ARTIGOS ORIGINAIS
LISIEUX EYER DE JESUS
JESUS LE. Calha Mucosa Perineal (Perineal Groove) - Variante Clínica de Malformação Anoretal. Rev bras Coloproct,
2004;24(4):308-310.
RESUMO: Objetivo: Determinar as apresentações clínicas e indicações terapêuticas na síndrome da calha perineal mucosa (SCPM) (perineal groove). Métodos: Estudo de 4 casos clínicos e revisão de literatura pertinente. Resultados: Quatro meninas entre 1 mês e 2 anos de idade portadoras de SCPM apresentaram-se com queixa de evacuação dolorosa e foram tratadas cirurgicamente pela ressecção da mucosa anômala e reconstrução da rafe mediana entre o ânus e o vestíbulo vaginal posterior, com bons resultados. Conclusão: A SCPM é uma forma de MFAR baixa que pode se apresentar como evacuação dolorosa, fissura anal e constipação secundária e quando necessário pode ser tratada mediante ressecção da mucosa distópica e reconstrução da linha média no períneo posterior.
Unitermos: Malformação ano-retal baixa, evacuação dolorosa, fissura anal anterior, calha perineal
INTRODUÇÃO
A SCPM é uma forma de malformação
ano-retal (MFAR) baixa, classificada entre as
formas incomuns de MFAR
("miscellaneous") pelo grupo internacional de
Melbourne1. Caracteriza-se clinicamente pela localização anatômica normal
de uretra, vagina e ânus, com uma "calha"
mucosa substituindo a cobertura cutânea normal na linha
média entre o vestíbulo vaginal posterior e a região
mediana anterior do ânus 2 (Figura-1). A expressão clínica
da doença não é bem determinada e muitos autores
a consideram apenas um dismorfismo perineal sem expressão clínica, embora sejam reconhecidos
sintomas de evacuação dolorosa, fissura anal,
constipação secundária, ectrópio anal, prurido e descarga
mucosa perineal persistentes.
Figura 1 - Síndrome da calha perineal mucosa (perineal groove). |
Apresentamos aqui 4 casos sintomáticos cirurgicamente tratados de SCPM, num período de
1 ano, discutindo as indicações terapêuticas e
resultados, com uma revisão da literatura pertinente.
O atendimento aos pacientes esteve de
acordo com as normas aceitas pelas Comissões de Ética
do Hospital Universitário Antônio Pedro e do
Hospital Municipal Jesus.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram analisados retrospectivamente os prontuários médicos de 4 meninas entre 1 mês e 2
anos de idade tratadas nos Hospitais Universitário
Antônio Pedro e Municipal Jesus num período de 1 ano
(julho 2002 a setembro 2003), apresentando SCPM
sintomática.
Foi feita uma busca da literatura
pertinente através das bases de dados MEDLINE, EMBASE
e LILACS, usando os índices LOW ANORECTAL MALFORMATION, PERINEAL
GROOVE, ANTERIOR ANAL FISSURE e VULVODYNIA.
RESULTADOS
Caso clínico (1): Criança do sexo
feminino, 1 mês de idade, com queixa clínica de
evacuação sempre dolorosa, sem história prévia sugestiva
de fissura anal. Tratamento inicial conservador
com orientação quanto a higiene perineal atraumática
e banhos de assento sem melhora após 5 meses
de observação. Cirurgia aos 6 meses de idade
(ressecção da calha mucosa anômala e reconstrução da
linha média perineal), paciente assintomática no
pós-operatório.
Caso clínico (2): Criança do sexo feminino,
2 anos de idade, com queixa clínica de
evacuação dolorosa e dor perineal eventual sem história
prévia sugestiva de fissura anal. Anomalia perineal
percebida pela mãe desde o nascimento. Cirurgia aos 2 anos
8 meses de idade (ressecção da calha mucosa anômala
e reconstrução da linha média perineal),
paciente assintomática no pós-operatório.
Caso clínico (3): Criança do sexo feminino,
2 anos de idade, com queixa clínica de
evacuação dolorosa sem história prévia sugestiva de fissura
anal e dor perineal. Cirurgia aos 2 anos e 7 meses de
idade (ressecção da calha mucosa anômala e
reconstrução da linha média perineal), paciente assintomática no
pós-operatório.
Caso clínico (4): Criança do sexo
feminino, 1 ano de idade, queixa clínica de extrusão de
mucosa anal anterior, inadequação estética de
períneo, dificuldades para a higienização local pela mãe
e dificuldade para evacuar, com evacuação
dolorosa freqüente. Cirurgia após 6 meses de
observação (ressecção da calha mucosa anômala e
reconstrução da linha média perineal), paciente assintomática
no pós-operatório.
DISCUSSÃO
A SCPM é denominada em literatura
anglo-saxônica "perineal
groove". Em face de não haver
até o momento, em nosso conhecimento,
terminologia determinada na língua portuguesa,
propusemos denominá-la neste trabalho síndrome da calha
perineal mucosa (SCPM), um termo descritivo.
Trata-se de uma forma baixa de MFAR
descrita desde meados do século 20, inclusa entre as
formas "várias" de malformação ano-retal baixa, segundo
a classificação de Melbourne
1. A SCPM é exclusiva do sexo feminino, apresentando topografia normal
de uretra, vagina e ânus com a persistência de uma
calha mediana de tecido mucoso com profundidade e extensão lateral variáveis, unindo o fórnix
vaginal posterior à linha média anterior do ânus,
em continuidade com a mucosa anal interna na região
da linha denteada. Não há problemas referidos
com relação à continência, mas o esfíncter anal externo
tem a forma de "U", bifurcando-se internamente
em contorno correspondente à calha mucosa
2.
A doença é raramente citada e só
pudemos encontrar, apesar de busca exaustiva na
literatura pertinente nos últimos 40 anos, poucas
referências recentes3-4, nenhuma delas em língua
portuguesa, especialmente no que concerne à expressão clínica
e conduta. A doença não é nem mesmo citada nos
livros didáticos da especialidade ou de semiologia pediátrica.
O trauma local causado pela evacuação é
um elemento fundamental na formação das fissuras
anais em geral, com força de ruptura máxima na linha
média anterior e posterior. Em pacientes normais a linha
média anterior do ânus é constituída de pele, com
resistência mecânica substancialmente maior que a mucosa
que encontramos nos casos de SCPM, predispondo ao trauma por estiramento e à ruptura tecidual,
que corresponde clinicamente às queixas de
evacuação dolorosa encontradas em nossos pacientes.
Desta forma, evacuação dolorosa, fissura anal
anterior recorrente e constipação secundária são as
manifestações clínicas mais constantes, porém ectrópio
e/ou extrusão de prega mucosa anal anterior,
estética perineal alterada, prurido genital e "corrimento",
estes últimos correspondentes à secreção mucóide a
partir do epitélio mucoso anormal, são problemas possíveis.
A literatura clássica 2 avalia não ser
necessário tratamento, uma vez que ocorreria em todos os
casos uma epitelização secundária da calha mucosa com
cura espontânea. Esta resolução espontânea não ocorreu
em nossos pacientes durante o período de
observação, embora supostamente pudesse ocorrer em um
período de observação mais longo. Optamos pelo
tratamento cirúrgico, considerando a sintomatologia
clínica relevante e persistente após um período > 6 meses,
em ausência de constipação intestinal e a possibilidade
de cura, usando procedimento cirúrgico de pequena
monta e baixo risco em sistema ambulatorial. Não
podemos registrar a proporção de casos assintomáticos
da doença, uma vez que só foram referenciados à
avaliação cirúrgica os pacientes sintomáticos. O único
registro de incidência que pudemos obter em literatura
recente 5 descreve 5% das MFAR no sexo feminino (16%
das formas classificadas como "miscelânea" em
meninas) como SCMP. Extrapolando, a partir dos
dados registrados para outras formas de
malformação anorretal baixa em meninas em que > 10% dos
casos de MFAR têm diagnóstico relativamente tardio
6, podemos supor que muitos casos de SCPM não
sejam diagnosticados precisamente, persistam sem seguimento clínico correspondente ou sejam
tratados sintomaticamente sem diagnóstico específico.
Uma preocupação que não pode ser
esclarecida no momento é quanto à possibilidade de
casos oligossintomáticos ou assintomáticos na
infância, tratados conservadoramente, poderem se apresentar
na idade adulta com quadros de vulvodinia/
dispareunia secundários à possível fragilidade do períneo
posterior ao trauma do intercurso sexual. Não encontramos
dados na literatura pertinente a respeito de uma possível
inter-relação entre a SCPM e quadros de dispareunia,
porém seriam necessários estudos prospectivos de
observação para determinar se estas pacientes apresentam
uma maior incidência destas condições, mesmo em
casos em que tenha havido a epitelização subseqüente
do tecido anômalo.
O tratamento cirúrgico que propomos,
apenas para pacientes sintomáticas em que uma tentativa
de tratamento conservador com higiene perineal cuidadosa, emolientes fecais e banhos de assento
seja ineficaz, é a ressecção simples do epitélio
anômalo desde a fúrcula vaginal posterior até o limite
anterior da linha denteada no ânus, com reconstrução
posterior imediata da linha média usando fio absorvível,
em regime ambulatorial. Em nossa experiência
não ocorreram casos de deiscência da sutura ou
infecção da ferida operatória, apesar desta complicação
ser citada como obstáculo teórico ao tratamento cirúrgico.
SUMMARY: Objectives: To determine the clinical presentations and therapeutic indications to the perineal groove syndrome. Methods: Revision of 4 clinical cases and literature review. Results: Four girls (1 month to 2 years-old) presented with symptomatic perineal groove, presenting as pain to defecate. They were surgically treated by resecting the anomalous mucosa and reconstructing the perineal median raphe between the posterior vaginal fornix and the anus with good results.Conclusion: Perineal groove is a low anorectal malformation that may present as painful defecation, anal fissure and secondary constipation, and, when symptomatic, may be treated by resecting the anomalous mucosa and reconstructing the posterior median raphe.
Key words: Low anorectal malformation, painful defecation, anterior anal fissure, perineal groove
Referências Biliográficas
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H, Saleem, M. The perineal groove and canal in males and
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JJ; Webber, EM. Presentation of low anorectal
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Pediatrics 2000, 105(5):e68.
Endereço para correspondência:
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Trabalho realizado no Hospital Municipal Jesus e Hospital Municipal Antônio Pedro, Rio de Janeiro - RJ.
Recebido em 12/08/2004
Aceito para publicação em 13/01/2005