RELATO DE CASO


TUBERCULOSE ENTÉRICA COM FÍSTULA COLO-CUTÂNEA ESPONTÂNEA : RELATO DE CASO

JOÃO BATISTA PINHEIRO BARRETO - ASBCP
JOAQUIM DAVID CARNEIRO NETO
PAULO WAGNER LINHARES LIMA FILHO
YGLÉSIO LUCIANO MOYSÉS SILVA DE SOUZA


BARRETO JBP; CARNEIRO NETO JD; LIMA FILHO PWL; SOUZA YLMS. Tuberculose Entérica Com Fístula Colo-Cutânea Espontânea - Relato de Caso. Rev Bras Coloproct, 2003;23(2):108-111

RESUMO: A tuberculose (TB), uma entidade causada por bactérias pertencentes ao complexo constituído pelo Mycobacterium tuberculosis, tem uma distribuição universal no organismo, podendo atingir qualquer órgão. No Brasil, a tuberculose entérica, na ausência de tuberculose pulmonar ativa ou cicatrizada, é rara, sendo freqüentemente confundida com neoplasia e doença de Crohn. A fístula êntero-cutânea espontânea é um evento raro nesses pacientes. Os autores apresentam um caso de um paciente de 29 anos, masculino, com síndrome disentérica e fístula êntero-cutânea que foi submetido a uma sigmoidectomia, cujo diagnóstico de tuberculose entérica só foi confirmado após teste terapêutico. A colonoscopia e a biópsia endoscópica apontaram para doença intestinal inflamatória (Crohn). A histopatologia observou processo inflamatório crônico granulomatoso, sugestivo de Tuberculose entérica com trajeto fistuloso e linfadenite específica, embora a pesquisa de BAAR tenha sido negativa. Inicialmente, o paciente apresentou boa evolução, mas, quinze dias após alta hospitalar, apresentou dor abdominal, edema e secreção de material purulento pela ferida operatória, além de constipação. Foi tratado clinicamente com o esquema tríplice de isoniazida, pirazinamida e rifampicina durante dois meses e, posteriormente, foi mantida a rifampicina e isoniazida por mais quatro meses, obtendo-se remissão dos sintomas. O diagnóstico da Tuberculose entérica é bastante difícil, tendo o diagnóstico específico que ser assegurado pelo achado do bacilo no exame direto ou na cultura. Havendo associação de lesão pulmonar, o diagnóstico é evidente; na sua ausência, com exames bacteriológico ou histopatológico negativos, o diagnóstico provável pode apoiar-se na prova terapêutica específica.

Unitermos: tuberculose entérica, tuberculose extra-pulmonar, fístula êntero-cutânea, tuberculose abdominal

INTRODUÇÃO
A tuberculose é uma doença infecciosa transmissível causada pelo Mycobacterium tuberculosis. Apenas cerca de 1% dos pacientes com tuberculose pulmonar tem envolvimento intestinal. Praticamente em todos os casos, a infecção é devida ao Mycobacterium tuberculosis, mesmo em países onde a tuberculose bovina encontra-se prevalente1. Com o advento da AIDS, houve um aumento significativo de sua incidência neste grupo de pacientes2. No Brasil, é excepcional a constatação da variedade bovina como agente etiológico das lesões intestinais. Vários mecanismos patogênicos estão envolvidos: deglutição de escarro com semeadura direta, disseminação hematogênica ou, raramente, cerca de 10%, ingestão de leite infectado pela cepa bovina.
    A região íleocecal constitui o sítio de comprometimento entérico em cerca de 85% dos pacientes3, presumivelmente devido à abundância de tecido linfóide nessa área.
    O fato de a tuberculose intestinal simular neoplasia e doença de Crohn complica bastante o estabelecimento do diagnóstico, quase sempre feito por exclusão, e, conseqüentemente, dificultando a terapêutica a ser instituída. A fístula êntero-cutânea espontânea é um evento raro, aumentando significativamente a semelhança com a doença de Crohn.

RELATO DO CASO
Paciente de 29 anos, masculino, natural de Bacabal, Maranhão, apresentava há 1 mês quadro de dor abdominal em flanco esquerdo, em peso e contínua, fezes pastosas com 4 evacuações ao dia, tenesmo e hematoquezia. Após uma semana do início dos sintomas, apresentou febre diária e vespertina que cessava com uso de antitérmico. Duas semanas após notou presença de massa umbilical dolorosa à palpação que fistulizou, drenando material purulento (Figura-1). Procurou assistência médica em Pronto-Socorro no estado do Piauí, onde foi realizado somente curativo cirúrgico (sic). Paciente relata ainda perda ponderal de 10 kg em 1 mês.

Figura 1 - Material purulento drenado pela fístula colo-cutânea e exteriorizado através da cicatriz umbilical.


    Com o quadro acima e sem melhora dos sintomas, procurou o Serviço de Coloproctologia do Hospital Universitário, onde foi internado para investigação diagnóstica. Na admissão, foram realizados exames laboratoriais, sendo evidenciados leucopenia (3.140 leucócitos/mm3) e discreta alteração na velocidade de hemossedimentação (44). A avaliação radiológica simples de tórax e abdome mostrou-se normal. O clister opaco revelou presença de trajeto fistuloso colo-cutâneo em abdome inferior (Figura-2). A colonoscopia e o exame histopatológico da biópsia endoscópica foram sugestivos de doença de Crohn.

Figura 2 - Clister opaco evidenciando a fístula colo-cutânea espontânea.


    O paciente foi submetido à laparotomia exploradora, sendo observado grande número de aderências entre alças delgadas, epíplon e cólon esquerdo, além de numerosos linfonodos acometidos em mesentério e parede intestinal (Figura-3). Após inventário da cavidade e adesiólise, foi feita colectomia esquerda e confecção de colostomia terminal com fechamento do coto retal (Colostomia à Hartman).

Figura 3 - Lesões do intestino delgado e mesentério.


    Com boa evolução pós-operatória, o paciente recebeu alta assintomático. Quinze dias após, retornou ao Serviço de Coloproctologia apresentando dor abdominal, edema e secreção de material purulento pela ferida operatória, além de constipação.
    O laudo histopatológico demonstrou processo inflamatório crônico granulomatoso com trajeto fistuloso e linfadenite específica sugestivo de tuberculose intestinal, embora a pesquisa de BAAR tenha sido negativa.
    Iniciou-se esquema tríplice de isoniazida (INH) (400mg/dia), pirazinamida (PZA) (2g/dia) e rifampicina (RFM) (600mg/dia), durante 2 meses e permaneceu com o esquema duplo rifampicina e isoniazida por mais 4 meses, apresentando remissão total dos sintomas.

DISCUSSÃO
A tuberculose entérica continua sendo um problema nos países em desenvolvimento. O bacilo localiza-se nas glândulas mucosas e dissemina-se para as placas de Peyer, onde a inflamação, a destruição de tecidos e as tentativas locais de defesa originam os sintomas.
    São observados dois padrões de comprometimento: o hipertrófico, quando ocorre estenose com sintomatologia obstrutiva; e o ulcerativo, que causa dor abdominal e constipação alternada com diarréia. No exame físico, podemos encontrar massa ou tumor palpável, hepatoesplenomegalia, ascite e fístulas anais ou internas4.
    Pode haver perfuração livre e formação de fístula, que é um achado pouco freqüente, ocorrendo principalmente nos casos graves não tratados.
    O diagnóstico não costuma ser estabelecido pré-operatoriamente; somente 50% dos pacientes tem sinais de tuberculose pulmonar ativa e 45%, testes cutâneos negativos.
    Entretanto, não se deve basear somente na suspeita clínica isolada, pois o quadro clínico é inespecífico, sendo os sintomas compatíveis com outras doenças intestinais, como a retocolite ulcerativa inespecífica, sarcoidose, amebíase, histoplasmose e a doença de Crohn. Quando a diarréia está presente, aumentam as dificuldades no diagnóstico diferencial com doença de Crohn. Massa abdominal palpável, presente em 50% a 80% dos pacientes, além de emagrecimento são comuns e sugerem processo neoplásico5.
    As complicações podem ser um quadro obstrutivo, hemorrágico ou disarbsortivo conseqüente ao extenso comprometimento da mucosa intestinal.
    O diagnóstico específico só poderá ser assegurado pela demonstração histológica de bacilos álcool-ácido resistentes na lesão ou pela cultura, presença de necrose caseosa e evidências histológicas específicas em linfonodos regionais. Mesmo em peças cirúrgicas, o encontro dos bacilos e de necrose caseosa não é freqüente, embora sejam, algumas vezes, encontrados nos linfonodos. Havendo associação de lesão pulmonar, o diagnóstico é evidente; na sua falta, com exames bacteriológico ou histopatológico negativos, o diagnóstico provável pode apoiar-se na prova terapêutica específica6. A laparotomia e o exame anatomopatológico da alça intestinal ressecada foram necessários para demonstrar o organismo.
    A presença de processos tuberculosos nas margens da ressecção não indica a formação de fístulas pós-operatórias7.
    A quimioterapia antituberculosa é a base terapêutica, usando-se o esquema tríplice de PZA, INH e RFM. A indicação cirúrgica é obrigatória para as formas estenóticas, obstrutivas, hipertróficas, abdome agudo e fístula. A conduta ideal é a ressecção seguida de anastomose nos casos eletivos. O prognóstico é bom quando o paciente for operado nos estágios iniciais da doença e se associado ao tratamento clínico, semelhante ao da forma pulmonar.

SUMMARY: The tuberculosis (TB), an entity caused by bacteria belonging to the compound constituted by the Mycobacterium tuberculosis, has a universal distribution in the organism and may reach any organ. In Brazil, the enteric tuberculosis, in the absence of active or scarred lung tuberculosis is rare, being frequently confused with neoplasia and Crohn's disease. The spontaneous enterocutaneous fistula is a rare event in those patients. The authors present a case of a 29 year-old patient with dysenteric syndrome and enterocutaneous fistula that was submitted to a sygmoidectomy. The diagnosis of enteric tuberculosis was confirmed after the therapeutic test. The colonoscopy and the endoscopic biopsy pointed to inflammatory intestinal disease (Crohn). Histopatology observed a chronic granulomatous process suggesting intestinal tuberculosis with a fistulous itinerary and specific lymphadenitis, although the research of BAAR has been negative. Initially, the patient showed good evolution, but fifteen days after hospital discharge, he presented abdominal pain, bloat and elimination of festering secretion for the operative wound, besides constipation. He was treated clinically with isoniazid , pyrazinamide and rifampin for two months. After that, he continued on rifampin and isoniazid for four months, obtaining redemption of the symptoms. The diagnosis of enteric tuberculosis is quite difficult and the specific diagnosis must be secured by finding the bacillus in the direct exam or in the culture. Associated with lung lesions, the diagnosis is evident; in its absence, with negative bacteriological or histopatologic exams, the probable diagnosis can be assured by the specific therapeutic proof.

Key Words: enteric tuberculosis, abdominal tuberculosis

Referências Biliográficas
1. Bhargava DK, Tandon HD, Chawla TC, Tandon BN & Kapur BML - Diagnosis of ileocecal and colonic tuberculosis by colonoscopy. Gastrointest. endosc. 1985; 31:189-92.
2. Gouveia OF & Valentim JB. Processos inflamatórios específicos dos intestinos: Tuberculose entérica. Em Dani R, Castro P - Gastroenterologia Clínica. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1993.
3. Haddad FS et al. Abdominal Tuberculosis. Dis. Col. Rectum; 9:724, 1987.
4. Mcquaid KR. Alimentary tract: Intestinal Tuberculosis. IN Tierney LM, Mcphee SJ, Papadakis M - Current Medical Diagnosis and Treatment. Stamford, Connecticut, Prentice Hall International, 1997.
5. Kasulke RJ, Anderson WJ, Gupta SK & Gliedman ML. Primary tuberculous enterocolitis. Report of three cases and review of the literature. Arch. Surg. 1981; 116:110-13.
6. Marshall JB. Tuberculosis of gastrointestinal tract and peritoneum. Am. J. Gastroenterol, 88:989, 1990.
7. Veeragandham RS, Lynch FP, Canty TG, Collins DL & Danker WM - Abdominal tuberculosis in children: review of 26 cases. J. Pediatr. Surg. 1996; 31:170-6.

Endereço para Correspondência:
João Batista Pinheiro Barreto
ICPM - Clínica de Proctologia do Maranhão
Rua do Apicum, 104 - Apicum
62025-610 - São Luís (MA)
E-mail: cpdoma@zaz.com.br  / davidneto@sobral.org 

Trabalho realizado no serviço de coloproctologia do Hospital Universitário Presidente Dutra (HUUPD) da Universidade Federal do Maranhão.