HISTÓRIA DA COLOPROCTOLOGIA NA BAHIA
Como ocorreu em todas as regiões do
planeta, em diferentes épocas, também aqui as doenças
ano-retais foram "tratadas" por magia negra e feiticeiro
ou por curandeiros e charlatães, com chás,
folhagens, banhos de assento e emplastos, mesmo após a
chegada dos primeiros médicos, oriundos de Portugal.
Ainda hoje, ocasionalmente, ouvimos relatos do uso de
pimenta, de certas sementes junto ao corpo e banhos
de assento, referidos por doentes vindos do interior
do Estado.
Os primeiros trabalhos científicos
sobre proctologia que encontramos foram a tese escrita
pelo Dr. Alexandre Afonso de Carvalho, lente de
Anatomia descritiva, datado de 1874, intitulado "Das
fístulas pelveretais superiores (Eduardo de Sá
Oliveira, Memória Histórica da Faculdade de Medicina
na Bahia, p. 207, 1992); "Complemento da história
da retotomia interna publicada pelos estudiosos acadêmicos os Srs. Araujo e Cunha, em sua
coleção de observações", pelo Dr. J.A. de Freitas
(Gazeta Médica da Bahia, ano VII, nº 163 e 164, 15 e 31
de maio de 1874. Bahia). Outro trabalho
identificado, coincidentemente, foi escrito por Alexandre
Afonso de Carvalho, filho do anteriormente citado,
este professor substituto de Clínica
Otorrinolaringológica, "Em torno de um caso de corpo estranho
no reto"(Brasil Médico, 1919).
A proctologia apenas cuidava das
afeições orificiais e era exercida, em nosso meio, também
por cirurgiões gerais, que operavam os doentes
dos especialistas, sendo por esses ajudados. Os proctologistas eram pouco considerados pelos
colegas que os julgavam cientificamente limitados,
sendo frequentemente alvos de piadas e chacotas.
As intervenções cirúrgicas mais frequentes,
até a década de 1940, eram: drenagem de abcessos,
retirada de plicomas, abertura de trajetos fistulosos
com curetagem ou cauterização do leito e retirada
de "botões"hemorroidários como eram chamados.
O primeiro médico que exerceu a especialidade, em Salvador, foi o Dr. Fernando
Salazar. No Memorial da Faculdade de Medicina, foi encontrado o registro de formatura do Dr.
Fernando Salazar da Veiga Pessoa, em dezembro de 1908,
sobre o qual muitos fatos e anedotas são contados até hoje.
O Dr. Fernando Salazar da Veiga Pessoa
foi preparador de anatomia. Em 1924, o Prof.
Eduardo Diniz Gonçalves solicitou a demissão desse
professor à Congregação da Faculdade de Medicina visto
que ele "se licenciava no período letivo, ausentava-se
do Estado, e só voltava no período de férias, em
que reassumia o exercício. "(Dr. Gonçalo Muniz Sodré
de Aragão, Memória Histórica da Faculdade de
Medicina da Bahia. 1924).1 Hoje, muitos assim procedem e
nem licença solicitam...
Em 1927, formou-se o Dr. Lourival
Carvalho, outro proctologista "puro", com atividade em
Salvador, possuidor de grande e seleta clínica particular.
Em 31 de dezembro de 1936, foi criado o Serviço de Proctologia do Hospital Santa Izabel,
pelo Dr. Antônio Moacir da Silva Pereira, então
Provedor da Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
cujo atendimento foi iniciado no ano seguinte, sendo o
seu primeiro dirigente o Dr. Fernando Salazar da
Veiga Pessoa.2
Com o passar dos anos, surgiram outros profissionais que se firmaram, obtiveram
notoriedade e proporcionaram maiores progressos à
especialidade, pela adição de novas técnicas e condutas, dentre
os quais citamos os Doutores Edgard Valente,
Walter Gentile de Mello, Mário Matos, Nair Perolina
Guerra (primeira mulher a exercer a especialidade em
nosso Estado), Almiro Daltro, Eduardo Cerqueira
(também cirurgião geral). Fernando Marigliano, Clarival
do Prado Valadares (também patologista),
Grimaldo Andrade, Geraldo Milton da Silveira
(também cirurgião geral) e muitos outros.
Nos programas das "cadeiras" de
Clínica Propedêutica Cirúrgica, ocupada pelo
Professor Eduardo de Sá Oliveira e a de Clínica Cirúrgica
da Faculdade de Medicina da Bahia, posteriormente exercida pelo mesmo professor, encontramos
pontos dedicados à propedêutica proctológica e às
afecções do reto e do ânus, respectivamente, datados de 1942.
Em 1944, o Dr. Walter Gentile de Mello publicou artigo na Revista Médica da Bahia, no
qual divulgava a importância da especialidade, e
intitulou-se "Proctologista da Faculdade de Medicina da
Bahia". Entretanto, não encontramos subsídios que
pudessem comprovar essa assertiva. O assunto comporta
alguma consideração. Em 1944, a Faculdade de
Medicina atendia os paciente no Hospital
Sta Isabel, Santa Casa de Misericórdia, onde funcionavam as
"Cadeiras" clínicas. Como vimos, na década de 1940,
já funcionava o Serviço de Proctologia do
referido nosocômio. Na época em apreço, existia o
ambulatório Augusto Vianna, no Canela. É possível que uma
sala tivesse sido ultilizada com tal finalidade, hipótese
essa que carece de confirmação. Nada encontramos
sobre o assunto nos documentos existentes no Memorial
de Medicina, e a burocracia impediu qualquer averiguação nos arquivos da Superintendência
de Pessoal. Nessa época, o grupo de proctologistas
estava bastante motivado e, em 1945, seus
integrantes resolveram fundar a Sociedade de Proctologia
da Bahia. Para tanto, incubiram o Dr. Edgard Valente
de elaborar o anteprojeto dos estatutos e acordaram
que fosse ministrado um curso de alto nível científico,
com a participação de especialistas de outros Estados,
sobretudo do Sul. Da lista de convidados fazia parte
o Dr. Sylvio d' Ávila, do Rio de Janeiro.
Os desdobramentos dessas iniciativas resultaram, por sugestão do Dr. Sylvio d' Ávila,
na fundação da Sociedade Brasileira de Proctologia,
aqui em Salvador, em 30 de outubro de 1945, cujos
detalhes já foram por mim publicados na Revista Brasileira
de Colo-Proctologia (vol. 10, nº 3, julho/setembro
1990). Toda documentação referente ao assunto, originais
da época, foram-me entregues pelo Dr. Mário Matos
e passados ao Dr. Rosalvo José Ribeiro, durante
reunião de uma comissão criada para o estabelecimento da
data de fundação e para tomar medidas de preservação
da história da sociedade, composta pelos Drs.
Walter Ghese, Daher Cutait, Rosalvo José Ribeiro e
Geraldo Milton da Silveira. Em lugar da Sociedade
de Proctologia da Bahia, nasceu a Sociedade
Brasileira de Proctologia, fato esse muito significativo para
a proctologia baiana.
Em 1950, dois baianos foram admitidos na novel sociedade porquanto os participantes da
reunião de 30 de outubro de 1945 foram
considerados fundadores: os Doutores Clarival do Prado
Valadares e Geraldo Milton da Silveira, como titular e
associado, respectivamente. No ano seguinte, ambos além
de alguns fundadores, compareceram ao 1º
Congresso Brasileiro e 7º Reunião Anual no Rio de Janeiro.
Após estar presente a quase todos os Congressos
dessa Sociedade, desde então até os dias atuais, e
haver exercido quase todos os cargos e funções na SBCP,
o autor é o único sobrevivente atuante.
Em 1954, o Prof. Fernando Freire de
Carvalho Luz, cirurgião geral, publicou tese à Livre
Docência da Clínica Cirurgica sobre uma das mais
comuns afecções colônicas à época, o megacolon
chagásico. O número de técnicas cirúrgicas propostas e
mal sucedidas refletia o desconhecimento da
verdadeira fisiopatologia da doença. A tese, intitulada
"Contribuição à cirurgia do megacolon" transpunha os
conhecimentos fisiopatológicos da doença de
Hirschsprung, divulgados por Swenson e Hiatt, como base da nova
e eficiente técnica cirúrgica proposta.
Simultaneamente, o Professor Daher Cutait,
predominantemente proctologista, publicou tese com igual enfoque, em
São Paulo.
Em 1945, o Conselho Administrativo do Hospital das Clínicas, hoje Hospital
Universitário Professor Edgard Santos (HUPES).
aprovou requerimento com exposição de motivos,
encaminhado pelo então Prof. Adjunto Geraldo Milton
da Silveira, que demonstrou a necessidade de criação
do Serviço de Proctologia para atendimento à
demanda de todo o HEPES. O ambulatório especializado e
os instrumentos cirúrgicos ficaram ligados a 1ª
Clínica Cirúrgica e foram dirigidos pelo autor da
solicitação até 1981.
Esse serviço permitiu a realização de grande
número de trabalhos científicos publicados
e/ou apresentados no Brasil e no exterior, assim como
o despertar do interesse geral pela especialidade e
a formação de vários especialistas, projetando-os
no cenário nacional, dentre os quais mais se
sobressaíram os Drs. Henrique Roberto Krutman, Alfredo
Rogério Carneiro Lopes, Diógenes Junquilho Vinhaes,
Felinto Marques de Cerqueira Filho, José Luiz Coelho,
Jayme Vital Santos Souza, Vitor Lúcio de Oliveira Alves
e Sebastião A. Mesquita, por ordem cronológica.
Quando do período administrativo do
Dr. Romeu Marra à frente da SBP, em 1968, fomos por
ele solicitados a fundar a Sociedade de Proctologia
da Bahia e filiá-la à nacional, o que fizemos, sem
perda do vínculo com a Associação Baiana de Medicina.
Para tanto, além da "ala jovem", constituída por
Henrique Krutman, Rogério Lopes, Felinto Cerqueira,
Diógenes Vinhaes, Marionaldo Moradillo de Mello,
Eméria Dorotéia Resedá, Natércio Fernandes e
Grimaldo Andrade, conosco cerraram fileiras Mario Mattos,
Nair Guena, João Cunha, Eduardo Cerqueira,
Fernando Marigliano, Fernando Carvalho Luz, Almiro Daltro
e Lourival Carvalho.
Após ingentes esforços, conseguimos trazer
o XXI Congresso Brasileiro de Proctologia para a
Bahia, com o decisivo apoio de Daher Cutait e
Filipe Figliolini, de São Paulo, vale ressaltar que, a
despeito de fundada em Salvador, em 1945, somente vinte
anos depois do 1º congresso, em 1951, conseguimos
trazer para Salvador o primeiro conclave a ser realizado
no norte/nordeste, enquanto a Guanabara/Rio de
Janeiro sediou nove, São Paulo seis, Rio Grande do Sul e
Minas Gerais dois cada e Goiás um. Participaram
desse histórico Congresso, porquanto o único até hoje
em Salvador, desempenhando funções, Geraldo Milton
da Silveira, presidente e em cargos e comissões
diversas, os Drs. Henrique Krutman, Rogério Lopes,
Mário Matos, Eméria Resedá, Natércio Fernandes,
Diógenes Vinhaes, Carvalho Luz, Fernando
Marigliano, Grimaldo Andrade e Mariovaldo Moradillo.
Carecendo de entendimento das verdadeiras razões, a despeito
de todos os esforços pessoais, não conseguimos repetir
o feito em 1971. Não se há de argüir qualquer
preconceito ou reação norte/nordeste, porquanto o Ceará já
realizou dois ou três eventos e Pernambuco dois. Também
não se pode argüir baixo nível científico, porquanto
nesse, aspecto, estamos bem posicionados no
cenário nacional. Ainda, se assim não fosse, o caráter
nacional da entidade deveria mantê-la atenta, a fim de
desenvolver estímulos a incentivos regionais. Tudo
indica, salvo melhor juízo, que o personalismo e a
desunião entre nós, somados à grande e condenável parcela
de vaidade, sejam as verdadeiras causas de nunca
mais termos realizado congressos da SBP em Salvador.
Em 1978, foi fundada a Sociedade Mundial da Proctologia em Madrid, durante os
congressos mundiais de gastroenterologia e endoscopia
digestiva. Mais uma vez a Bahia se fez presente, signatários
que fomos da solicitação às Sociedades Mundiais
de Gastroenterologia e Endoscopia Digestiva de desmembramento da especialidade e havermos a
ata de fundação.
Só em 1986, quinze anos após o
importante evento aqui realizado, constatamos dois
fatos significativos para a proctologia na Bahia.
Referimo-nos à realização da 4ª Reunião Anual
Norte/Nordeste, presidida pelo Dr. Grimaldo Andrade e à criação
da Residência Médica em Coloproctologia no
Hospital Geral Roberto Santos, pelo Dr. Jayme Vital
Santos Souza. Esssa foi a primeira no Norte/Nordeste e
, também a primeira a ser reconhecida pelo MEC,
no Brasil.
Em 1990, com a dupla função de membro
da "Comissão para criação dos Cursos de Mestrados
e Doutorados em Cirurgia" e representante da
Faculdade de Medicina na Câmara de Ensino de
Pós-Graduação e Pesquisa da UFBA, criamos os referidos
cursos, juntamente com o Prof. Fernando Didier e
Álvaro Rabelo, com área atendendo à proctologia. Em
1996, o Prof. Vítor Lúcio de Oliveira Alves defendeu
tese de mestrado intitulada "Influência da pressão
intra luminal no extravasamento das anastomoses intestinais", aprovada com distinção. O
resumo, apresentado no Congresso da Regional Norte/Nordeste, foi premiado.
Em 2001, o Prof. José Luiz Coelho
requereu ao Departamento de Cirurgia da FAMED a criação
da disciplina de Coloproctologia. Aprovada que seja
essa iniciativa, que tem todo o nosso apoio e estimulo,
a especialidade atingirá significativo
desenvolvimento. Colocará a Bahia entre os Estados mais
progressistas no ensino da especialidade, porquanto completará
a sequência de ensino: graduação,
pós-graduação especializada e qualificação acadêmica.
1 Colaboração do Dr. Antônio Jesuíno dos Santos Netto
2 Colaboração do Dr. Paulo Segundo da Costa