ARTIGOS ORIGINAIS
SERGIO HENRIQUE COUTO HORTA - TSBCP
SIDNEY ROBERTO NADAL TSBCP
CARMEN RUTH MANZIONE TSBCP
VIVIANE DE MOURA GALVÃO FSBCP
Unitermos: AIDS, infecção pelo HIV, condiloma acuminado perianal, fístula anorretal
INTRODUÇÃO
A pandemia provocada pelo vírus da
imunodeficiência humana (HIV) é um dos problemas de
saúde pública mais discutidos na atualidade. Desde a
descrição inicial da AIDS em 1981, percebeu-se que,
dentre seus problemas mais comuns, estão as
doenças anorretais que ocorrem em torno de 30% desses
doentes1. As mais freqüentes são os condilomas
acuminados, as úlceras, as fístulas, as neoplasias e os abscessos,
todas apresentando maior incidência que na
população soronegativa para o
HIV.1-6
Em casuísticas publicadas sobre
afecções anorretais em doentes HIV-positivos, o
condiloma acuminado incidiu entre 15 e
62%,1-7 e sua principal característica é o elevado índice de recidivas,
independendo do esquema terapêutico
utilizado.6-13 Já as
fístulas foram identificadas entre 14 e 41% dos
pacientes.1-4,6,9,14,15 Atualmente sabe-se que apresentam semelhanças
quanto ao número e tortuosidade dos
trajetos2, embora já se tenha acreditado que fossem mais complexas nos
doentes HIV-positivos.1 Após a introdução dos inibidores
da protease no arsenal terapêutico para a infecção pelo
HIV, notou-se a diminuição dos casos de sepse perianal,
todavia, a quantidade de fístulas permaneceu a mesma e
a de condilomas acuminados perianais
aumentou.3
Outro fator importante é a associação de
doenças anorretais nesse grupo de doentes. Em trabalho
anterior observamos a concomitância de afecções
em 17,2% de 1860 doentes2, enquanto Consten
et al.9 encontraram 61% avaliando 83 casos. Temos
diagnosticado tanto condilomas acuminados como fístulas anais
em grande número de doentes HIV-positivos, algumas
vezes associados. Entretanto, não observamos na
literatura relatos sobre essa coexistência. Por esse motivo,
decidimos revisar os prontuários de doentes HIV+
operados de fístulas e de condilomas anais para avaliar a
existência dessa associação e sua freqüência.
MÉTODO
Operamos 218 doentes HIV+ de fistulas e/ou condilomas acuminados perianais, no período de
junho de 1999 a fevereiro de 2003. Eram 197 (90,3%)
homens e 21 (9,7%) mulheres, com idade que variou de 23 a
63 com média de 31,5 anos.
Nos portadores de condilomas, confirmamos
o diagnóstico por biópsia, antes de qualquer terapia.
Iniciamos sempre com tratamento clínico tópico que
consistiu de aplicações semanais de podofilina a 25%
em vaselina sólida nas verrugas da margem anal e de
ácido tricloracético a 95% (ATA) naquelas acima da
linha pectínea. Após a quarta aplicação, reavaliamos as
lesões e operamos as remanescentes. Aos portadores
de fístulas, afastadas as causas específicas, submetemos
a fistulotomia, isoladamente ou associada com o
tratamento cirúrgico dos condilomas. Enviamos tanto os
condilomas como os trajetos fistulosos ressecados para
análise histológica.
Utilizamos a classificação do Center for
Disease Control (CDC) de 1993, nos quais os doentes são
divididos de acordo com as doenças oportunistas e
número de linfócitos T CD4. A maior parte dos nossos
doentes encontrava-se no estádio A (Tabela-1) e, portanto,
em estado de portador assintomático do HIV.
Tabela 1 - Estádio da infecção pelo HIV, conforme a classificação do Center for Disease Control, de 218 doentes submetidos a tratamento cirúrgico de condilomas e/ou fístulas anorretais.
Classificação | N° de doentes | % |
A1 | 18 | 8,3 |
A2 | 48 | 22,0 |
A3 | 34 | 15,5 |
B1 | 17 | 7,8 |
B2 | 15 | 6,8 |
B3 | 13 | 5,9 |
C1 | 18 | 8,3 |
C2 | 19 | 8,8 |
C3 | 36 | 16,6 |
Total | 218 | 100 |
Utilizamos o teste estatístico do qui-quadrado para análise comparativa de nossos resultados.
RESULTADOS
Dos 218 doentes operados de condiloma e/ou fístula anorretal, 38 (17,4%) apresentavam
associação das duas afecções. Observamos fístula anorretal em
38 (20,8%) dos 182 doentes submetidos à cauterização
de condilomas e identificamos 38 (51,3%) casos de condiloma em 74 pacientes com fístulas, sendo que
em 32 (88,9%) os diagnosticamos previamente à
operação e em seis doentes observamos as lesões verrucosas
no trajeto fistuloso, quando da operação.
Todos evoluíram bem após a operação e o
estudo histológico das peças confirmou a infecção
pelo Papilomavirus humano (HPV).
Quando comparamos os doentes nas fases
mais tardias da infecção pelo HIV com os das fases mais
iniciais, em relação a essa associação, observamos que
não houve diferença estatística significante entre os
dois grupos de doentes (p <0,05). (Tabela-2)
Tabela 2 - Estádio da infecção pelo HIV, conforme a classificação do Center for Disease Control, de 38 doentes com associação de condiloma e fístula anorretal.
Classificação | N° de doentes | % |
A1 | 12 | 31,5 |
A2 | 05 | 13,1 |
A3 | 02 | 5,3 |
B1 | 01 | 2,6 |
B2 | 02 | 5,3 |
B3 | 03 | 7,9 |
C1 | 02 | 5,3 |
C2 | 02 | 5,3 |
C3 | 09 | 23,7 |
Total | 38 | 100 |
DISCUSSÃO
Acreditamos haver a necessidade de um
sistema para agrupar os doentes HIV-positivos,
universalmente aceita, para que as estatísticas possam ser
comparadas. Desta forma, resolvemos utilizar a
Classificação revisada de 1993, do Center for Disease Control
de Atlanta, na qual os pacientes são divididos conforme
o grau de imunodepressão.2 Em nossa casuística
observamos que a maioria dos doentes encontrava-se nas
fases iniciais da infecção pelo HIV.
Optamos sempre pelo tratamento com
substâncias tópicas previamente à operação por termos
concluído, em estudo clínico, que as lesões diminuem,
facilitando o procedimento operatório e diminuindo
desconforto para o doente devido à menor área
cruenta.16
Em nosso estudo diagnosticamos condilomas em 51,3% dos doentes submetidos a fistulotomia,
e 20,8% de fístulas nos submetidos à ressecção de
verrugas anais. Avaliando 60 portadores de fístula
anorretal, Manookian et al17 encontraram condiloma
acuminado em 43 (72%) e quando compararam esses achados
com o de um grupo de 86 HIV-negativos, portadores de
fístula anorretal, não observaram infecção pelo HPV. Sem
dúvida, não há paralelo no qual possamos observar
esta associação de doenças que não os
imunodeprimidos. Também interessante é o fato do grau de evolução
da infecção pelo HIV não ter influenciado o
aparecimento das fístulas, em nossa casuística, uma vez que os
doentes das fases mais avançadas não apresentarem
mais fístulas associadas que os das etapas mais precoces.
Em cerca de 90% dos portadores de
condilomas anais a via de contaminação ocorre pela pratica do
sexo anal receptivo, porém a propagação pode ocorrer pelo
contato íntimo não
sexual.1 As fístulas perianais são
mais freqüentes nos doentes HIV-positivos e em
praticantes de sexo anal receptivo,2,5,18
causa de traumatismo no ânus e no canal
anal.5,6,19 Todavia, sabemos que a infecção
pelo HIV determina hipertrofia do tecido linfóide, o que
também ocorre em outras doenças, tais como
tuberculose, doença de Crohn, linfomas e
leucemias.20,21 Outro fato conhecido é a presença de tecido linfóide circundando
as glândulas anais.22 Somando esses aspectos,
acreditamos que a hipertrofia dos tecidos linfóides possa obstruir
os ductos das glândulas anais, levando à infecção
dessas estruturas e o aparecimento dos abscessos perianais,
precursores das fístulas.20 Podemos também supor que a
instalação de lesões condilomatosas nas criptas anais
interrompa os ductos destas glândulas, predispondo à
criptite, abscesso e fístula, fato que necessita de
comprovação. Outro fator etiológico seria a presença de diarréia,
muito comum em doentes HIV-positivos, causando
irritação local. Suspeitamos que o aparecimento dos abscessos
e fístulas perianais ocorre devido a um ou à somação
de alguns desses fatores: traumatismo anorretal, infecção
pelo HPV na cripta anal, hipertrofia dos tecidos linfóides,
diarréia e imunossupressão local e sistêmica, como
co-fatores induzidos pelo HIV.
Em resumo, nosso estudo concluiu haver
incidência elevada de associação entre condiloma
acuminado e fístula anorretal em doentes HIV-positivos.
A partir desse fato, sugerimos que tanto as lesões
provocadas pelo HPV devam ser pesquisadas nas
fístulas anorretais como essas necessitam diagnóstico na
presença de condilomas nesse grupo de doentes.
SUMMARY: AIDS is one of the most discussed health problems at the moment and 30 percent of the patients will develop anorectal diseases during HIV infection. Condylomata acuminata, ulcers and fistulas are frequent, mainly in receptive anal sex practitioners. We have observed concomitant anal warts and fístulas which induced us to evaluate occurrence of this association and its incidence. We had submitted 218 patients with anal condylomata acuminata and/or anal fistula to surgical treatment from July 1999 to February 2003 . Mean age was 31.5 years old and 197 (90.3 percent) were males. Warts appeared in 144 patients, fistulas in 36 patients, and both in 38 patients. During operation, we found condiloma in fistula tracts of six patients. We noticed anal fístula in 20.8 percent of patients with condiloma, and 51.3 percent of condilomas in patients with anal fistula. Based on these results, we suggest that HPV lesions must be researched in HIV-positive patients with anal fistula, as fístula must be looked up in patients with anal warts.
Key words: AIDS, HIV infection, anal condilomata acuminata, anal fistula
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Endereço para correspondência:
Sidney Roberto Nadal
Rua Dr. Virgilio
Carvalho Pinto, 381 apt. 23
Cep. 05415-030 - São Paulo - SP
Trabalho realizado pela Equipe Técnica de Proctologia do Instituto de Infectologia Emilio Ribas - São Paulo.