RELATO DE CASO


FÍSTULA ÊNTERO-VESICAL COMO APLICAÇÃO DE LINFOMA INTESTINAL: RELATO DE CASO

FRANCISCO EDUARDO SILVA
VIVIAN SCOFANO
MARIO HENRIQUE ASCOLY
NELSON ARAKAKI JUNIOR
OTAVIANO C. A. REIS
MIGUEL ARCANJO G. SILVA SÁ - TSBCP

SILVA FE; SCOFANO V; ASCOLY MH; ARAKAKI JUNIOR N; REIS OCA; SILVA SÁ MAG. Fístula êntero-vesical como complicação de linfoma intestinal. Rev Bras Coloproct, 2003;23(3):200-204

RESUMO: Os linfomas intestinais são um grupo de tumores raros que acometem as células linfóides e se distribuem amplamente ou em agregados, no epitélio, lâmina própria, e submucosa do intestino. Os linfomas não-Hodgkin formam o maior grupo isolado de neoplasias do sistema imunológico. No intestino é bastante raro o linfoma iniciar com um quadro de fístula e são mais comuns se originarem dos linfócitos do tipo células B, são muito agressivos e se disseminam por contigüidade pela parede intestinal. O caso relatado mostra um homem negro de 39 anos com uma fístula entre a região ileocecal e a parede posterior da bexiga sendo que o único sintoma relacionado a linfomas foi a hiperplasia das amídalas palatinas. No pré-operatório os exames de imagem auxiliaram na identificação da fístula, porém o diagnóstico de linfoma só pôde ser dado após o resultado do exame anátomo-patológico.

Unitermos: linfoma intestinal, linfoma não-Hodgkin, fístula êntero-vesical

INTRODUÇÃO
Fístulas êntero-vesicais são patologias comuns na prática colo-proctológica e suas causas são bastante variadas. Segundo a literatura disponível as suas principais causas são: Doença diverticular, neoplasia colorretal, de bexiga, útero e próstata, doença de Crohn, trauma e radiação; por outro lado fístulas causadas por linfomas intestinais são bastante raras. Nos casos de neoplasia intestinal os sítios mais comuns de fístulas com o trato urinário são o íleo e o cólon. 7
   
O linfoma maligno do intestino é uma neoplasia rara que se desenvolve em componentes do tecido linfóide do sistema imune, sendo considerado primário do intestino delgado quando não há linfadenopatia superficial palpável, alteração no hemograma, no exame radiológico de tórax e comprometimento de outras vísceras na laparotomia exploradora. Podem ter apresentação tardia devido a seu crescimento insidioso. Os linfomas representam 4 a 12% dos tumores malignos primários do trato grantrointestinal, sendo o estômago o local mais acometido, ocorrem no intestino delgado cerca de 10 a 15%, e no cólon 0,1 a 1,0%.3,4 Os linfomas não-Hodgkin (L.N.H.) formam o maior grupo isolado de neoplasias do sistema imunológico, composto por mais de 10 entidades mórbidas distintas, podendo ocorrer em qualquer idade, sendo, porém, mais comum acima dos 40 anos. Na faixa etária mais jovem a predominância no sexo masculino é mais evidente e com subtipos histológicos mais agressivos. O desenvolvimento do L.N.H. agressivo é associado a uma disfunção imunológica prévia e as considerações etiológicas de sua origem passam desde o vírus oncogene, presente em alguns subtipos específicos de linfomas, a outros fatores que podem estimular o aparecimento dos linfomas como a radiação ionizante, predisposição hereditária, imunodeficiência congênita e adquirida e a exposição de pesticidas.1

RELATO DO CASO
J.C.N., masculino, 39 anos, negro, rodoviário, casado, natural do Rio de Janeiro. Em Novembro de 2002 iniciou um quadro de dor abdominal em hipogástrio de pequena intensidade associada a disúria. Procurou um serviço de emergência médica onde foi medicado com sintomáticos e Sulfametoxazol + trimetroprim. Não ocorrendo melhora dos sintomas foi encaminhado ao ambulatório de Urologia. Em dezembro do mesmo ano começou a perceber saída de restos alimentares parcialmente digeridos pela uretra, como sementes e casca de grãos, concomitantemente apresentou diarréia pastosa sem odor fétido. Foi internado pelo serviço de Urologia do Hospital Municipal de Ipanema em janeiro de 2003. Na anamnese inicial o paciente negou emagrecimento, febre, queda do estado geral, alteração do hábito intestinal, asma e bronquite. Referiu que cinco meses antes do início dos sintomas apresentou um quadro de odinofagia com hiperplasia das amídalas palatinas, sem febre ou lesão purulenta, fazendo uso apenas de medicação tópica. O exame físico no momento da internação foi normal sem adenomegalias ou massa abdominal palpável, e os exames laboratoriais e radiológicos não apresentaram nenhum tipo de alteração significativa.
    Inicialmente foi submetido a uma cistoscopia armada onde foi encontrada extensa área de necrose e fibrina com restos alimentares aderidos na parede posterior supra-trigonal; introduzindo mais o aparelho foi visualizada mucosa intestinal e não foi realizada biópsia, pois não foi encontrada área segura para o procedimento. Foi solicitado o parecer da Colo-proctologia sendo submetido a exame proctológico e retossigmoidoscopia flexível que não ultrapassou 30cm, onde na área da junção retossigmoidea foi encontrada uma ulceração rasa que foi biopsiada e o resultado do exame histopatológico foi um infiltrado inflamatório inespecífico.
    Outros exames subsidiários foram realizados como ultra-sonografia abdominal que mostrou no interior da bexiga uma formação expansiva vegetante ocupando quase toda sua totalidade; um clister opaco que mostrou compressão extrínseca do ceco e cólon sigmóide (Figura-1); uma tomografia computadorizada de abdome e pelve que evidenciou ar no interior da bexiga (Figura-2).

 
Figura 1 - Clister Opaco que mostra compressão extrínseca de massa intra-abdominal na parede do sigmóide.



Figura 2 - Tomografia computadorizada que mostra ar e uma imagem compatível com massa de contornos não definidos no interior da bexiga.


    Em 10/02/2003 foi submetido a laparotomia exploradora, com hipótese diagnostica de doença de Crohn, sendo encontrada uma massa compreendendo o íleo-terminal, ceco e a parede posterior da bexiga e à sua exploração evidenciou-se grande comunicação entre o íleo e a parede posterior da bexiga. O exame de congelação identificou infiltração linfocitária atípica. Foram ressecados em bloco os cólons direito, íleo terminal, válvula íleo-cecal e 1/3 da bexiga (Figura-3), e realizada rafia da bexiga e íleo-transverso com anastomose término-terminal manual.

 
Figura 3 - Fotografia com a peça cirúrgica composta de íleo terminal, cólon direito e parte da parede posterior da bexiga.

 

    O paciente teve boa evolução clínica com alta hospitalar uma semana após a cirurgia. O resultado do exame histopatológico da peça cirúrgica representada por íleo terminal, ceco, apêndice cecal, cólon ascendente e parte da bexiga foi Linfoma não-Hodgkins de grandes células extra-nodal surgindo na região íleo-cecal com comprometimento transmural. Apêndice, segmento de cólon direito e 32 linfonodos livres de neoplasia, e no segmento da bexiga evidenciou-se linfoma não Hodgkins extra-nodal de grandes células.

DISCUSSÃO
As fístulas êntero-vesicais manifestam-se habitualmente com infecção do trato urinário e menos comumente com pneumatúria e fecalúria. No momento do diagnóstico a capacidade do clister opaco em determinar uma fístula varia de 30 a 56%, sendo a cistoscopia armada um exame que pode identificar a localização da fístula na bexiga.9 A tomografia computadorizada é o exame mais usado atualmente nos casos de fístulas êntero-vesicais, possibilitando um melhor diagnóstico do segmento intestinal acometido e com grande possibilidade de identificação do local das fístulas. Os linfomas não-Hodgkin intestinais apresentam comprometimento ganglionar, acometendo mais freqüentemente o anel de Waldeyer, os linfonodos epitrocleares e os mesentéricos, apresentam também sintomas sistêmicos tais como sudorese noturna, perda ponderal superior a 10% e febre em apenas 20% dos casos. Os sintomas referentes à doença extra-ganglionar são mais comuns nos subtipos mais agressivos, como é o caso dos linfomas intestinais, e podem apresentar também massas testiculares, compressão da medula, lesões ósseas solitárias, alteração do hábito intestinal por compressão extrínseca e muito raramente fistulização intestinal.1,6
   
O acometimento extra-nodal do L.N.H. não é infrequente e ocorre em cerca de 40% dos casos. Os sítios extra-nodais mais freqüentes são o estômago, anel de Waldeyer e a pele. Sua origem provém das células B (maioria no mundo ocidental, cerca de 80% a 90%), células T (cerca de 10% a 20%), a célula Natural Killer, e são poucos os casos de fenótipo null (não B e não T). As células neoplasicas distribuem-se por todo o tecido acometido com poucas células inflamatórias na maioria dos casos.
    Em 1982 os linfomas foram classificados com base em seu grau histológico correlacionando com a sobrevida e história natural da doença. Em 1994 uma nova classificação foi formulada utilizando-se a imunofenotipagem e a citogenética para diferenciar os linfomas de células B ou de células T, que foi a REAL (Revised European-American Lymphoma). Posteriormente uma nova revisão foi feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Através desta nova classificação histológica os linfomas não Hodgkin se baseiam em:
1 - Arquitetura histológica do linfonodo;
2 - Tipo celular (pequenas células clivadas, pequenas células não clivadas, grandes células);
3 - Imunofenotipagem pelos tipos de marcadores de membrana ou citoplasmáticos que podem especificar com maior precisão o tipo de linfoma não-Hodgkin.5
   
Diferente da Doença de Hodgkin, o prognóstico dos L.N.H. se baseia menos no estadiamento e muito mais no tipo histológico. De acordo com o comportamento clínico e agressividade da doença eles podem também ser classificados em linfomas de baixo grau de malignidade, grau intermediário e alto grau de malignidade. O linfoma de baixo grau de malignidade apresenta comprometimento no fígado e baço que podem ter seus tamanhos aumentados porem com provas de função hepática normais e fosfatase alcalina um pouco aumentada. Também são comuns o comprometimento da medula óssea, pleura, pulmão, mamas e trato gastrointestinal.
    Os linfomas de grau intermediário e alto grau de malignidade apresentam uma história de início súbito com adenomegalias que crescem rapidamente, podem ser volumosas, no mediastino, retroperitôneo e mesentério. Pode haver comprometimento do anel de Waldeyer, que geralmente está associado à doença extra-nodal do estômago, intestino delgado, pulmão, pele, ossos e sistema nervoso central5. O comprometimento do intestino é mais comum na região íleo-cecal e reto por haver uma maior concentração de tecido linfóide, tendendo a ser altamente malignos e se disseminam rapidamente pela parede intestinal por contiguidade direta frequentemente com extenso envolvimento linfático.
    O entendimento da distribuição do tecido linfóide pela mucosa intestinal é fundamental para compreendermos melhor como se originam os tumores desta linhagem celular. As células linfóides estão distribuídas frouxamente ou em agregados linfocitários com compartimentalização desses linfócitos onde existe uma população de células muito distintas encontrada no epitélio, os linfócitos intra-epiteliais compostos principalmente de linfócitos T, na lâmina própria e submucosa são encontrados os linfócitos B e T frouxamente distribuídos. Há também uma estrutura linfóide bastante organizada, representada pelos folículos associados a MALT (mucosal-associated lymphoid tissue). Estes folículos linfóides não apresentam centros germinativos e cápsula sendo constituídos principalmente de linfócitos B que expressam proporções variadas de imunoglobulinas principalmente IgA (até 85% na mucosa intestinal). Os MALTs se distribuem anatomicamente pelas mucosas e seus componentes individuais incluem:
a) Um anel de estrutura linfóide circundando a faringe (anel de Waldeyer), formados principalmente pelas amídalas nasofaríngeas;
b) Tecido linfóide associado à laringe;
c) Placas de Peyer intestinais;
d) Apêndice cecal;
e) Nódulos linfóides agregados ao cólon;
f) Nódulos isolados distribuídos em toda a mucosa gastrintestinal, do esôfago ao ânus.2
   
Os L.N.H. intestinais são raros e podem se apresentar na forma extra-nodal altamente malignos e se disseminam rapidamente por contiguidade pela parede intestinal. No caso acima relatado foi mostrado um L.N.H. intestinal primário pois o paciente não apresentou no momento da internação nenhuma alteração no hemograma e na radiografia de tórax, e apesar de evoluído com uma fístula para a bexiga, o exame histopatológico mostrou ter se originado do intestino.
    Os sintomas iniciais como infecção urinária refratária à terapêutica, pneumatúria e fecalúria são patognomônicos de comunicação entre o intestino e o aparelho urinário9. Exames complementares como a tomografia de abdome que evidenciou ar no interior da bexiga e a cistoscopia armada que mostrou mucosa intestinal fistulizando a parede posterior da bexiga confirmaram a presença de uma fístula êntero-vesical. Porém a única manifestação que pôde ser relacionada à existência de um linfoma foi o aparecimento de adenomegalia das amigdalas palatinas sem sinal de infecção cinco meses antes do início dos sintomas. E de acordo com a literatura vigente os L.N.H. extra-nodais podem ter sua manifestação inicial com hiperplasia do anel de Waldeyer, sendo mais comum nos casos de alto grau de malignidade.
    No resultado do exame histopatológico da peça operatória evidenciou-se linfoma de grandes células que de acordo com a Organização Mundial de Saúde são os de maior grau de malignidade, e não houve invasão para os 32 linfonodos retirados com a peça cirúrgica. O diagnóstico de L.N.H. só pôde ser dado após o resultado anátomo-patológico. O recomendado na literatura sobre o tratamento desta patologia no trato gastrointestinal é que o primeiro tratamento é cirúrgico devido ao risco de sangramento e perfuração, e logo a seguir a quimioterapia é realizada. Nos linfomas de grau intermediário e de alto grau a poliquimioterapia é a base do tratamento curativo sendo que estes tumores possuem um prognóstico desfavorável tornando-se favoráveis, posto que é possível obter regularmente a cura. O paciente foi encaminhado ao serviço de Oncologia.

CONCLUSÃO
Mesmo sendo raras as fístulas êntero-vesicais causadas por linfomas não Hodgkin, o caso apresentado mostrou um sintoma comum à doença que foi a hiperplasia das amigdalas palatinas que podemos associar como principal e que após o diagnóstico histopatológico podemos confrontar com os encontrados na literatura, já que sintomas como febre, perda ponderal e anorexia nos linfomas extra-nodais são encontrado em apenas 20% dos casos relatados. No início da investigação diagnóstica os exames complementares e os sintomas nos levaram a um diagnóstico de uma fístula do intestino para a bexiga quando foi indicado o tratamento cirúrgico, porém, sendo os linfomas intestinais patologias raras e seus sintomas não muito específicos, é difícil no pré-operatório chegarmos a este diagnóstico.

SUMMARY: The intestinal lymphomas are rare tumors that attack lymphoid cells and distribute widely or in aggregates, in epithelium, bladder, and sub mucous in intestine. The non-Hodgkin's lymphomas are the most common isolated group of neoplasm in immunological system. It is very uncommon to initiate with a fistula diagnosed in the intestine. It's frequent to initiate from lymphocytes from B cell, they are very aggressive and they spread by continuity through the intestine wall. The authors report the case of a black 39-year-old man with fistula between small bowel and backside bladder in which the unique symptom related to lymphomas was hyperplasia of amygdales. In preoperative the image examinations helped to identify the fistula, however, the lymphoma's diagnoses could only be done by pathologic examination.

Key words: intestinal lymphomas, non-Hodgkin's lymphomas, fistula

Referências Biliográficas
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9. Meguid MM, Campos ACL _ Controle cirúrgico das fistulas gastrintestinais. Clínicas cirúrgicas da América do Norte 1996, 4: 1191-1196.

Endereço para Correspondência:
Francisco Eduardo Silva
Rua Antônio Parreira, 67 sl 510
Serviço de Colo-proctologia do Hospital Municipal de Ipanema
Ipanema - Rio de Janeiro - RJ

Trabalho realizado pelo Serviço de Coloproctologia do Hospital Municipal de Ipanema.