ARTIGOS ORIGINAIS


ASSOCIAÇÃO ENTRE CONDILOMA ACUMINADO E FÍSTULA ANORRETAL EM DOENTES HIV-POSITIVOS

SERGIO HENRIQUE COUTO HORTA - TSBCP
SIDNEY ROBERTO NADAL TSBCP
CARMEN RUTH MANZIONE TSBCP
VIVIANE DE MOURA GALVÃO FSBCP


HORTA SHC; NADAL SR; MANZIONE CR; GALVÃO VM. Associação entre Condiloma Acuminado e Fístula Anorretal em Doentes HIV-Positivos. Rev bras Coloproct, 2003;23(3):192-195

RESUMO: A pandemia provocada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um dos problemas de saúde pública mais discutidos na atualidade. Acredita-se que 30% dos doentes terão afecções anorretais durante a evolução dessa infecção. Os condilomas acuminados, as úlceras e as fístulas anais são as mais freqüentes, em especial naqueles que praticam sexo anal receptivo. Temos observado a concomitância entre condilomas acuminados e fístulas anais, o que nos induziu a avaliar a existência dessa associação e sua freqüência. Por isso, revisamos 218 prontuários de doentes de condilomas acuminados e/ou fístula anal operados entre junho de 1999 e fevereiro de 2003. Houve predominância do sexo masculino 197(90,3%) com média de idade de 31,5 anos. Realizamos ressecção de condilomas em 144 doentes, tratamento de fístula anal em 36 e os dois procedimentos em 38 outros. Durante a operação, encontramos condilomas no trajeto fistuloso de seis doentes. Como resultados, observamos a incidência de fístulas anais em 20,8% dos portadores de condilomas acuminados e 51,3% de condilomas naqueles com fístulas perianais. Sugerimos que as lesões provocadas pelo HPV devam ser pesquisadas nas fístulas anorretais, como essas necessitam diagnóstico na presença de condilomas nesse grupo de doentes.

Unitermos: AIDS, infecção pelo HIV, condiloma acuminado perianal, fístula anorretal

INTRODUÇÃO
A pandemia provocada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um dos problemas de saúde pública mais discutidos na atualidade. Desde a descrição inicial da AIDS em 1981, percebeu-se que, dentre seus problemas mais comuns, estão as doenças anorretais que ocorrem em torno de 30% desses doentes1. As mais freqüentes são os condilomas acuminados, as úlceras, as fístulas, as neoplasias e os abscessos, todas apresentando maior incidência que na população soronegativa para o HIV.1-6
   
Em casuísticas publicadas sobre afecções anorretais em doentes HIV-positivos, o condiloma acuminado incidiu entre 15 e 62%,1-7 e sua principal característica é o elevado índice de recidivas, independendo do esquema terapêutico utilizado.6-13 Já as fístulas foram identificadas entre 14 e 41% dos pacientes.1-4,6,9,14,15 Atualmente sabe-se que apresentam semelhanças quanto ao número e tortuosidade dos trajetos2, embora já se tenha acreditado que fossem mais complexas nos doentes HIV-positivos.1 Após a introdução dos inibidores da protease no arsenal terapêutico para a infecção pelo HIV, notou-se a diminuição dos casos de sepse perianal, todavia, a quantidade de fístulas permaneceu a mesma e a de condilomas acuminados perianais aumentou.3
   
Outro fator importante é a associação de doenças anorretais nesse grupo de doentes. Em trabalho anterior observamos a concomitância de afecções em 17,2% de 1860 doentes2, enquanto Consten et al.9 encontraram 61% avaliando 83 casos. Temos diagnosticado tanto condilomas acuminados como fístulas anais em grande número de doentes HIV-positivos, algumas vezes associados. Entretanto, não observamos na literatura relatos sobre essa coexistência. Por esse motivo, decidimos revisar os prontuários de doentes HIV+ operados de fístulas e de condilomas anais para avaliar a existência dessa associação e sua freqüência.

MÉTODO
Operamos 218 doentes HIV+ de fistulas e/ou condilomas acuminados perianais, no período de junho de 1999 a fevereiro de 2003. Eram 197 (90,3%) homens e 21 (9,7%) mulheres, com idade que variou de 23 a 63 com média de 31,5 anos.
    Nos portadores de condilomas, confirmamos o diagnóstico por biópsia, antes de qualquer terapia. Iniciamos sempre com tratamento clínico tópico que consistiu de aplicações semanais de podofilina a 25% em vaselina sólida nas verrugas da margem anal e de ácido tricloracético a 95% (ATA) naquelas acima da linha pectínea. Após a quarta aplicação, reavaliamos as lesões e operamos as remanescentes. Aos portadores de fístulas, afastadas as causas específicas, submetemos a fistulotomia, isoladamente ou associada com o tratamento cirúrgico dos condilomas. Enviamos tanto os condilomas como os trajetos fistulosos ressecados para análise histológica.
    Utilizamos a classificação do Center for Disease Control (CDC) de 1993, nos quais os doentes são divididos de acordo com as doenças oportunistas e número de linfócitos T CD4. A maior parte dos nossos doentes encontrava-se no estádio A (Tabela-1) e, portanto, em estado de portador assintomático do HIV.

Tabela 1 - Estádio da infecção pelo HIV, conforme a classificação do Center for Disease Control, de 218 doentes submetidos a tratamento cirúrgico de condilomas e/ou fístulas anorretais.
Classificação  N° de doentes %
A1 18 8,3
A2 48  22,0
A3  34  15,5
B1  17  7,8
B2  15  6,8
B3  13  5,9
C1  18  8,3
C2  19  8,8
C3  36  16,6
Total  218  100

    Utilizamos o teste estatístico do qui-quadrado para análise comparativa de nossos resultados.

RESULTADOS
Dos 218 doentes operados de condiloma e/ou fístula anorretal, 38 (17,4%) apresentavam associação das duas afecções. Observamos fístula anorretal em 38 (20,8%) dos 182 doentes submetidos à cauterização de condilomas e identificamos 38 (51,3%) casos de condiloma em 74 pacientes com fístulas, sendo que em 32 (88,9%) os diagnosticamos previamente à operação e em seis doentes observamos as lesões verrucosas no trajeto fistuloso, quando da operação.
    Todos evoluíram bem após a operação e o estudo histológico das peças confirmou a infecção pelo Papilomavirus humano (HPV).
    Quando comparamos os doentes nas fases mais tardias da infecção pelo HIV com os das fases mais iniciais, em relação a essa associação, observamos que não houve diferença estatística significante entre os dois grupos de doentes (p <0,05). (Tabela-2)

Tabela 2 - Estádio da infecção pelo HIV, conforme a classificação do Center for Disease Control, de 38 doentes com associação de condiloma e fístula anorretal.
Classificação  N° de doentes %
A1 12 31,5
A2 05  13,1
A3  02  5,3
B1  01 2,6
B2  02 5,3
B3  03 7,9
C1  02 5,3
C2  02 5,3
C3  09 23,7
Total  38  100


DISCUSSÃO
Acreditamos haver a necessidade de um sistema para agrupar os doentes HIV-positivos, universalmente aceita, para que as estatísticas possam ser comparadas. Desta forma, resolvemos utilizar a Classificação revisada de 1993, do Center for Disease Control de Atlanta, na qual os pacientes são divididos conforme o grau de imunodepressão.2 Em nossa casuística observamos que a maioria dos doentes encontrava-se nas fases iniciais da infecção pelo HIV.
    Optamos sempre pelo tratamento com substâncias tópicas previamente à operação por termos concluído, em estudo clínico, que as lesões diminuem, facilitando o procedimento operatório e diminuindo desconforto para o doente devido à menor área cruenta.16
   
Em nosso estudo diagnosticamos condilomas em 51,3% dos doentes submetidos a fistulotomia, e 20,8% de fístulas nos submetidos à ressecção de verrugas anais. Avaliando 60 portadores de fístula anorretal, Manookian et al17 encontraram condiloma acuminado em 43 (72%) e quando compararam esses achados com o de um grupo de 86 HIV-negativos, portadores de fístula anorretal, não observaram infecção pelo HPV. Sem dúvida, não há paralelo no qual possamos observar esta associação de doenças que não os imunodeprimidos. Também interessante é o fato do grau de evolução da infecção pelo HIV não ter influenciado o aparecimento das fístulas, em nossa casuística, uma vez que os doentes das fases mais avançadas não apresentarem mais fístulas associadas que os das etapas mais precoces.
    Em cerca de 90% dos portadores de condilomas anais a via de contaminação ocorre pela pratica do sexo anal receptivo, porém a propagação pode ocorrer pelo contato íntimo não sexual.1 As fístulas perianais são mais freqüentes nos doentes HIV-positivos e em praticantes de sexo anal receptivo,2,5,18 causa de traumatismo no ânus e no canal anal.5,6,19 Todavia, sabemos que a infecção pelo HIV determina hipertrofia do tecido linfóide, o que também ocorre em outras doenças, tais como tuberculose, doença de Crohn, linfomas e leucemias.20,21 Outro fato conhecido é a presença de tecido linfóide circundando as glândulas anais.22 Somando esses aspectos, acreditamos que a hipertrofia dos tecidos linfóides possa obstruir os ductos das glândulas anais, levando à infecção dessas estruturas e o aparecimento dos abscessos perianais, precursores das fístulas.20 Podemos também supor que a instalação de lesões condilomatosas nas criptas anais interrompa os ductos destas glândulas, predispondo à criptite, abscesso e fístula, fato que necessita de comprovação. Outro fator etiológico seria a presença de diarréia, muito comum em doentes HIV-positivos, causando irritação local. Suspeitamos que o aparecimento dos abscessos e fístulas perianais ocorre devido a um ou à somação de alguns desses fatores: traumatismo anorretal, infecção pelo HPV na cripta anal, hipertrofia dos tecidos linfóides, diarréia e imunossupressão local e sistêmica, como co-fatores induzidos pelo HIV.
    Em resumo, nosso estudo concluiu haver incidência elevada de associação entre condiloma acuminado e fístula anorretal em doentes HIV-positivos. A partir desse fato, sugerimos que tanto as lesões provocadas pelo HPV devam ser pesquisadas nas fístulas anorretais como essas necessitam diagnóstico na presença de condilomas nesse grupo de doentes.

SUMMARY: AIDS is one of the most discussed health problems at the moment and 30 percent of the patients will develop anorectal diseases during HIV infection. Condylomata acuminata, ulcers and fistulas are frequent, mainly in receptive anal sex practitioners. We have observed concomitant anal warts and fístulas which induced us to evaluate occurrence of this association and its incidence. We had submitted 218 patients with anal condylomata acuminata and/or anal fistula to surgical treatment from July 1999 to February 2003 . Mean age was 31.5 years old and 197 (90.3 percent) were males. Warts appeared in 144 patients, fistulas in 36 patients, and both in 38 patients. During operation, we found condiloma in fistula tracts of six patients. We noticed anal fístula in 20.8 percent of patients with condiloma, and 51.3 percent of condilomas in patients with anal fistula. Based on these results, we suggest that HPV lesions must be researched in HIV-positive patients with anal fistula, as fístula must be looked up in patients with anal warts.

Key words: AIDS, HIV infection, anal condilomata acuminata, anal fistula

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência:
Sidney Roberto Nadal
Rua Dr. Virgilio
Carvalho Pinto, 381 apt. 23
Cep. 05415-030 - São Paulo - SP

Trabalho realizado pela Equipe Técnica de Proctologia do Instituto de Infectologia Emilio Ribas - São Paulo.