ARTIGOS ORIGINAIS
EMMANUEL CONRADO SOUSA - ASBCP
Sousa EC. A Ressecção Total do Reto: Qual o Papel da Técnica de
Eversão? Rev bras Coloproct, 2004; 24(1):38-44.
RESUMO : É descrita a técnica da eversão retal, utilizada para tratamento cirúrgico da retocolite ulcerativa, polipose
adenomatosa familiar do cólon e casos selecionados de neoplasia no terço médio e inferior do reto.
Seis pacientes foram submetidos a tratamento cirúrgico utilizando a eversão retal: um com retocolite ulcerativa, três portadores
de polipose adenomatosa familiar do cólon e dois com adenocarcinoma bem diferenciado do reto.Os pacientes apresentaram boa
evolução no pós-operatório e os resultados funcionais foram considerados satisfatórios.
O autor propõe a utilização do procedimento como forma de otimizar a retocolectomia total com anastomose íleo-anal,
evitando aumento do risco de inflamação, recidiva dos pólipos e neoplasia nos portadores de RCUI e FAP, quando permanece mucosa
colo-retal residual.A eversão intestinal proporciona uma visão direta do reto, facilitando a ressecção e anastomose colo-retal baixa
nos pacientes com neoplasia.Tecnicamente este procedimento é realizado de forma suave e com pouco trauma desde que a dissecção
seja realizada até os elevadores do ânus.A eversão retal possui vantagens sobre as demais técnicas, pois proporciona ao cirurgião
uma visão direta do canal anal e reto, permitindo a ressecção e anastomose por duplo grampeamento na linha pectínea, dispensando
a realização da mucosectomia.
Unitermos: eversão retal, retocolectomia, proctocolectomia, colite ulcerativa, polipose adenomatosa familiar, câncer retal.
INTRODUÇÃO
A cirurgia de ressecção retal exige do
cirurgião um conjunto de competências
(conhecimento anatômico e de técnica cirúrgica, habilidade manual
e treinamento adequado) para que os objetivos
traçados e os resultados obtidos com o ato cirúrgico
sejam iguais.A retocolectomia total (RCT) é o objetivo
do tratamento cirúrgico da retocolite ulcerativa (RCUI)
e da polipose adenomatosa familiar do cólon
(PAF), impondo ao cirurgião a escolha da cirurgia ideal,
sem descuidar de obter bons resultados funcionais.
Até a metade do século 20, a retirada de
toda mucosa coloretal significava a realização de
uma ileostomia definitiva para estes pacientes.O efeito
adverso da convivência com uma ileostomia
definitiva estimulou a pesquisa de métodos alternativos,
no sentido de tornar a opção cirúrgica mais
fisiológica para estes pacientes.Em 1947 Ravitch e Sabiston
1 publicam sua experiência com uma técnica
cirúrgica que batizaram de "ileostomia anal com preservação
do esfíncter", em que realizavam retocolectomia
com preservação da metade distal do reto que
sofria mucosectomia e um abaixamento endoanal do íleo,
para tratar pacientes com RCUI e PAF.Com o intuito
de diminuir o número excessivo de evacuações
advindas de uma anastomose íleo anal, Parks e Nicholls
2 publicam em 1978 uma modificação da
retocolectomia com mucosectomia em que associam uma bolsa
ileal para anastomose com o ânus. Com o advento da
sutura mecânica, a anastomose íleo anal por
duplo grampeamento, vem se tornando uma alternativa
à mucosectomia 3,4 .Assim, observamos que durante
o século 20, o tratamento cirúrgico da RCUI e
FAP, evoluiu e incorporou modificações, que permitiram
aos pacientes uma melhor qualidade de vida, mantendo
a premissa de retirar toda mucosa coloretal.
Quando o tratamento cirúrgico dos
pacientes com RCUI e PAF resulta em permanência de
mucosa coloretal, existe aumento do risco potencial de
recidiva inflamatória para os primeiros
5, de recidiva dos pólipos na PAF
6,7 e de neoplasia em ambos
8,9.
A cirurgia da neoplasia retal também apresentou modificações, associando técnicas
de ressecção retal com conservação
esfincteriana.Em algumas ocasiões, a pelve estreita e a dúvida quanto
à margem de ressecção colocam o cirurgião frente
à decisão entre uma cirurgia conservadora e a
amputação do reto.
Com o intuito de otimizar a ressecção
parcial ou completa do reto, apresentamos uma tática
cirúrgica que através da eversão intestinal, oferece ao
cirurgião uma visão direta da mucosa retal e do canal
anal.Esta técnica foi descrita há mais de 100 anos por
Hochenneg, apud Goligher, 10 para tratar tumores do terço
inferior do reto.Em 1984 Goligher 10 publicou sua
experiência pessoal com a eversão retal para tratar pacientes
com RCUI. Desde então vários autores
11,12,13,14,15,16,17,18,19 vêm publicando sua experiência com esta técnica,
ampliando suas indicações para tratar FAP e casos
selecionados de neoplasia do reto, com pequenas modificações
na técnica, explicadas pelo advento do uso
dos grampeadores mecânicos.
A ausência de publicações nacionais
referentes à técnica de eversão do reto nos estimulou a fazer
uma análise crítica do papel do procedimento no
tratamento da RCUI, PAF e neoplasia do reto, associada a um
relato da nossa experiência.
Metodologia
Entre janeiro de 2001 e fevereiro de 2003, seis pacientes foram submetidos a tratamento
cirúrgico utilizando a técnica de eversão retal. Cinco
pacientes eram do sexo masculino. A idade variou entre 21 e
70 anos. Os pacientes foram submetidos à anestesia
geral e colocados em posição de Loyd-Davies. Três
destes pacientes eram portadores de FAP e sofreram retocolectomia com anastomose ileoanal,
utilizando uma bolsa ileal em J. Um paciente era portador
de RCUI, operado anteriormente em regime de
urgência e realizada colectomia total e Hartmann.
Como mantinha doença ativa em coto retal, foi submetido
à ressecção completa do reto e anastomose ileoanal
após confecção de bolsa ileal em J. Dois pacientes
eram portadores de adenocarcinoma bem diferenciado
em terço inferior do reto, sendo realizada
retosigmoidectomia com anastomose coloretal baixa. As
anastomoses ileoanal e coloretal foram realizadas no
períneo, após eversão retal, utilizando sutura mecânica e
duplo grampeamento (TLC 75 mm ou TL 60mm e CDH 29 mm - Ethicon) em 05 pacientes. Em um
paciente portador de FAP foi realizada anastomose
ileoanal manual. Uma ileostomia de proteção foi feita em
todos os pacientes.
Descrição da técnica de eversão: o reto
foi mobilizado em suas faces anterior, posterior e
laterais, em direção ao canal anal, até altura dos elevadores
do ânus. Nos pacientes com coto retal sepultado como
foi o caso do portador de RCUI, procedemos então
à manobra de eversão. Nos outros casos em que o
cólon estava presente, uma secção do mesmo na
transição retosigmoide foi praticada, utilizando um
dispositivo de corte e sutura linear. A manobra de eversão
foi realizada utilizando o grampeador circular curvo
16 29 mm, introduzido pelo ânus até o segmento
seccionado; neste momento afasta-se a ogiva do corpo
do grampeador e com um fio de linho zero é feito um
nó, de maneira que o tecido entre neste espaço
(Figura-1). A pinça é tracionada suavemente em direção ao
ânus com a eversão do segmento intestinal e
visualização direta da linha pectínea (Figura-2). O dispositivo
de secção e sutura linear mecânica é aplicado à altura
da linha pectínea com ressecção da peça e introdução
do canal anal para seu local anatômico
(Figura-3). Introdução de dispositivo para sutura circular
mecânica de 29 mm através do ânus com anastomose ileoanal
e coloretal com duplo grampeamento (Figura-4).
Figura 1 | Figura 2 |
Figura 3 | Figura 4 |
Resultados
Dos pacientes operados, dois apresentaram obstrução intestinal no pós-operatório
necessitando reintervenção cirúrgica . Um paciente apresentou
sepse pélvica e fistula reto-vaginal com boa resposta
ao tratamento conservador.
Os pacientes foram submetidos à
reconstrução do transito após três meses, exceção para a
paciente do sexo feminino que permaneceu 06 meses
com ileostomia. O seguimento destes pacientes variou
entre 08 e 34 meses, com média de 12 meses. Os
pacientes referem 4 a 8 episódios de evacuação por dia.
A paciente do sexo feminino portadora de FAP
apresenta esporadicamente quadros de perda fecal leve à
noite. Os demais pacientes referem controle adequado
da eliminação de gases e fezes.
A histopatologia confirmou RCUI em um paciente, três casos de PAF e dois casos de
adenocarcinoma bem diferenciado, sendo um localizado no
reto e outro em sigmóide. Dos pacientes com PAF,
dois apresentavam no momento da cirurgia
adenocarcinoma, um deles localizado no reto e o outro
no sigmóide. No paciente do sexo masculino portador
de FAP e neoplasia retal, o anel de tecido do
grampeador foi submetido a histopatologia, sendo
identificado tecido escamoso.
Discussão
O pressuposto original da retocolectomia com anastomose íleo anal é de que toda
mucosa potencialmente doente, incluindo a zona de
transição anal (ATZ), deve ser removida para evitar
doença coloretal. O termo ATZ foi introduzido por Fenger
20, que a definiu como "zona interposta entre
mucosa coloretal contínua acima e epitélio escamoso
contínuo abaixo, independente do tipo de epitélio presente
nesta zona". A ATZ estende-se entre 4-5 mm acima da
linha pectínea 21 e acima desta região existe epitélio
colunar. Verificamos então que a ATZ possui pequena
extensão, e quando uma anastomose íleo anal mantém 2-3 cm
de mucosa acima da linha pectínea estamos retendo
um coto de epitélio colunar (colunar cuff)
22 com potencial para desenvolver doença.
Fica evidente que um ponto importante na discussão e análise dos resultados cirúrgicos
nos pacientes em que se deseja a retirada de toda
mucosa colo-retal, é a definição de canal anal e da sua
transição com o reto. O termo canal anal cirúrgico
20 compreende o segmento entre o nível do assoalho
pélvico proximalmente e o orifício anal distalmente. Já o
canal anal anatômico 20 tem sido usado para a
área compreendida entre a linha pectínea e o orifício
anal. Assim, quando o cirurgião se refere à anastomose
íleo anal utilizando a definição cirúrgica, o
paciente permanece com a zona de transição anal e um
coto retal de 1 a 2 cm.
Reconhecer a permanência de um segmento de epitélio colunar é conceito importante para
o desenvolvimento de estratégias de vigilância no
pós-operatório destes pacientes. Para tanto é
importante que o cirurgião solicite ao patologista a pesquisa
do epitélio na margem distal do intestino.
Naqueles pacientes submetidos a duplo grampeamento, o
anel de tecido correspondendo ao canal anal/reto deve
ser identificado quanto às suas margens e submetido
a exame histopatológico. Na casuística
apresentada, apenas em um caso o anel de tecido foi enviado
para exame histopatológico. Tratava-se de paciente
com FAP e neoplasia do reto e havia preocupação com
a margem de segurança. O exame
histopatológico identificou tecido escamoso, confirmando a
ressecção na linha pectínea.
A principal justificativa para uso da
eversão retal na retocolectomia total é permitir anastomose
na linha pectínea, retirando completamente a
mucosa coloretal e dispensando a mucosectomia. Esta
técnica aparece como opção, já que a retocolectomia
realizada via abdominal por duplo grampeamento
mantém usualmente um coto retal de 1-2 cm
23-25 e a realização de mucosectomia e anastomose ileoanal manual
não evitam a presença de ilhas de mucosa retal
26,27. Desta maneira os dois principais procedimentos
cirúrgicos utilizados para tratar RCUI e FAP não são capazes
de cumprir, pelo menos em todos os casos, o objetivo
a que se propõem.
A realização da anastomose na linha
pectínea envolve duas questões: os resultados funcionais e
o risco de neoplasia no segmento de epitélio
colunar retido. Enquanto alguns estudos relatam
melhores resultados funcionais quando é preservado
um segmento de mucosa anoretal,28,29 outros
não encontraram diferença entre estes e os pacientes
que sofreram mucosectomia 30-32. Quanto ao risco de
neoplasia, análise da incidência de displasia em
mucosa anoretal de pacientes que sofreram retocolectomia
com anastomose íleoanal 8 , mostrou que somente 2,5%
dos pacientes com RCUI possuíam displasia, enquanto
que os pacientes com polipose na sua maioria
apresentavam displasia, sendo que em mais de 20% a displasia
era severa. Desta maneira, nos pacientes com RCUI
com displasia e FAP, a retenção de mucosa coloretal
expõe a um risco maior de desenvolver neoplasia.
A identificação e relato na literatura de
casos de adenocarcinoma junto à anastomose íleo-anal
de pacientes com RCUI 33-39 e PAF
40-46 submetidos a retocolectomia total com duplo grampeamento
38,39,44,46 ou mucosectomia
33-35,37,40-42,45,47 nos levam a
considerar que, embora o risco de neoplasia seja pequeno,
esta complicação é real e faz-se necessário repensar
o tratamento cirúrgico visando otimizar a
técnica utilizada e obter resultados mais eficazes.
Nestes pacientes, a neoplasia surgiu em um coto retal
residual, de ilhas de mucosa retal remanescentes ou da
ATZ. Mais raramente, a neoplasia pode originar-se da
bolsa ileal 36,37,43 .
Do ponto de vista técnico a eversão
retal apresenta vantagens porque evita a ressecção às
cegas do reto, independe da característica da pelve
dos pacientes, permite a utilização de
grampeadores mecânicos, associando a segurança desejada
na definição da margem de ressecção com a facilidade
de utilização destes dispositivos. Como
vantagem secundária, a eversão retal possibilita a utilização
de grampeadores de menor custo (não há necessidade
de dispositivos articulados), sem comprometer o
resultado final. A eversão retal pode ser utilizada também
como manobra para facilitar a mucosectomia durante
a proctocolectomia 10.
As complicações apresentadas pelos
pacientes operados pela técnica da eversão na nossa
casuística, como a obstrução intestinal, sepse pélvica e fistula
entre a bolsa ileal e vagina, são comuns ao procedimento
de anastomose íleo anal, independente da técnica utilizada.
A eversão do reto em casos de neoplasia
está indicada naqueles pacientes com tumores que
permitam a eversão sem risco de ruptura intestinal,
oferecendo ao cirurgião uma visão direta da lesão e da sua
distância do canal anal, ajudando na decisão entre uma
cirurgia conservadora ou amputação do reto. Permite ainda
a utilização de grampeadores mecânicos para
ressecção e duplo grampeamento. Os dois pacientes
operados com adenocarcinoma do reto médio / inferior
foram submetidos a eversão com bastante facilidade,
mesmo com a excisão total do mesoreto, dando
oportunidade ao cirurgião de realizar uma ressecção segura quanto
à margem distal à lesão.
Uma questão levantada contra a eversão é
o possível trauma da musculatura esfincteriana
ocorrido durante o procedimento. A avaliação da função
intestinal de pacientes que sofreram eversão retal,
mostra resultados satisfatórios,
47,48,49,50,51 intermediários
entre a proctocolectomia com anastomose abdominal e
a proctocolectomia com mucosectomia, esta última
com resultados funcionais menos atraentes. Os
estudos sugerem que o principal fator responsável pela
piora da continência é o tempo em que o esfíncter
permanece sob ação dos afastadores
52. Com a eversão retal,
não há necessidade de afastador anal e o cirurgião
realiza em poucos minutos a ressecção do reto e
anastomose mecânica. Assim, a opção entre cumprir uma
proposta de tratamento cirúrgico e melhor resultado
funcional, antes restrita a duas técnicas, parece ter uma
terceira alternativa: um resultado cirúrgico eficaz com uma
boa qualidade funcional do intestino oferecido pela
técnica de eversão retal.
Conclusão
A utilização desta técnica em nosso
serviço nos permite concluir, apoiados nas
publicações existentes sobre a eversão do reto, que
este procedimento pode ser realizado de maneira
segura, suave e muito pouco traumática, desde que a
dissecção do reto atinja os elevadores do ânus. A visão
direta permite ao cirurgião um controle melhor sobre a
altura da ressecção do reto, mantendo as vantagens
de utilização da sutura mecânica (mesmo nos
pacientes com pelve estreita) e oferecendo bons resultados
quanto à função intestinal. Justifica-se portanto que o
cirurgião coloretal inclua a técnica de eversão retal no seu
arsenal de procedimentos cirúrgicos que envolvam
a ressecção do reto, pois, em determinados
momentos pode permitir e facilitar a ressecção completa do
reto e anastomose ileoanal ou a anastomose coloretal baixa.
SUMMARY: The rectal eversion technique is described and used for surgical treatment of ulcerative colitis
(UC) , familial
adenomatous polyposis of the colon (FAP) and in some selected cases of neoplasia of the medium and
lower rectum.
Six patients underwent the rectal eversion surgical treatment: one of
them with UC, three cases of FAP and two with
well-differentiated rectum adenocarcinoma. The patients had good post-operative evolution and
satisfactory functional results.
The author proposes the procedure as a way to improve
the total proctocolectomy with ileum-anal anastomosis, avoiding the increasing
risk of inflammation, polyps relapse and neoplasia in the patients when there is a
residue of colorectal mucosa. The
intestinal eversion provides a straight view of the rectum, making easy the resection and low colorectal anastomosis in patients
with
neoplasia. This procedure is technically accomplished in a gentle way and with little trauma if the resection is extended up the
anal
elevators muscle. The rectal eversion has advantages over the other techniques because
it gives the surgeon a straight view of the anal canal and rectum, allowing the resection and a
double stapled anastomosis at the pectinate line, avoiding the mucosectomy.
Key words: rectal eversion, proctocolectomy, ulcerative colitis, familial adenomatous polyposis, rectal cancer.
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Endereço para correspondência:
Emmanuel Conrado Sousa
Avenida Duque de Caxias 500, Centro
45.600-210 - Itabuna (BA) .
Trabalho realizado na Área de Conhecimento de Clínica Cirúrgica do Curso de Medicina, Universidade Estadual de Santa Cruz Ilhéus/Itabuna e Hospital Calixto Midlej Filho, Itabuna - Bahia.