RELATO DE CASO


ASSOCIAÇÃO ENTRE MEGACÓLON CHAGÁSICO E CÂNCER DO INTESTINO GROSSO: APRESENTAÇÃO DE CASOS E REVISÃO DA LITERATURA

JOÃO JOSÉ FAGUNDES -TSBCP
JUVENAL RICARDO NAVARRO GÓES-TSBCP
CLÁUDIO SADDY RODRIGUES COY-ASBCP
MARIA DE LOURDES SETSUKO AYRIZONO-ASBCP
MIKI MOCHIZUKI
MARCOS CHADU
LUIZ SÉRGIO LEONARDI


FAGUNDES JJ, GÓES JRN, COY CSR, AYRIZONO MLS, MOCHIZUKI M, CHADU M, LEONARDI LS. Associação entre Megacólon Chagásico e Câncer do Intestino Grosso: Apresentação de Casos e Revisão da Literatura. Rev bras Coloproct, 2002;22(4): 252-256. 

RESUMO: Contrariamente ao megaesôfago, parece ser incomum a associação entre megacólon chagásico e câncer colorretal. Na literatura consultada foram descritos 8 casos, aos quais os autores acrescentam outros 4 de sua experiência. A localização dos tumores vai do ceco ao reto. Ocorreram adenomas em 5 pacientes, sendo 3 destes pertencentes a esta casuística. Há descrito um caso de associação com polipose adenomatosa familiar. A associação relativamente elevada com adenoma faz supor a existência de população cujos riscos sobrepujaram a proteção conferida pela ectasia. O prognóstico parece ser pior.

Unitermos: megacólon chagásico, câncer colorretal, câncer, megacólon

introdução
Os doentes portadores de megaesôfago chagásico apresentam, de maneira reconhecida, maior propensão ao desenvolvimento do câncer esofágico em relação à população geral, variando os índices de 3,9% a 10%(1,9,10). A mesma relação parece não ser observada no megacólon chagásico. Assim é que apenas oito casos de associação entre megacólon e câncer puderam ser encontrados na literatura. Além dessa, relatamos mais 4 casos de nossa experiência, observados no período de 1984 a 2000. Os 12 casos estão sumarizados na Tabela-1.

RELATO DOS CASOS

Paciente no 1
Mulher, branca, 47 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas. História de constipação intestinal crônica, surgindo dor abdominal nos últimos 6 meses, que progressivamente se acentuou. Perda de 12kg em 3 meses. O enema opaco mostrou, além de megassigmóide, lesão vegetante no cólon descendente cuja biópsia, por colonoscopia, revelou tratar-se de adenocarcinoma. À laparotomia encontrou-se extensa carcinomatose peritoneal e do grande epíploon, além de ascite e fixação do tumor à parede posterior. Como não havia obstrução, nada foi feito, ocorrendo o óbito após 3 meses.

Paciente no 2
Homem, branco, 60 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas. História de constipação intestinal crônica, tendo surgido diarréia e sangue nas fezes nos últimos 3 meses, quando perdeu 5 kg. O enema opaco mostrava lesão estenosante na junção retossigmoideana, megarreto e megassigmoide. O estreitamento mostrou-se impérvio ao colonoscópio. Metástases hepáticas e linfonodomegalia foram identificadas pela tomografia computadorizada. À cirurgia encontrou-se acentuada dilatação do sigmóide, aglomerados linfonodais no mesocólon e numerosas metástases hepáticas sem nenhuma possibilidade de ressecção. Foi realizada operação de Duhamel-Haddad, com o segundo tempo realizado 16 dias após. De 39 linfonodos obtidos do espécime cirúrgico, em 21 havia metástase. O carcinoma era mucoprodutor e moderadamente diferenciado. Distribuídos entre o cólon descendente distal e o sigmóide, havia 5 adenomas, entre 3 e 10 mm de diâmetro, sendo 3 sésseis. O exame histológico confirmou a presença de megacólon. O óbito ocorreu após 8 meses.

Paciente no 3
Mulher, branca, 74 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas. Tinha uma cirurgia prévia, sigmoidectomia, realizada 30 anos antes em outro serviço, em razão de megacólon. Queixava-se de dor abdominal em cólica e emagrecimento de 6 kg no último ano. Havia tumor palpável na região epigástrica ao exame físico.A colonoscopia mostrou anastomose ampla a 20 cm da borda anal e tumor estenosante no cólon transverso distal, impérvio ao endoscópio. Acentuada dilatação do cólon distal ao tumor. Havia um adenoma séssil de 4 mm de diâmetro, no cólon descendente, retirado no mesmo ato. À cirurgia, havia dilatação de todo o cólon. Foi realizada colectomia total e ileorretoanastomose 3 cm acima da reflexão peritoneal. Não se encontrou metástase em 115 linfonodos examinados. O exame histológico do cólon mostrou lesões próprias da desnervação chagásica. A paciente encontra-se bem, sem evidências de recidiva, após 4 anos.

Paciente no 4
Homem, branco, 64 anos. Antecedentes e sorologia positivos para doença de Chagas. Já havia procurado o nosso Serviço 6 anos antes, com queixas de constipação intestinal de até 1 semana e disfagia para sólidos. Trazia enema opaco mostrando megarreto e megassigmóide, com falha de enchimento no sigmóide proximal. O estudo radiológico do esôfago, estômago e duodeno era normal. À colonoscopia, visualizava-se no sigmóide pólipo séssil de 3,5 cm de diâmetro, sendo considerada impraticável a ressecção endoscópica. A biópsia mostrou tratar-se de adenoma túbulo-viloso. Foi convocado logo após para internação e cirurgia, quando se apresentou com pneumonia; orientado para tratamento ambulatorial, não mais retornou e nem pôde ser encontrado. Após 6 anos, as queixas ainda eram as mesmas, mas com piora da disfagia, caracterizando-se o megaesôfago como grau III. À colonoscopia, não ocorreu aumento do adenoma cólico, porém apareceram áreas de adenocarcinoma à biópsia. Não referia emagrecimento. À cirurgia, realizou-se inicialmente o tratamento do megaesôfago, pela cardiomiotomia e fundoplicatura. Em relação ao cólon, realizou-se operação de Duhamel-Haddad, adicionados critérios de radicalidade oncológica. O 2o tempo foi realizado após 15 dias. A lesão descrita situava-se no início da porção dilatada do sigmóide, tendo o exame histológico mostrado adenocarcinoma bem diferenciado, em adenoma túbulo-viloso malignizado. Havia infiltração até à submucosa. Não havia metástase em 15 linfonodos examinados. Confirmou-se megacólon. O paciente encontra-se bem após 1 ano.

DISCUSSÃO
É reconhecida a associação entre o megaesôfago chagásico e o câncer, inclusive com implicações práticas de seguimento endoscópico desses pacientes. Em relação à colopatia chagásica, parece que essa associação além de não ser válida, é até negativa, dados os poucos casos descritos que totalizam o número de 12 quando somados aos 4 deste trabalho.
    Deve admitir-se, de início, que haja subavaliação, já que outros casos possivelmente não foram relatados ou mesmo diagnosticados. Outra possibilidade é a de publicações cujas referências não pudemos encontrar ou de comunicações em congressos médicos cujos programas e anais nem sempre são disponíveis.
    Curiosamente, o Tripanossoma cruzi já foi objeto de pesquisa experimental em bioterapia para o câncer (5,6,14).
    Garcia e col. (4), produzindo megacólon químico experimental em ratos pela aplicação tópica do cloreto de benzolcórnio, de certa forma os protegiam do câncer cólico induzido pela dimetilhidrazina. Com base nesse achado experimental e em experiência clínica, reforçaram o axioma de que o megacólon é protegido contra o câncer. Não referem nenhum caso de câncer em 802 espécimes cirúrgicos. Aventaram a possibilidade da proteção ser conferida por fatores neurais ou intraluminares ainda não conhecidos e que seriam secundários à desnervação.
    Em relação ao esôfago, Lopes (8) sugere que a relação do câncer, como na acalasia, é com o mega, e não com a doença de Chagas, corroborando os achados de Garcia e col. em relação ao cólon.
    Os trabalhos de estudo em necropsia também apontam para a rareza da associação megacólon e câncer (8,9,13).
    Na revisão dos casos descritos, alguns fatos podem ser considerados. Em relação à idade, embora sejam muito poucos, e em 4 casos ela não foi referida, observa-se tendência para a mesma faixa do câncer colorretal, com média de 63 anos, sendo a menor idade de 47 anos. Existem 5 homens e 4 mulheres, não sendo referido o sexo em 4 pacientes (Tabela-1).

Tabela 1 - Casos relatados da associação entre megacólon chagásico e câncer

Autor    Ano  Idade  Sexo  Localização  Associação com adenoma Cirurgia  Estadiamento  Sobrevida  Referência
Rezende    1988  n.r. n.r. colón direito n.r. n.r. n.r. n.r 12
Lima    1988  n.r. n.r. retossigmoide  2 adenomas vilosos n.r. n.r. n.r
Pucci    1988  n.r. n.r. sigmoide polipose multipla familiar n.r.  n.r. n.r 11
Meneses e col 1989   n.r.  n.r.  reto não achado de necrópsia n.r. - 9
Oliveira e col  1997  64 m transverso  não n.r. t2nomo 7 meses 10 
57 f transverso não n.r. t2nomo 9 meses
Gabriel Neto e col 1998  84 m ceco não hemicolectomia direita  dukes c n.r 3
Crema e col 1999  60 m sigmóide não hartman dukes c bem após 2 anos
47  f  descendente não laparotomia exploradora t4n3m1 3 meses 
Fagundes e col 2001 60 m retossigmoide 5 adenomas em sigmoide e descendente  duhamel- haddad  t4n3m1 8 meses presente casuística
74  f  transverso 1 adenoma no descendente colectomia total t4nomo bem após 4 anos 
64 m sigmóide  adenoma malignado duhamel-haddad t1nomo bem após 
N.R. _ não referido

    Em relação à localização do tumor, existe distribuição uniforme do ceco ao reto (Tabela-1). Em 2 vezes apareceu no cólon direito, em 3 vezes no transverso, em 1 no descendente, 3 no sigmóide, 2 na junção retossigmoideana e outra no reto. Também é tido como muito raro o surgimento do câncer na porção dilatada do sigmóide (10). Na análise dos casos descritos, há um relato de localização na junção retossigmoideana e 2 outros no sigmóide, locais, pelo menos no primeiro caso, de razoável possibilidade de dilatação. Na nossa casuística de 4 pacientes, 2 deles tinham seus tumores na porção dilatada, um no início da parte ectasiada do sigmóide e outro na junção com o reto que também estava dilatado.
    Quanto à presença de adenomas concomitantes, em 11 vezes em que houve referência, estavam presentes em 4 pacientes, inclusive em 2 dos nossos. Pode ser considerada freqüência elevada, 36% do total e em 2 dos nossos 4 doentes. Em um caso havia polipose múltipla familiar(11) e com certeza foi muito significativo este peso na degeneração maligna. Em outros 2 casos havia mais de um adenoma, em um deles(7) 2 adenomas vilosos.
    Dos nossos 4 doentes, em 2 havia adenomas síncronos, enquanto em um terceiro malignizou-se um pólipo viloso. Um dos pacientes apresentava 5 adenomas distribuídos pelo sigmóide e descendente distal, inclusive na porção dilatada, sendo 2 sésseis. Em outro doente o adenoma, único, foi retirado à colonoscopia e situava-se no descendente. No outro caso, documentou-se a transformação maligna de um pólipo viloso no intervalo de 6 anos, período em que o paciente não mais retornou e nem pôde ser encontrado. O tumor encontrava-se na parte dilatada do sigmóide.
    Portanto, além da freqüência relativamente elevada de pólipos, em 3 casos tratava-se de adenomas múltiplos com características particulares de expressivo potencial para malignização. Pode-se especular se a proteção da ectasia não havia sido quebrada por uma genética mais agressiva para carcinogênese nesses pacientes.
    Em relação às cirúrgicas realizadas, além de um achado de necropsia, em 5 vezes não foi referida a técnica empregada. Em um dos nossos casos nada foi feito em razão da carcinomatose avançada. Em outro caso foi realizada colectomia total e ileorretoanastomose pouco acima da reflexão peritoneal em paciente anteriormente submetida à sigmoidectomia e com importante dilatação total do cólon por recidiva. Havia opção por Duhamel feito com o cólon direito, preterida em favor da colectomia total, dada a grande ectasia do ceco e ascendente. Pela idade, condições gerais e anastomose relativamente baixa, é provável que não ocorra recidiva no íleo. Nos outros 2 doentes foi feita a operação de Duhamel-Haddad, com critérios de radicalidade oncológica; ligadura alta dos vasos mesentéricos inferiores, descolamento de todo o cólon transverso e abaixamento do descendente proximal nutrido pela artéria cólica média.
    O prognóstico parece não ser particularmente bom. Dos 12 casos revistos, um foi achado de necropsia, sendo a sobrevida não referida em 4 doentes. Dos 7 referidos, 4 sobreviveram de 3 a 9 meses. Outros 2 doentes estavam bem após 1 e 2 anos e o restante após 4 anos. A concomitância do megacólon com seus sintomas próprios deve mascarar a presença do câncer, podendo conduzir à postergação de propedêutica adequada.
    A presença de megaesôfago foi referida em 2 doentes, além de outro de nossa experiência. Este último foi operado no mesmo ato, o que é perfeitamente possível e deve ser feito, tendo em vista a baixa morbidade e pouco tempo operatório acrescentado pela cardioplastia.
    Pela raridade da associação megacólon e câncer, não há necessidade de monitoramento colonoscópico dos pacientes e nem adoção da feitura de enema opaco por quem não o solicita quando o diagnóstico de ectasia cólica é nítido. Deve existir sim, elevado grau de suspeição quando qualquer fato se modifique na história do portador de megacólon chagásico. A história familiar de adenoma deve ser investigada como fator de risco.

SUMMARY: Contrarily to the chagasic megaesophagus, the association between chagasic megacolon and colorectal cancer is quite unusual. Eight cases have been reported and the authors are adding four other cases. Locations of the 12 cases are from the cecum to the rectum. Adenomas were associated to cancer in five patients, being three from this series. One case had the association between cancer and familial polyposis. The frequent association with adenoma may suggest a group of patients under more aggressive biological conditions, overcoming the apparent protection given by the colon ectasia. Prognosis of this tumor is admitted to be worse than the regular one.

Key words: chagasic megacolon, colorectal cancer, cancer, megacolon

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Brandalise, NA; Andreollo, NA; Leonardi, LS & Callejas Neto, F _ Carcinoma associado a megaesôfago chagásico. Rev. Col. Bras. Cir., 12: 196-199, 1985.
2. Crema, E; Lima, VGF; Madureira, AB; Adad, SJ; Silva, AA; Oliveira, CB & Martins Jr, A _ Associação de neoplasia obstrutiva com megacólon chagásico. Rev. Bras. Coloproct, 19(supl.1): 87, 1999.
3. Gabriel-Neto, S; Oliveira, EC; Carmo, FV; Conceição, DC; Mendonça, GG; Leite, MSB & Luquetti, AO _ Megacólon chagásico associado a adenocarcinoma de cólon. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., 31, (supl. 3): 46, 1998.
4. Garcia, SB; Oliveira, JS; Pinto, LS; Mucillo, G & Zucoloto, S _ The relationship between megacolon and carcinoma of the colon: an experimental approach. Carcinogenesis, 17: 1777-1779, 1996.
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11. Pucci, H. Citado por Meneses e col, 1989.
12. Rezende, JM. Citado por Meneses e col, 1989.
13. Rocha, A; Henrique, D; Borges, EG; Oliveira, VL; Soares, VMG; Moraes, AT; Teixeira, VPA & Almeida, HO _ Complicações do megacólon e megaesôfago chagásicos observados em necrópsia. Rev. Goiana Med., 27: 53-62, 1981.
14. Roskin, G & Exempliarskaia, E _ Protozoeninfection und experimentaller Krebs. Z. Rebsforsch, 34: 628-645, 1931.

Endereço para Correspondência:
João José Fagundes
Rua Conceição, n° 622 - Apto. 21
Bairro Centro
13010-050 - Campinas - (SP)

* Trabalho realizado no Serviço de Colo-Proctologia da Disciplina de Moléstias do Aparelho Digestivo do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.