RELATO DE CASO
RESUMO: Os linfomas intestinais são um grupo de tumores raros que acometem as células linfóides e se distribuem amplamente ou em agregados, no epitélio, lâmina própria, e submucosa do intestino. Os linfomas não-Hodgkin formam o maior grupo isolado de neoplasias do sistema imunológico. No intestino é bastante raro o linfoma iniciar com um quadro de fístula e são mais comuns se originarem dos linfócitos do tipo células B, são muito agressivos e se disseminam por contigüidade pela parede intestinal. O caso relatado mostra um homem negro de 39 anos com uma fístula entre a região ileocecal e a parede posterior da bexiga sendo que o único sintoma relacionado a linfomas foi a hiperplasia das amídalas palatinas. No pré-operatório os exames de imagem auxiliaram na identificação da fístula, porém o diagnóstico de linfoma só pôde ser dado após o resultado do exame anátomo-patológico.
Unitermos: linfoma intestinal, linfoma não-Hodgkin, fístula êntero-vesical
INTRODUÇÃO
Fístulas êntero-vesicais são patologias
comuns na prática colo-proctológica e suas causas são
bastante variadas. Segundo a literatura disponível as
suas principais causas são: Doença diverticular,
neoplasia colorretal, de bexiga, útero e próstata, doença de
Crohn, trauma e radiação; por outro lado fístulas causadas
por linfomas intestinais são bastante raras. Nos casos
de neoplasia intestinal os sítios mais comuns de
fístulas com o trato urinário são o íleo e o cólon.
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O linfoma maligno do intestino é
uma neoplasia rara que se desenvolve em componentes
do tecido linfóide do sistema imune, sendo
considerado primário do intestino delgado quando não há
linfadenopatia superficial palpável, alteração no
hemograma, no exame radiológico de tórax e
comprometimento de outras vísceras na laparotomia
exploradora. Podem ter apresentação tardia devido a seu
crescimento insidioso. Os linfomas representam 4 a 12% dos
tumores malignos primários do trato
grantrointestinal, sendo o estômago o local mais acometido, ocorrem
no intestino delgado cerca de 10 a 15%, e no cólon 0,1
a 1,0%.3,4 Os linfomas não-Hodgkin (L.N.H.) formam
o maior grupo isolado de neoplasias do sistema
imunológico, composto por mais de 10 entidades
mórbidas distintas, podendo ocorrer em qualquer idade,
sendo, porém, mais comum acima dos 40 anos. Na faixa
etária mais jovem a predominância no sexo masculino é
mais evidente e com subtipos histológicos mais
agressivos. O desenvolvimento do L.N.H. agressivo é associado
a uma disfunção imunológica prévia e as
considerações etiológicas de sua origem passam desde o
vírus oncogene, presente em alguns subtipos específicos
de linfomas, a outros fatores que podem estimular o
aparecimento dos linfomas como a radiação
ionizante, predisposição hereditária, imunodeficiência
congênita e adquirida e a exposição de
pesticidas.1
RELATO DO CASO
J.C.N., masculino, 39 anos, negro,
rodoviário, casado, natural do Rio de Janeiro. Em Novembro
de 2002 iniciou um quadro de dor abdominal em hipogástrio de pequena intensidade associada a
disúria. Procurou um serviço de emergência médica onde
foi medicado com sintomáticos e Sulfametoxazol
+ trimetroprim. Não ocorrendo melhora dos sintomas
foi encaminhado ao ambulatório de Urologia. Em
dezembro do mesmo ano começou a perceber saída de
restos alimentares parcialmente digeridos pela uretra,
como sementes e casca de grãos, concomitantemente
apresentou diarréia pastosa sem odor fétido. Foi
internado pelo serviço de Urologia do Hospital Municipal
de Ipanema em janeiro de 2003. Na anamnese inicial
o paciente negou emagrecimento, febre, queda do
estado geral, alteração do hábito intestinal, asma e
bronquite. Referiu que cinco meses antes do início dos
sintomas apresentou um quadro de odinofagia com hiperplasia das amídalas palatinas, sem febre ou
lesão purulenta, fazendo uso apenas de medicação tópica.
O exame físico no momento da internação foi normal
sem adenomegalias ou massa abdominal palpável, e os
exames laboratoriais e radiológicos não apresentaram
nenhum tipo de alteração significativa.
Inicialmente foi submetido a uma
cistoscopia armada onde foi encontrada extensa área de necrose
e fibrina com restos alimentares aderidos na parede
posterior supra-trigonal; introduzindo mais o aparelho
foi visualizada mucosa intestinal e não foi realizada
biópsia, pois não foi encontrada área segura para o
procedimento. Foi solicitado o parecer da Colo-proctologia
sendo submetido a exame proctológico e
retossigmoidoscopia flexível que não ultrapassou 30cm, onde na área da
junção retossigmoidea foi encontrada uma ulceração
rasa que foi biopsiada e o resultado do exame
histopatológico foi um infiltrado inflamatório inespecífico.
Outros exames subsidiários foram
realizados como ultra-sonografia abdominal que mostrou no
interior da bexiga uma formação expansiva
vegetante ocupando quase toda sua totalidade; um clister
opaco que mostrou compressão extrínseca do ceco e
cólon sigmóide (Figura-1); uma tomografia
computadorizada de abdome e pelve que evidenciou ar no interior
da bexiga (Figura-2).
Figura 1 - Clister Opaco que mostra compressão extrínseca de massa intra-abdominal na parede do sigmóide. |
Figura 2 - Tomografia computadorizada que mostra ar e uma imagem compatível com massa de contornos não definidos no interior da bexiga. |
Em 10/02/2003 foi submetido a laparotomia exploradora, com hipótese diagnostica de doença
de Crohn, sendo encontrada uma massa compreendendo o íleo-terminal, ceco e a parede posterior da bexiga e
à sua exploração evidenciou-se grande
comunicação entre o íleo e a parede posterior da bexiga. O exame
de congelação identificou infiltração linfocitária
atípica. Foram ressecados em bloco os cólons direito, íleo
terminal, válvula íleo-cecal e 1/3 da bexiga (Figura-3),
e realizada rafia da bexiga e íleo-transverso com
anastomose término-terminal manual.
Figura 3 - Fotografia com a peça cirúrgica composta de íleo terminal, cólon direito e parte da parede posterior da bexiga. |
O paciente teve boa evolução clínica com alta hospitalar uma semana após a cirurgia. O resultado do exame histopatológico da peça cirúrgica representada por íleo terminal, ceco, apêndice cecal, cólon ascendente e parte da bexiga foi Linfoma não-Hodgkins de grandes células extra-nodal surgindo na região íleo-cecal com comprometimento transmural. Apêndice, segmento de cólon direito e 32 linfonodos livres de neoplasia, e no segmento da bexiga evidenciou-se linfoma não Hodgkins extra-nodal de grandes células.
DISCUSSÃO
As fístulas êntero-vesicais manifestam-se
habitualmente com infecção do trato urinário e
menos comumente com pneumatúria e fecalúria. No
momento do diagnóstico a capacidade do clister opaco
em determinar uma fístula varia de 30 a 56%, sendo
a cistoscopia armada um exame que pode identificar
a localização da fístula na bexiga.9 A
tomografia computadorizada é o exame mais usado atualmente
nos casos de fístulas êntero-vesicais, possibilitando
um melhor diagnóstico do segmento intestinal
acometido e com grande possibilidade de identificação do
local das fístulas. Os linfomas não-Hodgkin intestinais
apresentam comprometimento ganglionar, acometendo
mais freqüentemente o anel de Waldeyer, os
linfonodos epitrocleares e os mesentéricos, apresentam
também sintomas sistêmicos tais como sudorese noturna,
perda ponderal superior a 10% e febre em apenas 20%
dos casos. Os sintomas referentes à doença
extra-ganglionar são mais comuns nos subtipos mais agressivos, como
é o caso dos linfomas intestinais, e podem apresentar
também massas testiculares, compressão da medula,
lesões ósseas solitárias, alteração do hábito intestinal por
compressão extrínseca e muito raramente fistulização
intestinal.1,6
O acometimento extra-nodal do L.N.H. não
é infrequente e ocorre em cerca de 40% dos casos.
Os sítios extra-nodais mais freqüentes são o estômago,
anel de Waldeyer e a pele. Sua origem provém das
células B (maioria no mundo ocidental, cerca de 80% a
90%), células T (cerca de 10% a 20%), a célula Natural
Killer, e são poucos os casos de fenótipo null (não B e não
T). As células neoplasicas distribuem-se por todo o
tecido acometido com poucas células inflamatórias na
maioria dos casos.
Em 1982 os linfomas foram classificados
com base em seu grau histológico correlacionando com
a sobrevida e história natural da doença. Em 1994
uma nova classificação foi formulada utilizando-se a
imunofenotipagem e a citogenética para diferenciar
os linfomas de células B ou de células T, que foi a
REAL (Revised European-American Lymphoma).
Posteriormente uma nova revisão foi feita pela
Organização Mundial de Saúde (OMS). Através desta nova
classificação histológica os linfomas não Hodgkin se
baseiam em:
1 - Arquitetura histológica do linfonodo;
2 - Tipo celular (pequenas células
clivadas, pequenas células não clivadas, grandes
células);
3 - Imunofenotipagem pelos tipos de marcadores de membrana ou citoplasmáticos
que podem especificar com maior precisão o tipo de linfoma
não-Hodgkin.5
Diferente da Doença de Hodgkin, o
prognóstico dos L.N.H. se baseia menos no estadiamento
e muito mais no tipo histológico. De acordo com o
comportamento clínico e agressividade da doença
eles podem também ser classificados em linfomas de
baixo grau de malignidade, grau intermediário e alto
grau de malignidade. O linfoma de baixo grau de
malignidade apresenta comprometimento no fígado e baço
que podem ter seus tamanhos aumentados porem com
provas de função hepática normais e fosfatase
alcalina um pouco aumentada. Também são comuns o
comprometimento da medula óssea, pleura, pulmão,
mamas e trato gastrointestinal.
Os linfomas de grau intermediário e alto
grau de malignidade apresentam uma história de início
súbito com adenomegalias que crescem
rapidamente, podem ser volumosas, no mediastino,
retroperitôneo e mesentério. Pode haver comprometimento do
anel de Waldeyer, que geralmente está associado à
doença extra-nodal do estômago, intestino delgado,
pulmão, pele, ossos e sistema nervoso
central5. O comprometimento do intestino é mais comum na região
íleo-cecal e reto por haver uma maior concentração de
tecido linfóide, tendendo a ser altamente malignos e se
disseminam rapidamente pela parede intestinal por contiguidade direta frequentemente com
extenso envolvimento linfático.
O entendimento da distribuição do
tecido linfóide pela mucosa intestinal é fundamental
para compreendermos melhor como se originam os
tumores desta linhagem celular. As células linfóides
estão distribuídas frouxamente ou em agregados
linfocitários com compartimentalização desses linfócitos onde
existe uma população de células muito distintas
encontrada no epitélio, os linfócitos intra-epiteliais
compostos principalmente de linfócitos T, na lâmina própria
e submucosa são encontrados os linfócitos B e T
frouxamente distribuídos. Há também uma estrutura
linfóide bastante organizada, representada pelos
folículos associados a MALT (mucosal-associated
lymphoid tissue). Estes folículos linfóides não apresentam
centros germinativos e cápsula sendo constituídos
principalmente de linfócitos B que expressam
proporções variadas de imunoglobulinas principalmente IgA
(até 85% na mucosa intestinal). Os MALTs se
distribuem anatomicamente pelas mucosas e seus
componentes individuais incluem:
a) Um anel de estrutura linfóide
circundando a faringe (anel de Waldeyer), formados
principalmente pelas amídalas nasofaríngeas;
b) Tecido linfóide associado à laringe;
c) Placas de Peyer intestinais;
d) Apêndice cecal;
e) Nódulos linfóides agregados ao cólon;
f) Nódulos isolados distribuídos em toda
a mucosa gastrintestinal, do esôfago ao
ânus.2
Os L.N.H. intestinais são raros e podem
se apresentar na forma extra-nodal altamente malignos
e se disseminam rapidamente por contiguidade pela
parede intestinal. No caso acima relatado foi
mostrado um L.N.H. intestinal primário pois o paciente não
apresentou no momento da internação nenhuma
alteração no hemograma e na radiografia de tórax, e apesar
de evoluído com uma fístula para a bexiga, o
exame histopatológico mostrou ter se originado do intestino.
Os sintomas iniciais como infecção urinária
refratária à terapêutica, pneumatúria e fecalúria são
patognomônicos de comunicação entre o intestino e o
aparelho urinário9. Exames complementares como a
tomografia de abdome que evidenciou ar no interior da
bexiga e a cistoscopia armada que mostrou mucosa
intestinal fistulizando a parede posterior da bexiga
confirmaram a presença de uma fístula
êntero-vesical. Porém a única manifestação que pôde ser
relacionada à existência de um linfoma foi o aparecimento
de adenomegalia das amigdalas palatinas sem sinal
de infecção cinco meses antes do início dos sintomas.
E de acordo com a literatura vigente os L.N.H.
extra-nodais podem ter sua manifestação inicial
com hiperplasia do anel de Waldeyer, sendo mais
comum nos casos de alto grau de malignidade.
No resultado do exame histopatológico da
peça operatória evidenciou-se linfoma de grandes células
que de acordo com a Organização Mundial de Saúde são
os de maior grau de malignidade, e não houve invasão
para os 32 linfonodos retirados com a peça cirúrgica. O
diagnóstico de L.N.H. só pôde ser dado após o
resultado anátomo-patológico. O recomendado na literatura
sobre o tratamento desta patologia no trato
gastrointestinal é que o primeiro tratamento é cirúrgico devido ao
risco de sangramento e perfuração, e logo a seguir
a quimioterapia é realizada. Nos linfomas de grau
intermediário e de alto grau a poliquimioterapia é a base
do tratamento curativo sendo que estes tumores
possuem um prognóstico desfavorável tornando-se
favoráveis, posto que é possível obter regularmente a cura. O
paciente foi encaminhado ao serviço de Oncologia.
CONCLUSÃO
Mesmo sendo raras as fístulas
êntero-vesicais causadas por linfomas não Hodgkin, o caso
apresentado mostrou um sintoma comum à doença que foi
a hiperplasia das amigdalas palatinas que podemos
associar como principal e que após o
diagnóstico histopatológico podemos confrontar com os
encontrados na literatura, já que sintomas como febre,
perda ponderal e anorexia nos linfomas extra-nodais são
encontrado em apenas 20% dos casos relatados. No
início da investigação diagnóstica os exames
complementares e os sintomas nos levaram a um diagnóstico
de uma fístula do intestino para a bexiga quando foi
indicado o tratamento cirúrgico, porém, sendo os
linfomas intestinais patologias raras e seus sintomas não
muito específicos, é difícil no pré-operatório chegarmos a
este diagnóstico.
SUMMARY: The intestinal lymphomas are rare tumors that attack lymphoid cells and distribute widely or in aggregates, in epithelium, bladder, and sub mucous in intestine. The non-Hodgkin's lymphomas are the most common isolated group of neoplasm in immunological system. It is very uncommon to initiate with a fistula diagnosed in the intestine. It's frequent to initiate from lymphocytes from B cell, they are very aggressive and they spread by continuity through the intestine wall. The authors report the case of a black 39-year-old man with fistula between small bowel and backside bladder in which the unique symptom related to lymphomas was hyperplasia of amygdales. In preoperative the image examinations helped to identify the fistula, however, the lymphoma's diagnoses could only be done by pathologic examination.
Key words: intestinal lymphomas, non-Hodgkin's lymphomas, fistula
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Endereço para Correspondência:
Francisco Eduardo Silva
Rua Antônio Parreira, 67 sl 510
Serviço de Colo-proctologia do Hospital Municipal de Ipanema
Ipanema - Rio de Janeiro - RJ
Trabalho realizado pelo Serviço de Coloproctologia do Hospital Municipal de Ipanema.