RELATO DE CASO
JOÃO BATISTA PINHEIRO BARRETO - ASBCP
JOAQUIM DAVID CARNEIRO NETO
PAULO WAGNER LINHARES LIMA FILHO
YGLÉSIO LUCIANO MOYSÉS SILVA DE SOUZA
Unitermos: tuberculose entérica, tuberculose extra-pulmonar, fístula êntero-cutânea, tuberculose abdominal
INTRODUÇÃO
A tuberculose é uma doença
infecciosa transmissível causada pelo Mycobacterium
tuberculosis. Apenas cerca de 1% dos pacientes com
tuberculose pulmonar tem envolvimento intestinal.
Praticamente em todos os casos, a infecção é devida
ao Mycobacterium tuberculosis, mesmo em países
onde a tuberculose bovina encontra-se
prevalente1. Com o advento da AIDS, houve um aumento significativo
de sua incidência neste grupo de
pacientes2. No Brasil, é excepcional a constatação da variedade bovina
como agente etiológico das lesões intestinais. Vários
mecanismos patogênicos estão envolvidos: deglutição
de escarro com semeadura direta, disseminação
hematogênica ou, raramente, cerca de 10%, ingestão de
leite infectado pela cepa bovina.
A região íleocecal constitui o sítio de
comprometimento entérico em cerca de 85% dos
pacientes3, presumivelmente devido à abundância de tecido
linfóide nessa área.
O fato de a tuberculose intestinal simular neoplasia e doença de Crohn complica bastante o
estabelecimento do diagnóstico, quase sempre feito
por exclusão, e, conseqüentemente, dificultando a
terapêutica a ser instituída. A fístula êntero-cutânea
espontânea é um evento raro, aumentando
significativamente a semelhança com a doença de Crohn.
RELATO DO CASO
Paciente de 29 anos, masculino, natural de Bacabal, Maranhão, apresentava há 1 mês quadro
de dor abdominal em flanco esquerdo, em peso e
contínua, fezes pastosas com 4 evacuações ao dia,
tenesmo e hematoquezia. Após uma semana do início dos
sintomas, apresentou febre diária e vespertina que
cessava com uso de antitérmico. Duas semanas após
notou presença de massa umbilical dolorosa à palpação
que fistulizou, drenando material purulento (Figura-1).
Procurou assistência médica em Pronto-Socorro no
estado do Piauí, onde foi realizado somente curativo
cirúrgico (sic). Paciente relata ainda perda ponderal de
10 kg em 1 mês.
Figura 1 - Material purulento drenado pela fístula colo-cutânea e exteriorizado através da cicatriz umbilical. |
Com o quadro acima e sem melhora dos sintomas, procurou o Serviço de Coloproctologia do
Hospital Universitário, onde foi internado para
investigação diagnóstica. Na admissão, foram realizados
exames laboratoriais, sendo evidenciados
leucopenia (3.140 leucócitos/mm3) e discreta alteração na
velocidade de hemossedimentação (44). A avaliação
radiológica simples de tórax e abdome mostrou-se
normal. O clister opaco revelou presença de trajeto
fistuloso colo-cutâneo em abdome inferior (Figura-2).
A colonoscopia e o exame histopatológico da
biópsia endoscópica foram sugestivos de doença de Crohn.
Figura 2 - Clister opaco evidenciando a fístula colo-cutânea espontânea. |
O paciente foi submetido à laparotomia
exploradora, sendo observado grande número de
aderências entre alças delgadas, epíplon e cólon esquerdo,
além de numerosos linfonodos acometidos em mesentério
e parede intestinal (Figura-3). Após inventário da
cavidade e adesiólise, foi feita colectomia esquerda e
confecção de colostomia terminal com fechamento do
coto retal (Colostomia à Hartman).
Figura 3 - Lesões do intestino delgado e mesentério. |
Com boa evolução pós-operatória, o
paciente recebeu alta assintomático. Quinze dias após,
retornou ao Serviço de Coloproctologia apresentando dor
abdominal, edema e secreção de material purulento
pela ferida operatória, além de constipação.
O laudo histopatológico demonstrou
processo inflamatório crônico granulomatoso com trajeto
fistuloso e linfadenite específica sugestivo de tuberculose
intestinal, embora a pesquisa de BAAR tenha sido negativa.
Iniciou-se esquema tríplice de isoniazida
(INH) (400mg/dia), pirazinamida (PZA) (2g/dia) e
rifampicina (RFM) (600mg/dia), durante 2 meses e permaneceu
com o esquema duplo rifampicina e isoniazida por mais
4 meses, apresentando remissão total dos sintomas.
DISCUSSÃO
A tuberculose entérica continua sendo um
problema nos países em desenvolvimento. O bacilo
localiza-se nas glândulas mucosas e dissemina-se para
as placas de Peyer, onde a inflamação, a destruição
de tecidos e as tentativas locais de defesa originam os
sintomas.
São observados dois padrões de
comprometimento: o hipertrófico, quando ocorre estenose
com sintomatologia obstrutiva; e o ulcerativo, que causa
dor abdominal e constipação alternada com diarréia.
No exame físico, podemos encontrar massa ou tumor
palpável, hepatoesplenomegalia, ascite e fístulas anais
ou internas4.
Pode haver perfuração livre e formação
de fístula, que é um achado pouco freqüente,
ocorrendo principalmente nos casos graves não tratados.
O diagnóstico não costuma ser
estabelecido pré-operatoriamente; somente 50% dos pacientes
tem sinais de tuberculose pulmonar ativa e 45%,
testes cutâneos negativos.
Entretanto, não se deve basear somente na
suspeita clínica isolada, pois o quadro clínico é
inespecífico, sendo os sintomas compatíveis com outras
doenças intestinais, como a retocolite ulcerativa
inespecífica, sarcoidose, amebíase, histoplasmose e a
doença de Crohn. Quando a diarréia está presente,
aumentam as dificuldades no diagnóstico diferencial com
doença de Crohn. Massa abdominal palpável, presente em
50% a 80% dos pacientes, além de emagrecimento são
comuns e sugerem processo
neoplásico5.
As complicações podem ser um quadro
obstrutivo, hemorrágico ou disarbsortivo conseqüente
ao extenso comprometimento da mucosa intestinal.
O diagnóstico específico só poderá ser
assegurado pela demonstração histológica de bacilos
álcool-ácido resistentes na lesão ou pela cultura,
presença de necrose caseosa e evidências
histológicas específicas em linfonodos regionais. Mesmo em
peças cirúrgicas, o encontro dos bacilos e de
necrose caseosa não é freqüente, embora sejam,
algumas vezes, encontrados nos linfonodos. Havendo associação de lesão pulmonar, o diagnóstico
é evidente; na sua falta, com exames bacteriológico
ou histopatológico negativos, o diagnóstico
provável pode apoiar-se na prova terapêutica
específica6. A laparotomia e o exame anatomopatológico da
alça intestinal ressecada foram necessários
para demonstrar o organismo.
A presença de processos tuberculosos nas
margens da ressecção não indica a formação de
fístulas
pós-operatórias7.
A quimioterapia antituberculosa é a base
terapêutica, usando-se o esquema tríplice de PZA, INH
e RFM. A indicação cirúrgica é obrigatória para as
formas estenóticas, obstrutivas, hipertróficas,
abdome agudo e fístula. A conduta ideal é a ressecção
seguida de anastomose nos casos eletivos. O prognóstico é
bom quando o paciente for operado nos estágios iniciais
da doença e se associado ao tratamento clínico,
semelhante ao da forma pulmonar.
SUMMARY: The tuberculosis (TB), an entity caused by bacteria belonging to the compound constituted by the Mycobacterium tuberculosis, has a universal distribution in the organism and may reach any organ. In Brazil, the enteric tuberculosis, in the absence of active or scarred lung tuberculosis is rare, being frequently confused with neoplasia and Crohn's disease. The spontaneous enterocutaneous fistula is a rare event in those patients. The authors present a case of a 29 year-old patient with dysenteric syndrome and enterocutaneous fistula that was submitted to a sygmoidectomy. The diagnosis of enteric tuberculosis was confirmed after the therapeutic test. The colonoscopy and the endoscopic biopsy pointed to inflammatory intestinal disease (Crohn). Histopatology observed a chronic granulomatous process suggesting intestinal tuberculosis with a fistulous itinerary and specific lymphadenitis, although the research of BAAR has been negative. Initially, the patient showed good evolution, but fifteen days after hospital discharge, he presented abdominal pain, bloat and elimination of festering secretion for the operative wound, besides constipation. He was treated clinically with isoniazid , pyrazinamide and rifampin for two months. After that, he continued on rifampin and isoniazid for four months, obtaining redemption of the symptoms. The diagnosis of enteric tuberculosis is quite difficult and the specific diagnosis must be secured by finding the bacillus in the direct exam or in the culture. Associated with lung lesions, the diagnosis is evident; in its absence, with negative bacteriological or histopatologic exams, the probable diagnosis can be assured by the specific therapeutic proof.
Key Words: enteric tuberculosis, abdominal tuberculosis
Referências Biliográficas
1. Bhargava DK, Tandon HD, Chawla TC, Tandon BN &
Kapur BML - Diagnosis of ileocecal and colonic tuberculosis
by colonoscopy. Gastrointest. endosc. 1985; 31:189-92.
2. Gouveia OF & Valentim JB. Processos
inflamatórios específicos dos intestinos: Tuberculose entérica. Em Dani
R, Castro P - Gastroenterologia
Clínica. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1993.
3. Haddad FS et al. Abdominal Tuberculosis.
Dis. Col. Rectum; 9:724, 1987.
4. Mcquaid KR. Alimentary tract: Intestinal Tuberculosis.
IN Tierney LM, Mcphee SJ, Papadakis M - Current Medical
Diagnosis and Treatment. Stamford, Connecticut, Prentice
Hall International, 1997.
5. Kasulke RJ, Anderson WJ, Gupta SK & Gliedman ML.
Primary tuberculous enterocolitis. Report of three cases and
review of the literature. Arch. Surg. 1981; 116:110-13.
6. Marshall JB. Tuberculosis of gastrointestinal tract and
peritoneum. Am. J. Gastroenterol, 88:989, 1990.
7. Veeragandham RS, Lynch FP, Canty TG, Collins DL &
Danker WM - Abdominal tuberculosis in children: review of 26
cases. J. Pediatr. Surg. 1996; 31:170-6.
Endereço para Correspondência:
João Batista Pinheiro Barreto
ICPM - Clínica de Proctologia do Maranhão
Rua do Apicum, 104 - Apicum
62025-610 - São Luís (MA)
E-mail: cpdoma@zaz.com.br / davidneto@sobral.org
Trabalho realizado no serviço de coloproctologia do
Hospital Universitário Presidente Dutra (HUUPD) da Universidade Federal
do Maranhão.