. Queixava-se de dor abdominal em cólica
e emagrecimento de 6 kg no último ano. Havia
tumor palpável na região epigástrica ao exame
físico.A colonoscopia mostrou anastomose ampla a 20 cm
da borda anal e tumor estenosante no cólon
transverso distal, impérvio ao endoscópio. Acentuada
dilatação do cólon distal ao tumor. Havia um adenoma séssil
de 4 mm de diâmetro, no cólon descendente, retirado
no mesmo ato. À cirurgia, havia dilatação de todo o
cólon. Foi realizada colectomia total e ileorretoanastomose
3 cm acima da reflexão peritoneal. Não se
encontrou metástase em 115 linfonodos examinados. O
exame histológico do cólon mostrou lesões próprias
da desnervação chagásica. A paciente encontra-se
bem, sem evidências de recidiva, após 4 anos.
Paciente no 4
Homem, branco, 64 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas. Já
havia procurado o nosso Serviço 6 anos antes, com
queixas de constipação intestinal de até 1 semana e
disfagia para sólidos. Trazia enema opaco
mostrando megarreto e megassigmóide, com falha de
enchimento no sigmóide proximal. O estudo radiológico
do esôfago, estômago e duodeno era normal.
À colonoscopia, visualizava-se no sigmóide pólipo
séssil de 3,5 cm de diâmetro, sendo considerada
impraticável a ressecção endoscópica. A biópsia
mostrou tratar-se de adenoma túbulo-viloso. Foi
convocado logo após para internação e cirurgia, quando
se apresentou com pneumonia; orientado para
tratamento ambulatorial, não mais retornou e nem pôde
ser encontrado. Após 6 anos, as queixas ainda eram
as mesmas, mas com piora da disfagia,
caracterizando-se o megaesôfago como grau III. À colonoscopia,
não ocorreu aumento do adenoma cólico,
porém apareceram áreas de adenocarcinoma à biópsia.
Não referia emagrecimento. À cirurgia,
realizou-se inicialmente o tratamento do megaesôfago,
pela cardiomiotomia e fundoplicatura. Em relação
ao cólon, realizou-se operação de
Duhamel-Haddad, adicionados critérios de radicalidade oncológica.
O 2o tempo foi realizado após 15 dias. A lesão
descrita situava-se no início da porção dilatada do
sigmóide, tendo o exame histológico mostrado
adenocarcinoma bem diferenciado, em adenoma
túbulo-viloso malignizado. Havia infiltração até à submucosa.
Não havia metástase em 15 linfonodos
examinados. Confirmou-se megacólon. O paciente
encontra-se bem após 1 ano.
DISCUSSÃO
É reconhecida a associação entre o
megaesôfago chagásico e o câncer, inclusive com
implicações práticas de seguimento endoscópico
desses pacientes. Em relação à colopatia chagásica,
parece que essa associação além de não ser válida, é
até negativa, dados os poucos casos descritos
que totalizam o número de 12 quando somados aos 4
deste trabalho.
Deve admitir-se, de início, que
haja subavaliação, já que outros casos possivelmente
não foram relatados ou mesmo diagnosticados.
Outra possibilidade é a de publicações cujas referências
não pudemos encontrar ou de comunicações em
congressos médicos cujos programas e anais nem sempre
são disponíveis.
Curiosamente, o Tripanossoma cruzi já
foi objeto de pesquisa experimental em bioterapia para
o câncer (5,6,14).
Garcia e col. (4), produzindo
megacólon químico experimental em ratos pela aplicação
tópica do cloreto de benzolcórnio, de certa forma
os protegiam do câncer cólico induzido
pela dimetilhidrazina. Com base nesse achado
experimental e em experiência clínica, reforçaram o
axioma de que o megacólon é protegido contra o câncer.
Não referem nenhum caso de câncer em 802
espécimes cirúrgicos. Aventaram a possibilidade da proteção
ser conferida por fatores neurais ou intraluminares
ainda não conhecidos e que seriam secundários
à desnervação.
Em relação ao esôfago, Lopes
(8) sugere que a relação do câncer, como na acalasia, é com o mega,
e não com a doença de Chagas, corroborando os
achados de Garcia e col. em relação ao cólon.
Os trabalhos de estudo em necropsia
também apontam para a rareza da associação megacólon
e câncer (8,9,13).
Na revisão dos casos descritos, alguns
fatos podem ser considerados. Em relação à idade,
embora sejam muito poucos, e em 4 casos ela não foi
referida, observa-se tendência para a mesma faixa do
câncer colorretal, com média de 63 anos, sendo a menor
idade de 47 anos. Existem 5 homens e 4 mulheres, não
sendo referido o sexo em 4 pacientes (Tabela-1).
Tabela 1 - Casos relatados da associação entre megacólon chagásico e câncer
Autor | Ano | Idade | Sexo | Localização | Associação com adenoma | Cirurgia | Estadiamento | Sobrevida | Referência |
Rezende | 1988 | n.r. | n.r. | colón direito | n.r. | n.r. | n.r. | n.r | 12 |
Lima | 1988 | n.r. | n.r. | retossigmoide | 2 adenomas vilosos | n.r. | n.r. | n.r | 7 |
Pucci | 1988 | n.r. | n.r. | sigmoide | polipose multipla familiar | n.r. | n.r. | n.r | 11 |
Meneses e col | 1989 | n.r. | n.r. | reto | não | achado de necrópsia | n.r. | - | 9 |
Oliveira e col | 1997 | 64 | m | transverso | não | n.r. | t2nomo | 7 meses | 10 |
57 | f | transverso | não | n.r. | t2nomo | 9 meses | |||
Gabriel Neto e col | 1998 | 84 | m | ceco | não | hemicolectomia direita | dukes c | n.r | 3 |
Crema e col | 1999 | 60 | m | sigmóide | não | hartman | dukes c | bem após 2 anos | 2 |
47 | f | descendente | não | laparotomia exploradora | t4n3m1 | 3 meses | |||
Fagundes e col | 2001 | 60 | m | retossigmoide | 5 adenomas em sigmoide e descendente | duhamel- haddad | t4n3m1 | 8 meses | presente casuística |
74 | f | transverso | 1 adenoma no descendente | colectomia total | t4nomo | bem após 4 anos | |||
64 | m | sigmóide | adenoma malignado | duhamel-haddad | t1nomo | bem após | |||
N.R. _ não referido |
Em relação à localização do tumor,
existe distribuição uniforme do ceco ao reto (Tabela-1).
Em 2 vezes apareceu no cólon direito, em 3 vezes
no transverso, em 1 no descendente, 3 no sigmóide, 2
na junção retossigmoideana e outra no reto. Também
é tido como muito raro o surgimento do câncer na
porção dilatada do sigmóide
(10). Na análise dos casos
descritos, há um relato de localização na junção
retossigmoideana e 2 outros no sigmóide, locais, pelo menos no
primeiro caso, de razoável possibilidade de dilatação. Na
nossa casuística de 4 pacientes, 2 deles tinham seus
tumores na porção dilatada, um no início da parte ectasiada
do sigmóide e outro na junção com o reto que
também estava dilatado.
Quanto à presença de adenomas
concomitantes, em 11 vezes em que houve
referência, estavam presentes em 4 pacientes, inclusive em 2
dos nossos. Pode ser considerada freqüência elevada,
36% do total e em 2 dos nossos 4 doentes. Em um
caso havia polipose múltipla
familiar(11) e com certeza foi muito significativo este peso na degeneração
maligna. Em outros 2 casos havia mais de um adenoma, em
um deles(7) 2 adenomas vilosos.
Dos nossos 4 doentes, em 2 havia adenomas síncronos, enquanto em um terceiro malignizou-se
um pólipo viloso. Um dos pacientes apresentava
5 adenomas distribuídos pelo sigmóide e
descendente distal, inclusive na porção dilatada, sendo 2
sésseis. Em outro doente o adenoma, único, foi retirado
à colonoscopia e situava-se no descendente. No
outro caso, documentou-se a transformação maligna de
um pólipo viloso no intervalo de 6 anos, período em que
o paciente não mais retornou e nem pôde ser
encontrado. O tumor encontrava-se na parte dilatada do sigmóide.
Portanto, além da freqüência
relativamente elevada de pólipos, em 3 casos tratava-se de
adenomas múltiplos com características particulares
de expressivo potencial para malignização.
Pode-se especular se a proteção da ectasia não havia
sido quebrada por uma genética mais agressiva
para carcinogênese nesses pacientes.
Em relação às cirúrgicas realizadas, além
de um achado de necropsia, em 5 vezes não foi referida
a técnica empregada. Em um dos nossos casos nada
foi feito em razão da carcinomatose avançada. Em
outro caso foi realizada colectomia total e
ileorretoanastomose pouco acima da reflexão peritoneal em
paciente anteriormente submetida à sigmoidectomia e
com importante dilatação total do cólon por recidiva.
Havia opção por Duhamel feito com o cólon direito,
preterida em favor da colectomia total, dada a grande ectasia
do ceco e ascendente. Pela idade, condições gerais
e anastomose relativamente baixa, é provável que
não ocorra recidiva no íleo. Nos outros 2 doentes foi
feita a operação de Duhamel-Haddad, com critérios
de radicalidade oncológica; ligadura alta dos
vasos mesentéricos inferiores, descolamento de todo o
cólon transverso e abaixamento do descendente
proximal nutrido pela artéria cólica média.
O prognóstico parece não ser
particularmente bom. Dos 12 casos revistos, um foi achado
de necropsia, sendo a sobrevida não referida em 4
doentes. Dos 7 referidos, 4 sobreviveram de 3 a 9 meses.
Outros 2 doentes estavam bem após 1 e 2 anos e o
restante após 4 anos. A concomitância do megacólon com
seus sintomas próprios deve mascarar a presença do
câncer, podendo conduzir à postergação de
propedêutica adequada.
A presença de megaesôfago foi referida em
2 doentes, além de outro de nossa experiência.
Este último foi operado no mesmo ato, o que é
perfeitamente possível e deve ser feito, tendo em vista a
baixa morbidade e pouco tempo operatório acrescentado
pela cardioplastia.
Pela raridade da associação megacólon
e câncer, não há necessidade de
monitoramento colonoscópico dos pacientes e nem adoção da
feitura de enema opaco por quem não o solicita quando
o diagnóstico de ectasia cólica é nítido. Deve existir
sim, elevado grau de suspeição quando qualquer fato
se modifique na história do portador de
megacólon chagásico. A história familiar de adenoma deve
ser investigada como fator de risco.
SUMMARY: Contrarily to the chagasic megaesophagus, the association between chagasic megacolon and colorectal cancer is quite unusual. Eight cases have been reported and the authors are adding four other cases. Locations of the 12 cases are from the cecum to the rectum. Adenomas were associated to cancer in five patients, being three from this series. One case had the association between cancer and familial polyposis. The frequent association with adenoma may suggest a group of patients under more aggressive biological conditions, overcoming the apparent protection given by the colon ectasia. Prognosis of this tumor is admitted to be worse than the regular one.
Key words: chagasic megacolon, colorectal cancer, cancer, megacolon
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Endereço para Correspondência:
João José Fagundes
Rua Conceição, n° 622 - Apto. 21
Bairro Centro
13010-050 - Campinas - (SP)
* Trabalho realizado no Serviço de Colo-Proctologia da Disciplina de Moléstias do Aparelho Digestivo do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.