OPINIÕES E REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Júlio César Monteiro dos Santos Júnior - TSBCP
Resumo: A inflamação é uma resposta orgânica local ou geral, de magnitude variável, desencadeada por diversos fatores que tem como fim proteger o animal contra qualquer tipo de agressão, por um processo de regulação que mantenha o equilíbrio das diversas funções e composições químicas do corpo. Em determinadas circunstâncias, no entanto, a resposta é endereçada de tal forma que as reações são destrutivas, rompedoras da harmonia das funções e do equilíbrio químico do organismo. Os compartimentos orgânicos se misturam e as trocas, que se tornam passivas, descaracterizam o que é intra ou extracelular. Para essa circunstancia, denominada de síndrome da reação inflamatória sistêmica, não há tratamento específico e as tentativas de controle se multiplicam em iatrogenias, razão porque um número relativamente grande de pacientes afetados evolui inexoravelmente para a morte, o que nos faz supor que a prevenção é a única arma, por enquanto, disponível.
Unitermos: inflamação, reação inflamatória sistêmica, falência de múltiplos órgãos
Os organismos vivos - em especial os mamíferos - possuem uma habilidade inata de
defesa própria, contra as agressões, baseada em
quatro elementos1:
1. barreira externa;
2. sistema interno inespecífico que reage
contra a agressão ou os invasores;
3. mecanismo de resposta antigênica especifica e
4. integridade das membranas compartimentais.
A reação fisiológica primária ante a
agressão tecidual - seja ela física (mecânica ou química) ou
biológica (bactérias, vírus ou qualquer outro
organismo vivo) - é a inflamação.
A inflamação é uma resposta celular e
humoral de magnitude variável com repercussões
meramente locais, loco-regionais ou sistêmicas, cujo disparo
é produtor de uma cascata de eventos que
envolvem complementos, cininas, fibrinolíticos e
coagulantes estimulados, juntos, com a ativação de fagócitos e
das células endoteliais. Mediada por diferentes
mecanismos, ela ocorre em três fases distintas, sendo: a.
fase aguda - evento transitório caracterizado pelos
sinais clássicos da inflamação; b. fase subaguda
retardada, onde se nota, predominantemente, a
infiltração leucocitária e, c. fase crônica, onde a proliferação
é fato de destaque com a ocorrência da
degeneração tissular e da reparação fibrótica.
Essas três fases são desejáveis e importantes
e podem ser consideradas benignas dentro de padrões
em que as atividades celulares e dos mediadores
permanecem apropriadamente regulados e podem ser identificadas
por alterações locais notáveis pelos seguintes sinais
e sintomas: o rubor, o calor, o tumor e a dor.
Esses sinais e sintomas são expressões,
na mesma seqüência, da vasodilatação e aumentada
permeabilidade da microcirculação possibilitando a
maior oferta local de nutrientes e de oxigênio; da
produção energética, de extravasamento de líquido para
o interstício, provocando o intumescimento e o
edema, e da irritação de terminais nervosos com
provocação de dor.
A resposta natural do organismo pode,
também, ser notada de forma mais dinâmica pelas
alterações cardiovasculares, respiratórias e neuro-endócrinas
- aumento da função cardíaca (taquicardia, aumento
da contratilidade e conseqüentemente do débito
cardíaco), aumento da freqüência respiratória (taquipnéia)
e aumento da função hormonal (catecolaminas,
cortisol, hormônio antidiurético, hormônio do
crescimento, glucagon e insulina)
Essa resposta natural, em geral, é
acompanhada de uma necessidade maior de fluidos, reflexo
da depressão do compartimento intravascular por
causa do aparecimento do "terceiro espaço", onde os
líquidos são acumulados1.
Essas alterações metabólicas são
inespecíficas, portanto, não dependem da qualidade do agente
agressor e é, há muito, reconhecida como reação
metabólica à agressão (qualquer tipo de estresse - medo, frio,
fome - , etc.) e prepara o organismo para a fuga ou para
o ataque.
Em maior ou menor magnitude, a principal expressão da reação metabólica à agressão é um
súbito aumento no consumo de oxigênio e, na seqüência,
o aumento da resposta metabólica, com a queda
da resistência vascular sistêmica e o disparo,
subseqüente, de vários mecanismos mantenedores da homeostase.
Não havendo mais insulto, a resposta
atinge seu pico dentro de 3 a 5 dias após o estímulo e
cessa dentro de 7 ou 10 dias, período no transcurso do
qual há contração do "terceiro espaço", seguido pela
queda do pulso e da temperatura, aumento da
diurese espontânea e completa recuperação da
homeostase1.
A referida resposta pode ser dividida
didaticamente em:
1. Reações que dizem respeito ao
metabolismo energético orgânico e à mudança do
substrato energético;
2. Reações que dizem respeito ao
metabolismo de água e dos eletrólitos;
3. Reações metabólicas de reparo tecidual.
Esses elementos estão todos enfeixados
num círculo juntamente com o estímulo e com os fatores
de interação e modulação mantidos pelo sistema
nervoso central e pelo sistema neuro-endócrino, objetivando
o equilíbrio homeostático.
Se o estímulo inicial é intenso ou
persistente, a resposta do organismo pode ser ampliada,
com descontrole do sistema de interação e
integração, caracterizando uma reação inflamatória
sistêmica generalizada, cujas alterações se agregam numa
síndrome conhecida como síndrome da reação
inflamatória sistêmica (SIRS)
Nesses casos, e mesmo antes do
descontrole, as citocinas são os principais mensageiros
fisiológicos da resposta inflamatória com o envolvimento de
moléculas, tais como o fator de necrose tumoral (TNF),
as interleucinas (IL-1, IL-6) o interferon, o fator
cólico estimulante (CSFs) e de efetores celulares, tais
como os polimorfonucleares (PMN), monócitos e
células endoteliais2.
Há, também, a ativação dos leucócitos,
com aumento de sua agregação dentro da
microcirculação, com maior infiltração celular numa verdadeira
explosão respiratória (seqüência celular de reações químicas
para a produção de substrato energético) com
substancial aumento do consumo de oxigênio, bem como
da produção de mais citocinas e de outros
mediadores inflamatórios.
A diferença arteriovenosa do conteúdo
de oxigênio é mantida se a oferta desse gás é
compatível com as necessidades, caso contrário o ciclo
metabólico não se completa e a anaerobiose torna-se
expressão prevalente3,4.
A busca de conhecimentos que pudessem subsidiar condutas capazes de retroceder ou desviar
esse fenômeno proporcionou-nos a oportunidade para
uma visão mais profunda do problema e o para o
entendimento avançado da sua complexidade.
O estudo da fisiopatologia da SIRS
leva-nos ao encontro de mais de uma teoria descritiva de todo
o mecanismo.
Essas teorias têm em comum a idéia básica
de que o fenômeno é expressão de total perda de
controle da ativação do sistema com resposta
sistêmica exagerada. Assim, numa concepção atual,
Bone5 descreve a SIRS em três estágios: os estágios I e
II representam a fase inicial de uma resposta
inflamatória - a primeira fase é exclusivamente local, mediada
pela produção inicial de citocinas; a segunda fase, o
mediador é liberado em pequena quantidade para
acentuar os efeitos locais, por ação sistêmica, reunindo
macrófagos e plaquetas, havendo, também, estimulação
na produção do fator de crescimento. Inicia-se uma
fase aguda de resposta completamente controlada
por diminuição simultânea de mediadores
pró-inflamatórios e de antagonistas de liberação endógena.
Nessas duas fases temos todas as
reações protetoras e promotoras que evoluem
continuamente até a reparação da lesão, ao combate à infecção e
com a recuperação da homeostase. Contudo, pode haver
um estágio III, na situação em que a homeostase não
se restabelece - essa falha promove uma reação
sistêmica maciça onde os efeitos dos mediadores são
predominantemente destrutivos. Numa cadeia de
eventos, desencadeiam-se reações catastróficas por uma
sustentada ativação do sistema reticuloendotelial, com
perda da integridade das membranas separadoras dos
compartimentos corporais, lesões de vários órgãos,
descontrolada vasodilatação sistêmica com
conseqüente diminuição da resistência periférica, necessária para
a demanda funcional do sistema cardiovascular e, portanto, do provimento energético para toda a
economia.
O resultado, entre outros, é a hipotensão e
o exagerado extravasamento de líquidos para o
"terceiro espaço", com contração dos espaços intravascular
e intracelular. Agrava esses eventos o fato de que,
no estágio III da resposta inflamatória, o miocárdio
sofre notável depressão de sua contratilidade, sem
substrato morfológico demonstrável, sob efeito da
produção "paracrina" de óxido nítrico, provavelmente do
endotélio vascular6. Essa é uma das fases cruciais do
fenômeno, terreno fértil para as iatrogenias.
A reanimação com volume torna-se
totalmente ineficaz e deletéria; a hipotensão persiste, agravada
pela perda da resistência periférica e pelo
extravasamento de líquido para o espaço intersticial e os danos
celulares são intensificados quando se tenta sustentar com
colóides ou com cristalóides, em excesso, a negada
resposta homeostática "necessária para manter a desejável
liberação de
oxigênio"1, na satisfação da demanda
celular e correção da diferença arteriovenosa desse gás.
Essa resposta local e sistêmica da fase
destrutiva da reação inflamatória - lesão das
membranas, fechamento do esfíncter pré-capilar, "shunt"
arteriovenoso, vasodilatação, depressão do miocárdio,
excessiva permeabilidade vascular, formação de
"micros-trombos" leucocitários, agregação de plaquetas com
a coagulação disseminada, ativação das células
do sistema reticuloendotelial, as gravíssimas
alterações metabólicas
gerais11, etc - enfeixa fatores que
contribuem para o desenvolvimento de alterações
fisiopatológicas que não têm mais, nesse estágio, nem
uma relação com o agente etiológico, mas são
responsáveis pelo inexorável desenvolvimento da SIRS e da
falência final dos órgãos.
Longe, no entanto, de soluções práticas,
mas no caminho do acerto, a preocupação atual é a
de redefinição de termos e conceitos para que, com
uma linguagem universal, haja expansão efetiva;
primeiro, no diagnóstico e depois nos delineamentos terapêuticos.
Esta é a mais fundamental das razões para
que o termo sepse - sepsia - do grego sêpsis que
significa "putrefação" (no inglês "sepsis") seja substituído
por síndrome da resposta inflamatória
sistêmica (SIRS)12, já que o processo descreve uma resposta
inflamatória grave com características idênticas que pode ser o
resultado de uma grande variedade de insultos, tais
como: doenças não infecciosas (pancreatite, isquemias,
lesões teciduais observáveis no politraumatizado ou no
queimado, choque hemorrágico, lesões orgânicas
imunogênicas) e por causa de administração exógena
de mediadores do processo inflamatório, tais como
as citocinas e o TNF, entre outras causas; podendo
ter como final a síndrome da disfunção orgânica
(falência de múltiplos órgãos) e, em seguida, a morte.
Quando a SIRS for resultado de um processo infeccioso confirmado, ela será denominada de
SEPSE. Então, em circunstancias como essa, o termo
SEPSE representa a síndrome da resposta inflamatória
sistêmica na presença da ou por causa da infecção.
O diagnóstico de SIRS inclui, mas não se
limita por eles, os seguintes sinais:
1. Temperatura maior de 38 0C ou menor que
360C;
2. Freqüência cardíaca maior que 90
batimentos por minuto;
3. Taquipnéia (freqüência respiratória maior
que 20 movimentos por minuto) ou uma hiperventilação indicada por
PaCO2 menor que 32 mmHg;
4. Leucograma com leucócitos acima de
12.000 células/mm3 ou abaixo de 4.000
células/mm3 ou mais de 10% de neutrófilos imaturos.
Cem anos atrás, Erlich e
col.13, citado por Baue14, impressionaram a comunidade médica
quando ao abordar a mencionada reação sistêmica,
denominaram-na de "horror autotóxico" para expressar
o conjunto de reações inexoráveis - verdadeiro
canibalismo - desencadeadas por um problema primário,
às vezes aparentemente simples, mas sem solução. De
lá para cá, houve mudanças, houve progresso,
mas estamos ainda, apesar das novas definições, aquém
do desejado.
Não havia, ainda que estudado sem os
recursos tecnológicos dos nossos dias, impropriedade na
comunicação científica de Erlich e
col.13, como não houve na frase de
Osler1 quando disse que a pessoa não morre
da doença, e sim das alterações e reações que ela
desencadeia no organismo - "patients die not of their disease, they
die of the physiological abnormalities of their disease".
(Sir William Osler - 1849-1919 - foi Professor na
Universidade McGill, Professor de Medicina na Universidade de
John Hopkins, em Baltimore, e Regente da Cadeira de
Medicina na Universidade de Oxford, Inglaterra, além de
eminente patologista).
Isso, verdadeiramente ocorre na SIRS, não
só porque o organismo perde controle da reação
como também por causas iatrogênicas que surgem nas
tentativas desesperadas de "tratamento" e bloqueios
da cascata de eventos.
Há, reconhecidos, três pontos na
patogênese dessa cadeia de reações onde a terapêutica pode
ser instituída:
1. imediata erradicação- cirúrgica ou médica
- do foco infeccioso (quando houver) ou reparo da causa;
2. tratamento apropriado e suporte intensivo
para corrigir os distúrbios metabólicos
orgânicos ou sistêmicos;
3. administração de drogas que sejam
capazes de inibir os mediadores anti e
pró-inflamatórios.
Com todas essas instâncias de ação,
necessárias, mas nem sempre suficientes o que não
pode jamais ser esquecido pelos clínicos e cirurgiões
intensivistas é que o organismo, alvo da agressão, tem
compartimentos separados por membranas que funcionam
às custas de mecanismos que consomem energia, não
só para o transporte ativo como para manter sua
integridade e que a maior parte dos eventos de
desagregação orgânica observáveis na SIRS tem base na "lesão
dessas membranas", incluindo as que isolam as
organelas intracelulares até as que definem as interfaces
que separam o que é intravascular, intersticial e intracelular.
Dentro dessa concepção, um dos alicerces
para o desfecho da cascata de eventos que culmina com
a falência de múltiplos órgãos e com a morte é a
lesão das membranas. Por outro lado, deve-se ter em
mente que a SIRS - fase pró-inflamatória do processo,
durante o qual ocorre a lesão celular - é apenas um lado
da moeda; o outro é a síndrome da reposta
antiinflamatória compensadora
(CARS)15, ainda mal conhecida.
A evolução dos conhecimentos parece
estar sendo rápida, mas a modulação dos dois
fenômenos está, ainda, engatinhando e parece localizada mais
na possibilidade, não concretizada, de se usar
"anti-mediadores" e na aceitação de novos conceitos sobre
a SIRS15, que, incorporando siglas
(CARS1, MARS2 e
CHAOS3)1, tornam-se indicadores das limitações
dos nossos atuais conhecimentos, mas são,
também, sugestões da possibilidade de agregação de
novos horizontes e, sem dúvida, de abertura para um
tratamento futuro incisivo e coroado de sucesso, pois,
por enquanto, o que nos resta é fazer profilaxia e não
piorar a situação.
Portanto, lesadas as membranas, a
conjuntura que é grave pode ser piorada com a
inadequação terapêutica do uso excessivo de
cristalóides18, gelatinas,
albuminas19, e até mesmo com a "papa" de
hemácias20. Essas podem, ao lado do desejável efeito de
aumentar o transporte de oxigênio e promover o
complemento do conteúdo do intravascular, provocar
reações indesejáveis, principalmente no que diz respeito
a processos
imuno-inflamatórios21,22, além da
possível capacidade para ativar a desastrosa cascata da
reação inflamatória
sistêmica23,24. Aqueles, com o
propósito de reanimar e recompor o volume do
intravascular, junto com os colóides passam pelo endotélio
lesado, inundam o "terceiro espaço" e determinam o
aumento da pressão oncótica desse outro lado, intensificando
o edema18 e dificultando, ainda mais, as possíveis
trocas celulares que restam como última esperança ou
agem mecanicamente, como grandes acúmulos em
espaços que podem restringir funções vitais como soe
acontecer com o interstício pulmonar, na síndrome da
insuficiência respiratória aguda; com a cavidade
abdominal18, tal como ocorre nas
peritonites25, promovendo a elevação da pressão intraperitoneal, impede os
livres movimentos diafragmáticos, diminui o retorno
venoso, afeta o débito cardíaco, caracterizando a síndrome
do compartimento abdominal26,27, que por si só pode
ser insulto suficiente para deflagrar a resposta
inflamatória28 ou, como pode acontecer, encher o saco
pericárdico18, num inusitado tamponamento cardíaco,
em geral não diagnosticado, que, mecanicamente,
agrava a falência funcional do coração e projeta o instante
da morte.
Em suma, na falta de procedimentos
terapêuticos definidos que possam assegurar
resultados efetivos quando estamos ante o desafio da SIRS, o
que nos resta é a antecipação. A prevenção pode ser
baseada em dados clínicos e laboratoriais - sinais e
sintomas maiores - que antecipam o "horror autotóxico e
sobre os quais as medidas terapêuticas são eficazes.
Reconhecê-los é obrigação imperiosa de quem
pretende mudar o curso de doença para a qual não se pode
aceitar os "deslizes" que ofendem os fundamentos da
terapia, mesmos os mais simples, como o da medicação
hidroeleletrolítica.
1CARS= síndrome da resposta antiinflamatória;
2MARS= síndrome mista da resposta inflamatória sistêmica;
3CHAOS= choque cardiovascular, homeostase, apoptose,
órgão falido e supressão imune.
Summary: SIRS - systemic inflammatory response syndrome - is a universal process involving an abnormal response to any insult. It concerns the same circumstance in which there is an individual self-destruction as Ehrlich described in 1901 using the term "horror autotoxicus"13,14. The management of SIRS based on present knowledge requires pre-emptive therapy; otherwise the cascade becomes out of control followed by the organism death.
Key words: inflammatory response, organ failure
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Endereço para correspondência:
Instituto de Medicina
Júlio César M Santos Júnior
Av Min Urbano Marcondes, 516
12515-230 - Guaratinguetá - SP