RELATOS DE CASOS


AGENESIA SEGMENTAR DA CAMADA MUSCULAR PRÓPRIA DO INTESTINO DELGADO COMO CAUSA DE ABDOME AGUDO OBSTRUTIVO EM RECÉM-NASCIDO: RELATO DE CASO

CARLOS ALBERTO FONTES DE SOUZA
DENISE GONÇALVES PRIOLLI - ASBCP
CARLOS AUGUSTO REAL MARTINEZ - TSBCP
CLÁUDIO LUCIANO PENNA FERNANDES FILHO
RONALDO NONOSE - FSBCP
ADRIANA VALIM


SOUZA CAF; PRIOLLI DG; MARTINEZ CAR; FERNANDES FILHO CLP; NONOSE R; VALIM A. Agenesia segmentar da camada muscular própria do intestino delgado como causa de abdome agudo obstrutivo em recém-nascido: relato de caso. Rev bras Coloproct, 2005;25(1):67-71.

RESUMO: Alterações no desenvolvimento da musculatura do intestino delgado permanecem com etiologia indefinida após seis décadas da descrição inicial. Devido ao pequeno número de casos publicados, pouco se sabe quanto a etiopatogenia da enfermidade que se apresenta, em neonatos, como perfuração ou obstrução intestinal. O presente relato descreve recém-nascido com abdome agudo obstrutivo conseqüente a agenesia segmentar da camada muscular própria do intestino delgado. Relato do Caso: Neonato masculino de termo, nascido de parto cesariano, indicado por doença hipertensiva específica da gestação, apresentou sinais de sofrimento fetal crônico ao nascimento. Evoluiu com vômitos, distensão abdominal generalizada e no terceiro dia, pela acentuada deterioração clínica, foi aventada hipótese de enterocolite necrotizante. Apesar da terapêutica instituída, apresentou piora da distensão abdominal constatando-se no toque retal presença de muco e sangue. Diante do quadro optou-se pela exploração cirúrgica que encontrou torção do íleo terminal, a cerca de 10 cm da válvula ileocecal. Constatou-se neste local ausência do mesentério e segmento de 20 cm do intestino delgado necrótico a partir da obstrução. Realizou-se enterectomia com enteroanastomose primária. O exame anátomo-patológico demonstrou segmento de intestino delgado com hipoplasia da camada muscular circular interna. Notava-se ainda intenso edema da submucosa, congestão de vasos sangüíneos e áreas de agenesia da camada muscular circular interna do órgão, com preservação da muscular da mucosa e da camada muscular longitudinal externa.
    Após a intervenção cirúrgica evoluiu satisfatoriamente, encontrando-se bem há seis anos com desenvolvimento pondero-estatural normal.

Unitermos: Intestino delgado/ anormalidades, Obstrução intestinal, Recém-Nascido.

Introdução
As alterações no desenvolvimento da musculatura do intestino delgado permanecem com etiologia indefinida mesmo após seis décadas de sua descrição inicial por Herbut em 19431. Devido ao pequeno número de casos publicados (32), pouco se pode definir quanto à etiopatogenia da enfermidade, sabendo-se que se apresenta, em neonatos, tipicamente como perfuração ou obstrução intestinal, com ou sem intussuscepção.
    O objetivo do presente relato é descrever um caso de agenesia segmentar da camada muscular própria do intestino delgado de neonato, confirmada por estudo histopatológico, que provocou quadro de abdome agudo obstrutivo, tratado com sucesso pela ressecção segmentar do intestino delgado afetado. Pretende-se ainda discutir aspectos controversos com relação à etiopatogenia desta rara enfermidade.

RELATO DE CASO
Recém-nascido masculino de termo adequado, índice de Capurro compatível com 38 semanas, nascido de parto cesariano, devido a Doença Hipertensiva Específica da Gestação (DHEG). A parturiente apresentava antecedentes de hipertensão arterial com insuficiência cardíaca congestiva compensada durante a gravidez estando atualmente em uso de alfa-metil-dopa e nifedipina. O recém-nascido apresentou ao nascimento sinais de sofrimento fetal crônico com baixo peso (1870g), APGAR de primeiro minuto de sete. Evoluiu a partir do décimo minuto de vida com gemência, taquipnéia e cianose de extremidades. Depois de introduzida dieta, após cinco horas do nascimento, apresentou a primeira eliminação de mecônio. Após 16 horas apresentou vômitos de coloração esverdeada e distensão abdominal generalizada. Ao terceiro dia de vida devido à acentuada piora do estado geral, com importante diminuição dos ruídos hidroaéreos foi aventada hipótese de enterocolite necrotizante. Os exames laboratoriais revelavam leucocitose com desvio à esquerda e, à radiografia simples do abdome, distensão do estômago e alças de intestino delgado, sendo instituída nutrição parenteral central e antibioticoterapia. Apesar da terapêutica introduzida evoluiu com piora da distensão abdominal e toque retal mostrando presença de material mucóide com laivos de sangue no dedo da luva. Em virtude do agravamento das condições clínicas optou-se pela exploração cirúrgica.
    À inspeção da cavidade abdominal notava-se ascite de aspecto citrino em moderada quantidade e torção do íleo terminal a cerca de 10 cm da válvula ileocecal. Neste local verificava-se a ausência do mesentério da alça, com segmento de 20 cm do intestino delgado de aspecto escurecido, edemaciado a partir da obstrução. Foi realizada enterectomia com enteroanastomose primária em plano único extramucoso com fio inabsorvível monofilamentar.
    O exame anátomo-patológico mostrou segmento de intestino delgado com cerca de 20 cm de extensão, desprovido de mesentério na sua porção central em cerca de cinco centímetros. O exame demonstrou a existência de focos de hipoplasia da camada muscular circular interna, com os plexos mioentéricos e epitélio de revestimento da mucosa preservados, bem como ausência de dilatações ou perfurações. O exame mostrou ainda intenso edema da submucosa, congestão de vasos sangüíneos e áreas de agenesia e hipoplasia acentuada da camada muscular circular interna do órgão, com preservação da camada muscular da mucosa, plexos mioentéricos e muscular longitudinal externa. (Figura-1). Não foram observadas áreas de fibrose ou necrose tecidual no segmento intestinal extirpado.

 

Figura 1 - A - Área com atresia e hipoplasia da camada muscular intestinal (seta) (Hematoxilina-eosina 10x). B - Segmento de intestino delgado com agenesia da camada muscular circular. (Tricromio de Masson 10x)



    No terceiro dia de pós-operatório foi introduzida dieta oral com eliminação de fezes a partir do dia seguinte. A criança recebeu alta hospitalar no 8º pós-operatório e atualmente encontra-se bem, seis anos após a intervenção, com desenvolvimento pondero-estatural e neuro-psicomotor adequados.

DISCUSSÃO
O espectro clínico e patológico das anormalidades da musculatura da parede intestinal associadas à obstrução intestinal inclui várias condições pouco estudadas. Em neonatos, a alteração da musculatura intestinal é condição rara. Foi descrita inicialmente por Herbut e col., em 19431 e mais recentemente por Emanuel e col., 19672 e Steiner e col.,19693. A moléstia pode apresentar-se clinicamente sob diversas síndromes. Em neonatos o abdome agudo obstrutivo ou perfurativo conseqüente a atresia, intussuscepção ou volvo são as formas clínicas mais freqüentemente observadas. Há que se considerar diversas condições clínicas, específicas ou não do trato intestinal que podem associar-se às anormalidades congênitas da musculatura, e manifestar-se como obstrução intestinal progressiva.
    As anormalidades da musculatura intestinal são classificadas como primária, incluindo a forma familial e a forma esporádica, e secundária quando, apesar do envolvimento do trato gastrintestinal, ela ocorre conseqüente a doenças sistêmicas tais como dermatomiosite, fibrose muscular ou de outras miopatias viscerais4. A forma secundária é mais freqüente no adulto, enquanto a primária geralmente é identificada nos recém nascidos.
    A revisão dos casos publicados até a presente data mostra que a doença pode atingir vários segmentos do trato digestório, tendo sido descritas no estômago1, no intestino delgado4 e no cólon5.
    A obstrução intestinal, como no doente do presente relato, ou a perfuração, em neonatos, são as formas de apresentações clínicas mais freqüentes da afecção, embora já tenha sido descrita como achado incidental durante cirurgia para correção de hérnia inguinal encarcerada.
    O diagnóstico da afecção é confirmado por meio de cortes histológicos que demonstram mucosa, submucosa, muscularis mucosae e serosa intactas, com atrofia ou agenesia da musculatura própria do órgão acometido. Na maioria das vezes a ausência da musculatura intestinal é segmentar. Embora no caso relatado estas alterações típicas tivessem sido encontradas, verificaram-se, à microscopia convencional, áreas com intensa congestão vascular, o que chamou a atenção para a possibilidade de uma enfermidade adquirida.
    Na forma congênita da doença, a etiopatogenia ainda permanece controversa. Alguns autores sugerem origem genética, porém esta possibilidade não foi aceita por muitos investigadores, devido a carência de história familiar condizente, sendo todos os casos descritos esporádicos4-8.
    Outras possibilidades etiológicas congênitas estariam baseadas na falha de embriogênese, na reabsorção excessiva da camada muscular durante a regressão do ducto onfalomesentérico ou na falência no processo de regressão dos múltiplos divertículos existentes no delgado dos embriões8,9. Embriões de sete a 40 mm possuem múltiplos divertículos, principalmente no intestino delgado terminal, que são posteriormente reabsorvidos durante o desenvolvimento. A partir de então o mesênquima local se condensa para produzir a camada muscular do segmento. Falhas neste processo levariam a ausência segmentar da camada muscular. Esta última teoria corrobora os raros casos de alterações associadas, como os descritos por Miyagawa e col.,198510, com a presença de tecidos gástrico e esofágico ectópicos em porções dilatadas do jejuno, e por Fu e col.,199811, em que houve agenesia das vias biliares, sugerindo que o defeito muscular intestinal é secundário e não conseqüente à falha no seu desenvolvimento.
    Autores como Widgren e Cox12, Huang e col13, Morikawa e col.14, De Villiers15, propõem uma origem adquirida para a enfermidade, acreditando que a alteração da musculatura intestinal seria induzida pelo déficit de fluxo sangüíneo, mais do que propriamente por malformação do embrião. Esta teoria encontra-se apoiada nos achados histológicos habitualmente descritos: presença de plexos mioentéricos nas regiões de perda muscular, já que são mais resistentes à isquemia do que o músculo liso; presença de mucosa intacta ou ligeiramente atrofiada, uma vez que esta camada tem maior capacidade de regeneração que o músculo, tornando-se este ausente, completa ou parcialmente; e, finalmente, a presença da mucosa completamente regenerada. A necrose isquêmica das fibras remanescentes, fibrose, calcificação, processo inflamatório crônico com presença de macrófagos indicam destruição da camada muscular devido à isquemia e ou infarto16.
    A necrose recente de fibras musculares remanescentes encontradas em vários casos sugere uma progressão de necrose para ausência da musculatura. Isto explicaria a associação freqüente entre a hipoplasia da camada muscular e a presença do volvo, como ocorrido no recém-nascido do presente relato. A intussuscepção e alterações da rotação intestinal, também podem ocorrer, dificultando ainda mais a irrigação sangüínea arterial bem como a drenagem venosa.
    A interrupção do suprimento sangüíneo para a alça intestinal do feto, denomina-se acidente vascular fetal. A alça móvel pode ficar torcida, interrompendo o suprimento sangüíneo e levando a necrose do segmento envolvido. Este segmento se torna mais tarde um cordão fibroso que conecta as extremidades normais do intestino.
    Barnard em 195617 produziu experimentalmente em fetos de cães, malformações semelhantes às encontradas nos casos de atresia intestinal, através de ligadura de vasos sangüíneos que supriam a alça de intestino. Após seu experimento, De Villiers15 estudou em cães a atresia e a estenose intestinal de cólon e do intestino delgado por meio da interrupção do fluxo sanguíneo, demonstrando que a isquemia pode ser a causa da agangliose intestinal, resultado das alterações severas da parede intestinal que levariam, em casos extremos, a estenose intestinal segmentar.
    No neonato do presente relato, embora não houvesse indicações de processo inflamatório na peça analisada, bem como fibrose, existiam indícios de sofrimento fetal crônico pelas condições maternas de hipertensão pré-natal, que culminaram com a DHEG, a qual poderia incrementar a deficiência de fluxo sanguíneo fetal. Isso ficou evidenciado, ao nascimento, pelo baixo peso do concepto, APGAR reduzido e, à cirurgia, pela presença da torção do íleo terminal.
    Moore e col.18 acreditam que a maior parte das atresias jejunoileais é provavelmente causada por infarto do intestino fetal, decorrente da diminuição de seu suprimento sangüíneo na décima semana, quando as alças estão retornando à cavidade abdominal.
    Infelizmente, no doente do presente relato, não foi possível recuperar a placenta materna para análise histopatológica, não se conseguindo, portanto, confirmar a deficiência crônica do fluxo sanguíneo placentário, para confirmar tão atraente hipótese.
    Atenção especial deve ser dada quanto à presença de outras malformações associadas quando da indicação cirúrgica no tratamento desta afecção. Quando a terapêutica, baseada na ressecção completa da lesão, é instalada prontamente, os doentes geralmente apresentam bom prognóstico, assim como no presente relato, em que a criança encontra-se viva e saudável seis anos após a cirurgia.

SUMMARY: Six decades since the initial description of alterations in the development of the small intestine musculature, the etiology of such alterations remains undefined. Because of the small number of published cases, little is known about the etiopathogenesis of illnesses that present as intestinal perforation or obstruction among newborns. The present report describes a newborn with an acute abdominal obstruction consequent to segmental agenesis of the muscle layer of the small intestine. Case Report: The patient was a full-term male neonate, born by cesarean section that was indicated because of gestation-specific hypertensive disease. The infant presented signs of chronic fetal suffering at birth and progressed with vomiting and generalized abdominal distension. On the third day, because of the severe clinical deterioration, the diagnostic hypothesis of necrotizing enterocolitis was put forward. Despite the instituted therapy, the infant presented worsening of the abdominal distension and the presence of mucus and blood was observed upon rectal examination. In view of this clinical state, surgical exploration was undertaken. It was found torsion of the terminal ileum about 10 cm from the ileocecal valve. At this location, it was seen that the mesentery was absent and that there was a 20-cm segment of necrotic small intestine starting from the obstruction. Enterectomy with a primary enteroanastomosis was performed. The anatomopathological examination showed that this segment of the small intestine presented hypoplasia of the internal circular muscle layer. Severe submucosal edema, blood vessel congestion and areas of agenesis of the internal circular muscle layer of this organ were also seen, with preservation of the musculature of the mucosa and external longitudinal muscle layer. After this surgical intervention the infant progressed satisfactorily. Six years on he continues to be in good health, with normal height-weight development.

Key words: Intestine, Small/ abnormalities, Intestinal obstruction, Newborn.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência:
CARLOS AUGUSTO REAL MARTINEZ
Rua Rui Barbosa, 255 apto. 32.
09.190-370 – Santo André (SP)
E-mail: caomartinez@uol.com.br

Trabalho realizado pelas Disciplinas de Anatomia Patológica e Cirurgia Geral do Curso de Medicina da Universidade São Francisco, Bragança Paulista

Recebido em 06/08/2004
Aceito para publicação em 19/11/2004