ARTIGOS ORIGINAIS


OBSTRUÇÃO INTESTINAL POR ADERÊNCIAS: UTILIZAÇÃO DE MEMBRANA BIO-REABSORVÍVEL (hialuronato de sódio + carboximetilcelulose) SEPRAFILM® NA PROFILAXIA DE COMPLICAÇÕES EM REOPERAÇÕES ABDOMINOPÉLVICAS

PEDRO C. BASILIO


BASILIO PC. Obstrução intestinal por aderências: utilização de membrana bio-reabsorvível (hialuronato de sódio + carboximetilcelulose) seprafilm® na profilaxia de complicações em reoperações abdominopélvicas. Rev bras Coloproct, 2003;23(3):168-171

RESUMO : Aderências intra peritoneais se constituem em importante causa de complicação pós-operatória nos pacientes que se submetem a cirurgias abdomino-pélvicas, incluindo infertilidade, obstrução intestinal e dor pélvica crônica. Alem disto desafiam os cirurgiões em re-operações extremamente laboriosas e delicadas, com alto potencial de morbi-mortalidade. O presente estudo objetiva avaliar e compilar dados da experiência com utilização de membrana bioabsorvível de carboximetilcelulose e hialuronato de sódio SEPRAFILM® na prevenção de formação de aderências intra - peritoneais em pacientes com quadro estabelecido de obstrução intestinal e, portanto, de alto risco para re-formação de aderências e recidiva do quadro obstrutivo. Foram operados e tratados com SEPRAFILM® 53 pacientes que obedeceram a critérios de inclusão que os classificavam como de alto risco para complicações decorrentes de aderências pós-operatórias. A despeito do limitado tempo de seguimento, todos os pacientes encontram-se sem sinais de recidiva de doença aderencial obstrutiva, não houve mortalidade nem morbidade relacionada com o método terapêutico.

Unitermos: obstrução intestinal, aderências, prevenção

INTRODUÇÃO
Aderências intra-peritoneais são assunto freqüente de discussões de casos cirúrgicos, sendo sempre um grande incômodo para todos que labutam na área cirúrgica, especialmente quando se trata de re-operações. O tratamento cirúrgico da obstrução intestinal por aderências também se mostra desafiador em determinadas circunstâncias e apresenta um grande potencial para lesões inadvertidas durante sua execução. Na literatura é possível identificarmos estudos acerca de prevenção de aderências pós-operatórias; no entanto, não se observa estudo enfocando particularmente os pacientes que apresentam quadro obstrutivo aderencial com indicação cirúrgica emergencial. No presente estudo nos detivemos exatamente a estes pacientes que, conforme Ellis em seu pioneiro estudo, são os mais suscetíveis a problemas relacionados a aderências.1,4

MATERIAIS E MÉTODOS
Entre março de 1998 e março de 2002 foram operados pelo mesmo cirurgião 53 pacientes com idade média de 47 anos (variação de 22 a 71 anos), sendo 41 do sexo feminino e 12 do masculino, todos com quadro de obstrução intestinal.
    49 pacientes (92,4%) apresentavam história de cirurgia prévia.
    Estabeleceu-se confirmação intra - operatória de etiologia aderencial em todos os casos.
    Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão:
Pacientes com quadro confirmado cirurgicamente de obstrução intestinal, devida exclusivamente a aderências intra-peritoneais.
    O acompanhamento pós-operatório foi dirigido para queixas relacionadas com aderências, com revisões mensais pelos três primeiros meses e semestrais por período indeterminado. Critérios absolutos de verificação de formação de aderências não complicadas não estão disponíveis, uma vez que os métodos de imagem não têm especificidade nem sensibilidade para tal e não seria ético submeter o indivíduo, quer à laparoscopia quer a laparotomia, apenas com o objetivo de verificar a presença de aderências subclínicas.

RESULTADOS
Obedecidos os critérios acima, os 53 pacientes foram operados, sendo submetidos à lise de aderências e alguns a procedimentos adicionais com colocação de SEPRAFILM® entre as alças intestinais e a síntese da parede abdominal, recobrindo o assoalho pélvico, ou mesmo sobre o foco aderencial que gerou a obstrução.(Tabela-1)

Tabela 1 - Diagnósticos.

Diagnóstico  Casos
Obstrução intestinal por aderencia 49

Diverticulite com obstrução intestinal por aderência

1

Tumoração abdominal inflamatória com obstrução intestinal por aderência

1
Hérnia interna estrangulada com aderências 1
Apendicite aguda com obstrucao ileocecal por aderência íleo-ileal 1
TOTAL  53

 

    Houve necessidade de procedimento adicional em apenas 10,6 % dos casos (5/53) (Tabela-2).

Tabela 2 - Procedimentos adicionais

Procedimentos complementares No. de casos
Hernioplastia incisional  2
Apendicectomia  1
Ressecção intestinal 1
Epíplonplastia pélvica 1

 

    Não houve mortalidade e apenas um paciente apresentou morbidade, relacionada à patologia básica. Trata-se de abscesso de parede abdominal no paciente operado por apendicite com abscesso peritoneal.
    O seguimento médio foi de 120 dias, variando de 40 a 180 dias. Em nenhum caso foi detectado sinal de recrudescência dos sintomas de obstrução ou sub-oclusão intestinal.

DISCUSSÃO
É bem sabido que todo e qualquer procedimento cirúrgico, especialmente os que penetram a cavidade abdominal, carregam um potencial estímulo à formação de aderências peritoneais. Estas ocorrências implicarão em múltiplos atendimentos hospitalares e extra-hospitalares subseqüentes, em decorrência de seqüelas das citadas aderências, seja produzindo obstipação intestinal ou dor pélvica crônica, ou mesmo tornando uma nova operação num desafio penoso para o cirurgião. Estas situações implicam em grande potencial de morbidade e até de mortalidade.1,2
   
Aderências intra-peritoneais são a causa mais comum de obstrução intestinal e as operações intestinais são as mais comumente realizadas no abdome, respondendo, portanto pela grande maioria dos casos de aderência pós-operatória. Estudos foram realizados para definir qual a real incidência de aderências pós-operatórias que realmente causarão transtorno à saúde dos pacientes.5
   
Segundo Ellis e colaboradores, a incidência de obstrução é de 21% durante o primeiro mês de pós-operatório e 18% entre o segundo mês e o término do primeiro ano de pós-operatório, o que demonstra que a maior parte das obstruções por aderências pos - operatórias se dão em período precoce de pós-operatório.
    Conforme Becker e colaboradores, a incidência de aderências intra-peritoneais pós-operatórias varia de 67 a 93% apos operações abdominais de um modo geral, e ate 97% após procedimentos ginecológicos pélvicos.
    A incidência de internação por obstrução intestinal nos anos de 1990 e 1991 nos EUA foi de 18,6 a 25,1% em diferentes centros. Se avaliarmos o percentual de pacientes internados pelo setor de pronto atendimento que são operados por aderência, este varia de 2,6 a 5,6% de todas internações.
    Durante o primeiro ano de pós-operatório de cirurgia intestinal a incidência de internação por obstrução intestinal é de 8,6 a 12,6% dos casos e em 1,3 a 2,6% dos casos haverá necessidade de cirurgia de lise de aderências. Em 2 anos após a intervenção, 12 a 17% apresentam oclusão intestinal e 2,3 a 5,1% têm procedimento antiaderência em seus registros.
    Estas internações e procedimentos implicam em custos de enorme monta para um sistema de saúde. Estudo realizado por Ray e colaboradores nos Estados Unidos da América investigou os registros de alta de 9% dos hospitais americanos e os custos provenientes do sistema medicare americano (governamental). Portanto em 1994 apenas os custos estimados com estes pacientes que sofrem de aderências somaram 1,3 bilhões de dólares.7
   
A formação das aderências começa no momento em que ocorre a descontinuidade da integridade peritoneal e é iniciada a resposta endócrino-metabólica a nível celular para reparo do defeito causado na superfície do peritônio.
    Precocemente após o trauma a camada fibrinosa se forma, a fim de servir como componente estrutural do reparo tecidual. Este mecanismo requer fibrinólise concomitante com reparo mesotelial. Se há uma condição de isquemia, que invariavelmente se superpõe nos procedimentos cirúrgicos, este mecanismo de fibrinólise está comprometido, propiciando a persistência da matriz fibrinosa e sua posterior maturação, causando uma organizada banda aderencial em aproximadamente cinco dias8,9.
    Após uma primeira cirurgia para obstrução intestinal por aderências o percentual de recidiva alcança 53%, dependendo do tipo de cirurgia, ao passo que chega a 85% se o procedimento tem de ser repetido4. Com isso verificou-se que as aderências abdominais se constituíam em um sério problema de saúde coletiva sem uma boa perspectiva de tratamento.
    Além disto as re-operações por aderências são extremamente difíceis com alto potencial de morbidade por lesão iatrogênica de alças intestinais. Procurando se aprofundar neste aspecto, o Departamento de cirurgia colorretal da Cleveland Clinic Ohio apresentou no congresso da ASCRS (American Society of Colon and Rectum Surgeons) 2000 um estudo experimental, demonstrando que o período mais crítico para uma re-operação é entre o décimo e o trigésimo dia de pós-operatório. Conclui ainda que SEPRAFILM®, diminuindo o número, intensidade e severidade das aderências, torna este período efetivamente menos perigoso para re-operações.
    Variados materiais foram utilizados na tentativa de promover diminuição da formação de aderências pós-operatórias, entre eles irrigação peritoneal com dextram, solução salina, materiais baseados em celulose regenerada por oxidação, que se mostraram eficazes na profilaxia de formação de aderências pós-operatórias, porém tiveram sua eficácia seriamente comprometida na presença de sangue.10 Portanto nenhum destes materiais se mostrou satisfatório na tarefa de deixar a cavidade peritoneal livre de aderências pós-operatórias.
    Foi então desenvolvida uma membrana bioreabsorvível, composta de hialuronato de sódio e carboximetilcelulose (Seprafilm®, Genzyme Corp. Cambridge, MA) com o objetivo de reduzir a formação de aderências pós-operatórias. O hialuronato é um hidrocarboneto encontrado no tecido conectivo, líquido sinovial, cordão umbilical e humor vítreo, e é comumente utilizado em cirurgias oftalmológicas.11 A carboximetilcelulose é utilizada em larga escala em cosméticos, alimentos industrializados e medicações, demonstrando ao longo dos anos segurança no seu emprego e administração.
    Estudos iniciais mostram que o papel da barreira bio-reabsorvivel é de se interpor mecânica e temporariamente entre os tecidos, durante o período cicatricial crítico, evitando assim a formação de bandas adesivas entre os mesmos. Em estudo posterior a membrana foi utilizada com segurança, demonstrando não influenciar a boa cicatrização anastomótica, evento temido pelos pesquisadores atuantes neste campo.12
   
Em trabalho multicêntrico, prospectivo, randomizado e duplo-cego, um total de 175 pacientes foram submetidos a colectomia total com reconstrução íleo anal com bolsa ileal "em J" e ileostomia protetora em alça. Becker e colaboradores observaram que apenas 6% (5/90) dos pacientes que não receberam membrana se apresentavam livres de aderência, ao passo que dos que foram tratados, 43% estavam totalmente livres de aderência
    Portanto, tendo em vista que os discutidos trabalhos versam sobre as mais variadas situações, sem, no entanto, tratar da particular situação de obstrução intestinal por aderência, e que o presente estudo foi desenhado, a fim de endereçar o tratamento às mais complicadas e intensas doenças aderenciais e assim verificar tanto a segurança na utilização nestes casos, como sua real eficácia.
    Em nossa amostragem, reunindo 53 pacientes, sendo 50 com história de cirurgia abdomino-pélvica prévia, não observamos re-obstrução no período de seguimento relatado.
    Além disto é conveniente salientar que uma boa técnica de colocação é indispensável para obtenção de bons resultados (Figura-1) que, em nosso caso particular, foi possível graças à experiência com o método iniciada em 1995, acompanhando o estudo pioneiro do Professor Steven Wexner na Cleveland Clinic Florida.


Figura 1 - Técnica de colocação.


CONCLUSÕES
Face ao encontrado em nossa amostragem, ausência de re-obstrução intestinal por aderência, de morbidade ou mortalidade; é possível concluir que a membrana de carboximetilcelulose e hialuronato de sódio, associada à boa técnica cirúrgica, é segura, porém para determinar sua eficácia na prevenção da obstrução intestinal pós-operatória de etiologia aderencial em pacientes de alto risco de re-obstrução, serão necessários estudos randomizados, efetuando a comparação com grupo controle para averiguação de resultados.

SUMMARY: Intraperitoneal adhesions are major cause of complication after abdominal and pelvic surgery including infertility, intestinal obstruction and chronic pelvic pain. Adhesions challenge surgeons with workload operations that input a high morbidity and mortality to these patients. Present study aims to evaluate experience utilizing a carboximethylcelulose and sodium hialuronidate membrane in preventing adhesion formation. 53 patients following inclusion criteria for high risk for adhesion intestinal obstruction were treated with SEPRAFILM and despite the limited follow-up, no intestinal obstruction or method related complication were recorded. We concluded that carboximethylcelulose and sodium hialuronidate membrane is safe and effective in preventing adhesion intestinal obstruction.

Key words: obstruction, prevention, adhesions

Referências Biliográficas
1 Ellis H. The clinical significance of adhesions: focus on intestinal obstruction. Eur J Surg 1997;577(Suppl):5-9.
2 Menzies D, Ellis H. Intestinal obstruction from adhesions - how big is the problem? Ann R Coll Surg Engl 1990;72:60-3.
3 Barkan H, Webster S, Ozeran S. Factors predicting the recurrence of adhesive small bowel obstruction. Am J Surg 1995; 170:361-5.
4 Becker JM, Dayton MT, Fazio VW, et al. Prevention of postoperative abdominal adhesions by a sodium hyaluronate-based bioreabsorbable membrane: a prospective, randomized, double-blind multicenter study. J Am Coll Surg 1996;183:297-306.
5 Beck D.E. et all. Incidence of small bowel obstruction and adhesiolysis after open colorectal and general surgery. Dis Colon Rectum 1999; 42: 241-8
6 Ray NF, Larsen JW, Stillman RJ, Jacobs RJ. Economic impacts of hospitalizations for lower abdominal adhesiolysis in the United States in 1988. Surg Gynecol Obstet 1993;176:271-6.
7 Ray NF, Denton WG, Thamer M, Henderson SC, Perrry S> Abdominal Adhesions: Inpatient care and expenditures in the United States in 1994. J Am Coll Surg 1998;186:1-9
8 Buckman, R.F., Buckman, P.D., Hufnagel, H.V., and Gevin, A.S. A physiologic basis for the adhesion-free healing of deperitonealized surfaces. J. Surg. Res., 1976, 21: 67-76.
9 Raferty, A.T. Regeneration of peritoneum: a fibrinolytic study. J. Anat., 1973, 115: 375-392.
10 Interceed (TC7) Adhesion Barrier Study Group. Prevention of postsurgical adhesions by Interceed (TC7), an absorbable adhesion barrier: a prospective randomized multicenter clinical study. Fertil. Steril., 1989, 51:933-938.
11 Wiseman, D. Polymers for the prevention of surgical adhesions. In: Polymeric Site-Specific Pharmacotherapy. Edited by A. J. Domb. Pp. 370-421. Arlington, TX: John Wiley & Sons Ltd., 1994.
12 Medina, M., Paddock, H. N., et al. Novel antiadhesion barrier does not prevent anastomotic healing in rabbit model. J. Invest. Surg., 1995, 8: 9-86.
13 Laureti, S., Fazio, V.W. et al. Influence of time after surgery and use of Seprafilm® bioresorbable membrane on severity of adhesions formation and difficulty of re-operation: an experimental study. Presented at ASCRS meeting 2000.ah

Endereço para correspondência:
Pedro C. Basilio
Avenida Ataulfo de Paiva 135/ sala 1401 - Leblon
22.440-030- Rio de Janeiro (RJ)

Trabalho realizado no Hospital Central da Polícia Militar do Rio de Janeiro.