RELATOS DE CASOS
CARLOS ALBERTO FONTES DE SOUZA
DENISE GONÇALVES PRIOLLI - ASBCP
CARLOS AUGUSTO REAL MARTINEZ - TSBCP
CLÁUDIO LUCIANO PENNA FERNANDES FILHO
RONALDO NONOSE - FSBCP
ADRIANA VALIM
RESUMO: Alterações no desenvolvimento da musculatura do intestino delgado permanecem com etiologia indefinida após
seis décadas da descrição inicial. Devido ao pequeno número de casos publicados, pouco se sabe quanto a etiopatogenia da
enfermidade que se apresenta, em neonatos, como perfuração ou obstrução intestinal. O presente relato descreve recém-nascido com
abdome agudo obstrutivo conseqüente a agenesia segmentar da camada muscular própria do intestino delgado. Relato do Caso:
Neonato masculino de termo, nascido de parto cesariano, indicado por doença hipertensiva específica da gestação, apresentou sinais
de sofrimento fetal crônico ao nascimento. Evoluiu com vômitos, distensão abdominal generalizada e no terceiro dia, pela
acentuada deterioração clínica, foi aventada hipótese de enterocolite necrotizante. Apesar da terapêutica instituída, apresentou piora
da distensão abdominal constatando-se no toque retal presença de muco e sangue. Diante do quadro optou-se pela
exploração cirúrgica que encontrou torção do íleo terminal, a cerca de 10 cm da válvula ileocecal. Constatou-se neste local ausência
do mesentério e segmento de 20 cm do intestino delgado necrótico a partir da obstrução. Realizou-se enterectomia
com enteroanastomose primária. O exame anátomo-patológico demonstrou segmento de intestino delgado com hipoplasia da
camada muscular circular interna. Notava-se ainda intenso edema da submucosa, congestão de vasos sangüíneos e áreas de agenesia
da camada muscular circular interna do órgão, com preservação da muscular da mucosa e da camada muscular longitudinal externa.
Após a intervenção cirúrgica evoluiu satisfatoriamente, encontrando-se bem há seis anos com desenvolvimento
pondero-estatural normal.
Unitermos: Intestino delgado/ anormalidades, Obstrução intestinal, Recém-Nascido.
Introdução
As alterações no desenvolvimento
da musculatura do intestino delgado permanecem com etiologia indefinida mesmo após seis décadas de
sua descrição inicial por Herbut em
19431. Devido ao pequeno número de casos publicados (32), pouco
se pode definir quanto à etiopatogenia da
enfermidade, sabendo-se que se apresenta, em neonatos,
tipicamente como perfuração ou obstrução intestinal, com ou
sem intussuscepção.
O objetivo do presente relato é descrever
um caso de agenesia segmentar da camada muscular própria do intestino delgado de neonato, confirmada
por estudo histopatológico, que provocou quadro de
abdome agudo obstrutivo, tratado com sucesso pela
ressecção segmentar do intestino delgado afetado.
Pretende-se ainda discutir aspectos controversos com relação
à etiopatogenia desta rara enfermidade.
RELATO DE CASO
Recém-nascido masculino de termo
adequado, índice de Capurro compatível com 38 semanas,
nascido de parto cesariano, devido a Doença
Hipertensiva Específica da Gestação (DHEG). A
parturiente apresentava antecedentes de hipertensão arterial
com insuficiência cardíaca congestiva compensada
durante a gravidez estando atualmente em uso de
alfa-metil-dopa e nifedipina. O recém-nascido apresentou
ao nascimento sinais de sofrimento fetal crônico com
baixo peso (1870g), APGAR de primeiro minuto de
sete. Evoluiu a partir do décimo minuto de vida com
gemência, taquipnéia e cianose de extremidades. Depois
de introduzida dieta, após cinco horas do
nascimento, apresentou a primeira eliminação de mecônio. Após
16 horas apresentou vômitos de coloração esverdeada
e distensão abdominal generalizada. Ao terceiro dia
de vida devido à acentuada piora do estado geral,
com importante diminuição dos ruídos hidroaéreos
foi aventada hipótese de enterocolite necrotizante.
Os exames laboratoriais revelavam leucocitose com
desvio à esquerda e, à radiografia simples do abdome,
distensão do estômago e alças de intestino delgado,
sendo instituída nutrição parenteral central e
antibioticoterapia. Apesar da terapêutica introduzida evoluiu com
piora da distensão abdominal e toque retal
mostrando presença de material mucóide com laivos de
sangue no dedo da luva. Em virtude do agravamento
das condições clínicas optou-se pela exploração cirúrgica.
À inspeção da cavidade abdominal
notava-se ascite de aspecto citrino em moderada quantidade
e torção do íleo terminal a cerca de 10 cm da
válvula ileocecal. Neste local verificava-se a ausência
do mesentério da alça, com segmento de 20 cm do
intestino delgado de aspecto escurecido, edemaciado a
partir da obstrução. Foi realizada enterectomia
com enteroanastomose primária em plano
único extramucoso com fio inabsorvível monofilamentar.
O exame anátomo-patológico
mostrou segmento de intestino delgado com cerca de 20 cm
de extensão, desprovido de mesentério na sua
porção central em cerca de cinco centímetros. O
exame demonstrou a existência de focos de hipoplasia
da camada muscular circular interna, com os plexos mioentéricos e epitélio de revestimento da
mucosa preservados, bem como ausência de dilatações
ou perfurações. O exame mostrou ainda intenso
edema da submucosa, congestão de vasos sangüíneos e
áreas de agenesia e hipoplasia acentuada da
camada muscular circular interna do órgão, com
preservação da camada muscular da mucosa, plexos
mioentéricos e muscular longitudinal externa. (Figura-1). Não
foram observadas áreas de fibrose ou necrose tecidual
no segmento intestinal extirpado.
Figura 1 - A - Área com atresia e hipoplasia da camada muscular intestinal (seta) (Hematoxilina-eosina 10x). B - Segmento de intestino delgado com agenesia da camada muscular circular. (Tricromio de Masson 10x) |
No terceiro dia de pós-operatório foi
introduzida dieta oral com eliminação de fezes a partir do
dia seguinte. A criança recebeu alta hospitalar no 8º
pós-operatório e atualmente encontra-se bem, seis anos
após a intervenção, com desenvolvimento
pondero-estatural e neuro-psicomotor adequados.
DISCUSSÃO
O espectro clínico e patológico
das anormalidades da musculatura da parede
intestinal associadas à obstrução intestinal inclui várias
condições pouco estudadas. Em neonatos, a alteração
da musculatura intestinal é condição rara. Foi
descrita inicialmente por Herbut e col., em
19431 e mais recentemente por Emanuel e col.,
19672 e Steiner e col.,19693. A moléstia pode apresentar-se
clinicamente sob diversas síndromes. Em neonatos o abdome
agudo obstrutivo ou perfurativo conseqüente a
atresia, intussuscepção ou volvo são as formas clínicas
mais freqüentemente observadas. Há que se
considerar diversas condições clínicas, específicas ou não do
trato intestinal que podem associar-se às
anormalidades congênitas da musculatura, e manifestar-se
como obstrução intestinal progressiva.
As anormalidades da musculatura intestinal
são classificadas como primária, incluindo a forma
familial e a forma esporádica, e secundária quando, apesar
do envolvimento do trato gastrintestinal, ela
ocorre conseqüente a doenças sistêmicas tais
como dermatomiosite, fibrose muscular ou de outras
miopatias viscerais4. A forma secundária é mais freqüente
no adulto, enquanto a primária geralmente é
identificada nos recém nascidos.
A revisão dos casos publicados até a
presente data mostra que a doença pode atingir vários
segmentos do trato digestório, tendo sido descritas no
estômago1, no intestino
delgado4 e no cólon5.
A obstrução intestinal, como no doente
do presente relato, ou a perfuração, em neonatos, são
as formas de apresentações clínicas mais freqüentes
da afecção, embora já tenha sido descrita como
achado incidental durante cirurgia para correção de
hérnia inguinal encarcerada.
O diagnóstico da afecção é confirmado
por meio de cortes histológicos que demonstram
mucosa, submucosa, muscularis mucosae e serosa
intactas, com atrofia ou agenesia da musculatura própria do
órgão acometido. Na maioria das vezes a ausência
da musculatura intestinal é segmentar. Embora no
caso relatado estas alterações típicas tivessem
sido encontradas, verificaram-se, à
microscopia convencional, áreas com intensa congestão vascular,
o que chamou a atenção para a possibilidade de
uma enfermidade adquirida.
Na forma congênita da doença, a
etiopatogenia ainda permanece controversa. Alguns autores
sugerem origem genética, porém esta possibilidade não foi
aceita por muitos investigadores, devido a carência de
história familiar condizente, sendo todos os casos
descritos esporádicos4-8.
Outras possibilidades etiológicas
congênitas estariam baseadas na falha de embriogênese,
na reabsorção excessiva da camada muscular durante
a regressão do ducto onfalomesentérico ou na
falência no processo de regressão dos múltiplos
divertículos existentes no delgado dos
embriões8,9. Embriões de
sete a 40 mm possuem múltiplos divertículos,
principalmente no intestino delgado terminal, que são
posteriormente reabsorvidos durante o desenvolvimento. A partir
de então o mesênquima local se condensa para produzir
a camada muscular do segmento. Falhas neste
processo levariam a ausência segmentar da camada
muscular. Esta última teoria corrobora os raros casos de
alterações associadas, como os descritos por Miyagawa
e col.,198510, com a presença de tecidos gástrico
e esofágico ectópicos em porções dilatadas do jejuno,
e por Fu e col.,199811, em que houve agenesia das
vias biliares, sugerindo que o defeito muscular intestinal
é secundário e não conseqüente à falha no
seu desenvolvimento.
Autores como Widgren e Cox12, Huang e
col13, Morikawa e col.14, De
Villiers15, propõem uma origem adquirida para a enfermidade, acreditando que
a alteração da musculatura intestinal seria induzida
pelo déficit de fluxo sangüíneo, mais do que
propriamente por malformação do embrião. Esta teoria
encontra-se apoiada nos achados histológicos
habitualmente descritos: presença de plexos mioentéricos nas
regiões de perda muscular, já que são mais resistentes
à isquemia do que o músculo liso; presença de
mucosa intacta ou ligeiramente atrofiada, uma vez que
esta camada tem maior capacidade de regeneração que
o músculo, tornando-se este ausente, completa
ou parcialmente; e, finalmente, a presença da
mucosa completamente regenerada. A necrose isquêmica
das fibras remanescentes, fibrose, calcificação,
processo inflamatório crônico com presença de
macrófagos indicam destruição da camada muscular devido
à isquemia e ou infarto16.
A necrose recente de fibras musculares remanescentes encontradas em vários casos
sugere uma progressão de necrose para ausência
da musculatura. Isto explicaria a associação
freqüente entre a hipoplasia da camada muscular e a
presença do volvo, como ocorrido no recém-nascido do
presente relato. A intussuscepção e alterações da
rotação intestinal, também podem ocorrer, dificultando
ainda mais a irrigação sangüínea arterial bem como
a drenagem venosa.
A interrupção do suprimento sangüíneo para
a alça intestinal do feto, denomina-se acidente
vascular fetal. A alça móvel pode ficar torcida,
interrompendo o suprimento sangüíneo e levando a necrose
do segmento envolvido. Este segmento se torna mais
tarde um cordão fibroso que conecta as
extremidades normais do intestino.
Barnard em 195617 produziu
experimentalmente em fetos de cães, malformações
semelhantes às encontradas nos casos de atresia intestinal,
através de ligadura de vasos sangüíneos que supriam a alça
de intestino. Após seu experimento, De
Villiers15 estudou em cães a atresia e a estenose intestinal de cólon e
do intestino delgado por meio da interrupção do
fluxo sanguíneo, demonstrando que a isquemia pode ser
a causa da agangliose intestinal, resultado das
alterações severas da parede intestinal que levariam, em
casos extremos, a estenose intestinal segmentar.
No neonato do presente relato, embora
não houvesse indicações de processo inflamatório na
peça analisada, bem como fibrose, existiam indícios
de sofrimento fetal crônico pelas condições maternas
de hipertensão pré-natal, que culminaram com a DHEG,
a qual poderia incrementar a deficiência de
fluxo sanguíneo fetal. Isso ficou evidenciado, ao
nascimento, pelo baixo peso do concepto, APGAR reduzido e,
à cirurgia, pela presença da torção do íleo terminal.
Moore e col.18 acreditam que a maior
parte das atresias jejunoileais é provavelmente causada
por infarto do intestino fetal, decorrente da diminuição
de seu suprimento sangüíneo na décima semana,
quando as alças estão retornando à cavidade abdominal.
Infelizmente, no doente do presente relato,
não foi possível recuperar a placenta materna para
análise histopatológica, não se conseguindo, portanto,
confirmar a deficiência crônica do fluxo sanguíneo
placentário, para confirmar tão atraente hipótese.
Atenção especial deve ser dada quanto
à presença de outras malformações associadas
quando da indicação cirúrgica no tratamento desta
afecção. Quando a terapêutica, baseada na ressecção
completa da lesão, é instalada prontamente, os
doentes geralmente apresentam bom prognóstico, assim
como no presente relato, em que a criança encontra-se
viva e saudável seis anos após a cirurgia.
SUMMARY: Six decades since the initial description of alterations in the development of the small intestine musculature, the etiology of such alterations remains undefined. Because of the small number of published cases, little is known about the etiopathogenesis of illnesses that present as intestinal perforation or obstruction among newborns. The present report describes a newborn with an acute abdominal obstruction consequent to segmental agenesis of the muscle layer of the small intestine. Case Report: The patient was a full-term male neonate, born by cesarean section that was indicated because of gestation-specific hypertensive disease. The infant presented signs of chronic fetal suffering at birth and progressed with vomiting and generalized abdominal distension. On the third day, because of the severe clinical deterioration, the diagnostic hypothesis of necrotizing enterocolitis was put forward. Despite the instituted therapy, the infant presented worsening of the abdominal distension and the presence of mucus and blood was observed upon rectal examination. In view of this clinical state, surgical exploration was undertaken. It was found torsion of the terminal ileum about 10 cm from the ileocecal valve. At this location, it was seen that the mesentery was absent and that there was a 20-cm segment of necrotic small intestine starting from the obstruction. Enterectomy with a primary enteroanastomosis was performed. The anatomopathological examination showed that this segment of the small intestine presented hypoplasia of the internal circular muscle layer. Severe submucosal edema, blood vessel congestion and areas of agenesis of the internal circular muscle layer of this organ were also seen, with preservation of the musculature of the mucosa and external longitudinal muscle layer. After this surgical intervention the infant progressed satisfactorily. Six years on he continues to be in good health, with normal height-weight development.
Key words: Intestine, Small/ abnormalities, Intestinal obstruction, Newborn.
Endereço para correspondência:
REFERÊNCIAS
BILIOGRÁFICAS
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CARLOS AUGUSTO REAL MARTINEZ
Rua Rui Barbosa, 255 apto. 32.
09.190-370 – Santo André (SP)
E-mail: caomartinez@uol.com.br
Trabalho realizado pelas Disciplinas de Anatomia Patológica e Cirurgia Geral do Curso de Medicina da Universidade São Francisco, Bragança Paulista
Recebido em 06/08/2004
Aceito para publicação em 19/11/2004