ATUALIZAÇÃO


EFEITOS DA GLUTAMINA SOBRE A PAREDE INTESTINAL E SUA APLICABILIDADE POTENCIAL EM COLOPROCTOLOGIA

Francisco Lopes-Paulo - TSBCP


Lopes-Paulo F. Efeitos da glutamina sobre a parede intestinal e sua aplicabilidade potencial em coloproctologia. Rev bras Coloproct, 2005;25(1):75-78.

Unitermos: colon, reto, glutamina, metabolismo, suplementação

A glutamina é um aminoácido não essencial, cujo papel no metabolismo protéico e no transporte de nitrogênio entre diversos órgãos, tem sido muito pesquisado, principalmente quanto à possibilidade de se tornar essencial em casos de demanda aumentada 1. Sua ação trófica sobre a mucosa do intestino delgado já é bastante conhecida 2,3. Trabalhos experimentais recentes têm demonstrado a ação desse aminoácido sobre a parede colônica, com potencial aplicabilidade clínica4.
    Em 1935, Krebs5 descreveu a capacidade de síntese e degradação da glutamina pelo rim de mamíferos. Vinte anos depois, Eagle6 enfatizou a importância da glutamina como nutriente em culturas de tecidos. Esse aminoácido é encontrado em concentrações relativamente altas em diversas células de mamíferos, quando pode funcionar como captador de amônia e doador de nitrogênio para a síntese de vários compostos, tais como nucleotídeos, mucossacarídeos e aminoácidos7.
    A glutamina é o aminoácido mais abundante no sangue, correspondendo a um terço do nitrogênio circulante sob a forma de aminoácidos. Sua concentração varia de 600 a 800 mM e funciona como veículo para o transporte de nitrogênio, que irá dar suporte à síntese de uréia no fígado e de amônia no rim8. Elwyn et al9 demonstraram, por diferença de concentração artério-venosa, que uma quantidade significativa de glutamina é absorvida pelas vísceras drenadas pelo sistema porta. Diversos estudos têm demonstrado que a mucosa do intestino delgado é a principal responsável por essa absorção10-14. Outros trabalhos demonstraram o papel fundamental desempenhado pelo fígado no metabolismo desse aminoácido, sendo capaz de funcionar como consumidor ou produtor de glutamina, de acordo com as necessidades de diversos processos fisiológicos ou patológicos15,16.
    A concentração de glutamina no sangue cai significativamente em doenças graves, levando a um estado de depleção acentuada desse aminoácido2,17,18. Pode ser observada uma diminuição de até 75 % na concentração intracelular de glutamina no músculo estriado de pacientes sépticos, sendo essa diminuição correlacionada à mortalidade19.
    O intestino delgado do rato absorve cerca de 25 % da glutamina circulante, sendo essa absorção menos intensa em cães e no homem20-22. Ela é captada pelas células epiteliais do intestino a uma velocidade semelhante à da captação da glicose, sendo mesmo mais importante do que esta como fonte energética para enterócitos e colonócitos13, embora estes últimos utilizem preferencialmente ácidos graxos de cadeia curta como fonte energética23.
    A captação de glutamina pelas células epiteliais se faz a partir da luz intestinal e dos capilares, através da membrana baso-lateral. O transporte através da membrana a partir da luz, se faz por meio de uma via Na+ dependente e em menor grau por uma via Na+ independente. O transporte através da membrana basolateral é Na+ e pH dependente24,25. Estudos adicionais demonstraram, por estudo através de carbono e nitrogênio marcados, que a glutamina é igualmente metabolizada, independentemente da via pela qual é absorvida10-14. O metabolismo intracelular da glutamina é regulado através de duas enzimas principais: a glutaminase, que catalisa a hidrólise da glutamina em glutamato e a glutamino-sintetase, que catalisa a síntese de glutamina a partir de glutamato e amônia20. As células epiteliais da mucosa intestinal têm alta concentração de glutaminase, compatível com as altas taxas de captação e consumo de glutamina26.
    Funcionalmente a glutamina é utilizada pelo intestino como uma importante fonte energética, como fonte de nitrogênio amídico para a síntese de nucleotídeos e no processamento de carbono e nitrogênio oriundos de outros tecidos para posterior utilização pelo fígado e pelos rins. Através de vias metabólicas secundárias, a glutamina fornece ainda carbono e nitrogênio para a síntese de alanina, citrulina e prolina.
    O fígado desempenha um papel central no metabolismo da glutamina, pois é capaz de absorver ou liberar quantidades significativas de glutamina de acordo com as necessidades metabólicas do organismo. O fígado possui uma característica peculiar, segundo a qual os hepatócitos peri-portais apresentam alta concentração de glutaminase, enquanto os hepatócitos peri-venosos apresentam concentração elevada de glutamino-sintetase. Essas duas populações celulares respondem às concentrações de glutamina e amônia no sangue portal, captando ou liberando cada um desses elementos de acordo com as necessidades metabólicas do organismo. O fígado utiliza ainda a alanina produzida pela degradação da glutamina no intestino para a gliconeogênese27.
    Pacientes mantidos por longos períodos em nutrição parenteral e dieta zero, costumam desenvolver atrofia das vilosidades do intestino delgado, com conseqüente síndrome de má absorção28. Tem sido demonstrado que a ingestão oral de alimentos desempenha papel fundamental na manutenção de funções da mucosa, tais como a secreção de imunoglobulinas, secreção de muco e multiplicação normal dos enterócitos2.
    Estudos recentes têm obtido resultados favoráveis em impedir essas alterações, adicionando o dipeptídeo L-alanil _ L-glutamina às soluções de nutrição parenteral3,29-31, embora alguns pesquisadores contestem esse benefício32. Esse dipeptídeo, estável em soluções aquosas, é hidrolisado após a infusão venosa, liberando alanina e glutamina, tornando esta última disponível para utilização pelas células da mucosa intestinal33-34. Resultados favoráveis têm sido obtidos também com a adição de L-glutamina a dietas elementares utilizadas em pacientes incapazes de aceitar dieta oral completa 35.

A Utilização de Glutamina pelo Cólon e Reto
As células epiteliais da mucosa colônica utilizam como fonte energética primária, ácidos graxos de cadeia curta, principalmente os ácidos acético, propiônico e butírico 36-37. Esses são formados pela fermentação bacteriana anaeróbia de fibras residuais contidas no bolo fecal. Em segmentos derivados do cólon, a ausência do bolo fecal impede essa formação e sua conseqüente absorção e utilização pelas células epiteliais. Nessa situação, a glutamina, que é um substrato energético secundário para essas células, passa a ser primordial, podendo ser utilizada preferencialmente à glicose como fonte energética 23.
    Estudos experimentais recentes têm demonstrado que a glutamina pode ser um elemento com atividade energética e trófica importante para o cólon submetido a situações de estresse, como é o caso de segmentos derivados. Esses segmentos apresentam atrofia da parede, principalmente às custas do epitélio, tendo o emprego de glutamina evitado essas alterações 3,38.
    De modo semelhante, segmentos colônicos submetidos a radiação, apresentam uma diminuição do seu conteúdo de colágeno, com conseqüente diminuição da pressão de ruptura e maior risco de deiscência, em anastomoses neles realizadas. A suplementação de glutamina nesses animais foi capaz de atenuar significativamente esses efeitos da radiação39-40.

Comentários
A glutamina, apesar de sua importância no metabolismo proteico e no transporte de nitrogênio, é considerada um aminoácido não essencial. Essa denominação deve-se ao fato de que o organismo é capaz de sintetizá-lo a partir de outros aminoácidos. No entanto, em situações de estresse, a demanda pode superar a capacidade de síntese, tornando a sua suplementação essencial.
    Até recentemente, acreditava-se que esse aminoácido tivesse ação significativa apenas sobre o intestino delgado. No entanto, estudos experimentais recentes, como os citados anteriormente, mostram que a glutamina pode ter atuação importante sobre o cólon em situações de demanda aumentada.
    No momento, são aguardados estudos clínicos que possam verificar a atuação dessa substância no cólon e reto de humanos.

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