VÍDEO-LAPAROSCOPIA COLO-RETAL
ENFOQUES ATUAIS & CONTROVÉRSIAS
Fábio Guilherme C. M. de Campos1
1Faculdade de Medicina da USP, Disciplina de Coloproctologia do HCFMUSP, SãoPaulo, Brasil
INCISÕES AUXILIARES EM CIRURGIA COLO-RETAL VÍDEO-LAPAROSCÓPICA
Renato Arione Lupinacci, Miguel Angelo Pedroso, Renato Micelli Lupinacci,
Francisco José de Matos Farah, Fábio Guilherme C. M. de
Campos
LUPINACCI RA, PEDROSO MA, LUPINACCI RM, FARAH FJM, CAMPOS FGCM _ Incisões Auxiliares em Cirurgia
Colo-Retal Vídeo-Laparoscópica. Rev bras
Coloproct, 2005;25(2):192-198.
RESUMO: Os autores fazem considerações sobre as diversas opções para realização de incisões auxiliares em ressecções laparoscópicas. Essas incisões podem ser necessárias para a retirada da peça operatória, para controlar complicações intra-operatórias ou mesmo para complementação do procedimento laparoscópico, como a confecção de anastomoses. No intuito de facilitar a discussão deste assunto, é apresentada uma breve revisão da anatomia da parede abdominal e são relacionadas as vantagens e desvantagens das diferentes incisões. Neste aspecto, são discutidas as conseqüências estéticas, funcionais e respiratórias envolvidas e são apresentadas algumas sugestões sobre as melhores opções táticas em cada procedimento.
Descritores: laparoscopia, laparotomia, colectomia, cirurgia minimamente invasiva, incisão abdominal
"Ce que j'aime dans la chirurgie, c'est qu'elle voit ce qu'elle fait" (Montaigne)
Introdução
Para a segurança de qualquer procedimento,
é fundamental realizar o ato cirúrgico com boa visão
da anatomia. Especialmente em cirurgia minimamente invasiva, este preceito deve ser uma das metas
fundamentais do cirurgião.
Durante procedimentos laparoscópicos, as incisões auxiliares podem ser realizadas com
três objetivos, a saber: 1) para retirada da peça
cirúrgica; 2) para facilitar determinado passo cirúrgico e
aumentar a segurança do procedimento; 3) possibilitar a
realização de anastomoses manuais e, assim, diminuir
os custos do procedimento.
Quanto à decisão sobre a melhor incisão,
cabe ao cirurgião levar em consideração a topografia
dos órgãos, características da anatomia da parede
abdominal e alterações fisiológicas decorrentes (dor,
aspecto cosmético e recuperação pós-operatória) de cada
uma das diferentes opções.
Considerações táticas como velocidade
de abertura da parede, necessidade de ampliação
da incisão e a possibilidade eventual de realizar
procedimento complementar (como a realização de
estomas) são também relevantes, devendo influir
nesta decisão.
Considerações sobre a anatomia da parede abdominal
A cavidade abdominal é delimitada por um arcabouço ósseo (gradeado costal
ântero-superiormente; vértebras lombares e seus processos
costiformes posteriormente; bordo superior da cintura
pélvica inferiormente) e um sistema de músculos
chatos (oblíquo externo, oblíquo interno e
transverso abdominal) que se organizam ao redor de dois
pilares musculares verticais, os músculos reto-abdominais
e seu eixo tendinoso central1.
Estes músculos sustentam as vísceras
e intervêm na respiração, que é ao mesmo
tempo antagonista e colaborador do músculo diafragma.
A perda da função respiratória e motora dependerá
da região e da extensão da lesão muscular.
Vascularização
O plano superficial é extremamente bem vascularizado através de artérias perfurantes na
altura dos músculos oblíquos na linha axilar anterior e
através da bainha anterior do reto, onde geralmente
existem quatro pedículos arteriais abaixo e três pedículos
acima. Na parte infra-umbilical a nutrição se faz através
das artérias epigástrica superficial e circunflexa
ilíaca superficial bilateralmente1.
Vaso de importância cirúrgica maior, a
artéria epigástrica inferior é ramo da artéria ilíaca externa
e se anastomosa com a artéria epigástrica superior,
ramo da artéria torácica interna, ao nível do terço
superior do músculo reto. A artéria epigástrica inferior possui
o calibre pressão da artéria radial, e sua lesão leva
a sangramento que transtorna o cirurgião, seja
pelo gotejamento persistente intracavitário, dificultando
a boa visibilidade durante o procedimento, seja
pela perda de volume e eventual instabilidade no
intra-operatório, bem como causa de choque no
pós-operatório imediato ou pela formação de
hematomas volumosos, motivo de grande preocupação
e desconforto dos pacientes.
A artéria surge na parede abdominal ao
nível do orifício profundo do canal inguinal, o qual
contorna pela sua borda medial, dirigindo-se obliquamente
para o centro e para o alto. Segue o trajeto perpendicular
ao ligamento inguinal para ascender junto à borda
lateral do reto em um ponto variável 4 a 8 cm do púbis
1.
O sistema vascular lateral é alimentado
pela artéria torácica e os ramos intercostais
superiormente e inferiormente pelas anastomoses destes com
as artérias lombares e circunflexa ilíaca profunda.
Essas artérias laterais formam um verdadeiro plexo
arterial nos flancos, modificando sua metamerização
e penetrando na bainha do reto juntamente com o
plexo nervoso, para finalmente fazer conexão com o
eixo central que é a artéria epigástrica.
Este plexo está situado profundamente entre
o músculo oblíquo interno e transverso (sendo
o responsável pelos sangramentos nas punções
laterais e nas incisões para drenagem da cavidade).
Inervação
A inervação se origina dos últimos
ramos intercostais (T12) superiormente e nos nervos
ílio-hipogástrico, ílio-inguinal (L1) e gênito-femoral
(L2) inferiormente. A direção desses nervos é oblíqua
e inferior, caminhando para o músculo oblíquo interno
e transverso, antes de penetrar no folheto posterior
da bainha do reto. O nono e décimo pares intercostais
são os mais comumente lesados, porém, felizmente,
para levar a uma paralisia de um segmento do músculo
reto existe a necessidade da lesão de três nervos
intercostais, tornando bastante incomum essa complicação.
Existe uma conexão entre os nervos ílio-hipogástrico e
ílio-inguinal nos flancos e no interior das bainhas
dos músculos reto abdominais, o que explica
a tolerabilidade das incisões que lesam
parcialmente estes nervos1.
As linhas de tensão cutânea (Linhas de
Lager) resultam da organização espacial das fibras
colágenas no extrato cuticular da
derme1. Ao nível abdominal, elas se dispõem horizontalmente no terço superior
e ligeiramente inclinadas para baixo no terço
inferior. Existem três pregas transversas bem demarcadas,
a prega supra-umbilical, a sub-umbilical e a
supra-púbica. Estas linhas têm importância cosmética e
de cicatrização.
Figura 2 - Linhas de tensão cutânea (Linhas de Lager) na parede abdominal. |
No Quadro-1 são enumeradas as vantagens
e desvantagens associadas aos diversos tipos de
incisões abdominais 2-4.
|
Incisões auxiliares e procedimentos colorretais
Colectomia direita
A realização de colectomias direitas
permite utilizar inúmeras incisões, seja para
confeccionar anastomose intra ou extra-cavitária, para auxiliar
na liberação do cólon ou retirada da peça. Para
tanto, devem-se considerar os custos, a necessidade
de equipamentos especiais e o biótipo do paciente.
O Quadro-2 resume as diferentes incisões
auxiliares utilizadas na hemicolectomia direita laparoscópica.
|
As incisões no quadrante superior
direito (QSD) oferecem melhor visualização do
cólon transverso e facilitam a liberação do espaço
intercolo-epiplóico e de eventuais aderências com a parede
do estômago. Por outro lado, são incisões em
abdômen superior que podem acarretar piora da
função respiratória no pós-operatório, mais dor e pior
efeito estético.
As incisões no quadrante inferior direito
(QID) podem ser de grande utilidade quando da
necessidade de mobilização do ceco/íleo terminal, após
ligadura intra-corpórea dos pedículos vasculares. Apesar
de fornecerem melhores resultados funcionais e cosméticos comparadas às incisões no QSD,
não constituem uma boa alternativa para a confecção
de anastomoses extra-corpóreas, aumentando
a necessidade de grampeadores ou de habilidade da equipe para realização de anastomoses intra-corpóreas.
Neste aspecto, deve-se levar em
consideração que incisões que estejam situadas em
quadrantes laterais do abdômen poderão criar
dificuldades adicionais no que diz respeito à eventual
necessidade de confeccionar um estoma na parede abdominal.
Outra situação seria aquela em que o paciente necessite ser
re-operado por uma complicação pós-operatória,
quando as incisões em quadrantes abdominais são
insuficientes e não permitem ao cirurgião um acesso completo
à cavidade abdominal. Por este motivo, as incisões
supra-púbicas e medianas têm tido melhor aceitação.
As incisões supra-púbicas (em especial
a incisão de Pfannenstiel) apresentam grande
apelo cosmético e pouca dor. Entretanto, tornam
quase obrigatório o uso de endogrampeadores ou a
confecção de suturas intra-corpóreas. Recente publicação
de Hendrix e cols5 não mostrou os benefícios atribuídos
a estas incisões quanto à menor freqüência de
infecções ou deiscências.
As incisões trans-umbilicais (verticais
ou eventualmente transversas) são opção interessante,
e constituem as incisões de escolha dos autores, para
a ressecção da peça e confecção da anastomose
após liberação/mobilização do cólon direito e íleo
terminal e ligadura dos pedículos vasculares. Nos casos
de ressecções não oncológicas, apenas a mobilização
do cólon é realizada no tempo intra-corpóreo,
podendo-se realizar as ligaduras vasculares após
exteriorização da peça. Na incisão transversa o músculo reto não
é seccionado na maioria das vezes; quando for
necessário seccioná-lo, isto poderá ser feito de maneira parcial
e sem lesão nervosa. Possuem, ainda, a vantagem de
fácil ampliação caso seja necessário.
Colectomia Esquerda ou Retossigmoidectomia
As cirurgias para ressecção do
hemicólon esquerdo e/ou do retossigmóide são as mais
realizadas por serem sítio da moléstia diverticular e
localização preferencial das neoplasias colorretais. O Quadro
3 apresenta as possíveis incisões auxiliares
utilizadas nestes procedimentos.
|
Devido à variedade de opções, o cirurgião
deve estar atento às considerações citadas no início do
artigo para a escolha pela melhor incisão nas cirurgias
sobre o cólon esquerdo. Deve-se levar em conta,
também, aspectos como volume e diâmetro da peça, visto
que as massas inflamatórias ou tumorais não podem
ser maceradas ou manipuladas excessivamente para a
sua retirada.
A incisão transversa tipo Pfannenstiel
não secciona o músculo e permite uma
exposição relativamente boa e cosmeticamente
bastante satisfatória. Permite a realização de
anastomoses manuais em pacientes com biótipo favorável.
A incisão transversa de Chernley secciona
o músculo reto abdominal aproximadamente 2cm
acima do púbis sem comprometer a inervação. Fornece
boa exposição e, em nossa opinião, é opção mais
atraente que as incisões de Pfannenstiel.
As incisões transversas supra-púbicas e
no quadrante inferior esquerdo (QIE) são opções
nas cirurgias combinadas com assistência manual
(hand_assisted surgery), quando realizadas desde o início
do procedimento. Devem ter extensão de no mínimo
8cm para permitir a fixação do dispositivo.
A incisão no QIE paralela ao ligamento inguinal permite uma boa exposição da região e
poderá ser realizada com mínima lesão muscular,
apenas através da abertura das fáscias e porções
tendinosas. Ressaltamos o cuidado com a identificação dos
vasos epigástricos cuja lesão, com retração dos cotos,
pode dificultar o controle da hemorragia. Esta
incisão permite vasta exposição, inclusive da raiz da
artéria mesentérica inferior e, se necessário,
possibilita satisfatória revisão da hemostasia. Permite
a anastomose manual colo-retal na maioria dos
pacientes, diminuindo o custo do procedimento.
A incisão mediana infra-umbilical é
bastante rápida e é a opção preferencial nos casos de
conversão por sangramento ou quando existe dúvida quanto
à exeqüidade do procedimento por via
laparoscópica, pois incisões pequenas podem ser
facilmente ampliadas.
Quando realizado procedimento totalmente intra-cavitário, a retirada da peça poderá ser
realizada pela ampliação do porto de trabalho do trocarte
de 12mm no QID. Entretanto, esta opção só é
interessante quando a peça não é muito volumosa. Esta
alternativa diminui o número de incisões e permite boa análise
do comprimento de cólon abaixado e da tensão sobre
a anastomose.
As incisões vaginais têm sido
raramente empregadas nas ressecções do reto. Permitem a
retirada da peça, a utilização de grampeadores comuns para
o fechamento do coto retal e a realização de
anastomoses manuais. Apesar de estar sendo utilizada por
grupos específicos com bons resultados, esta opção é
ainda bastante discutível e merece comprovação efetiva
de suas reais vantagens.
Muito utilizada por nós, a via
endorretal permite o tratamento do mesocólon totalmente por
via extra-corpórea, auxilia em dissecções difíceis e
permite satisfatória retirada da peça diminuindo o
tempo cirúrgico.
Colectomia/Proctocolectomia total com ou sem
anastomose primária
As opções são as mesmas das
ressecções esquerdas e encontram-se resumidas no Quadro 3.
A preferência dos autores na colectomia
com ileostomia terminal é a retirada da peça pelo
QID através do prolongamento do trocarte de trabalho
de 12mm, sendo a peça retirada, seccionada e a
ileostomia exteriorizada pela mesma incisão.
Nos casos em que optamos por íleo-reto-anastomose (IRA) preferimos as incisões no QIE
ou transversa supra-púbica, sendo que a incisão no
QIE, apesar de mais funcional, não permite a visualização
do pedículo ileal e o correto posicionamento da alça.
Assim, nos casos de dúvida, a incisão transversa
supra-púbica ou mesmo a incisão mediana infra-umbilical permite
uma melhor visualização do eixo da artéria íleo-cólica.
Quando prevista a realização de
anastomose primária, as vias exclusivamente perineais
constituem uma boa opção, porém a avalição da tensão do
íleo abaixado exige maturidade em cirurgia
laparoscópica, já que procedimentos de alongamento do
mesentério ileal não serão possíveis.
Para as proctocolectomias totais com bolsa ileal, optamos pelo prolongamento transversal do
porto do QID, permitindo a retirada da peça e a
realização da bolsa ileal e o aproveitamento da mesma
incisão para exteriorização e maturação da ileostomia
de proteção, sempre realizadas pelos autores
nas anastomoses baixas.
SUMMARY: The authors present technical considerations regarding the options of auxiliary incisions during laparoscopic resections. These incisions may be necessary to resect the surgical specimen, to control intraoperative complications or to facilitate intestinal suture. To discuss this subject, they present a brief review about the abdominal wall anatomy and discuss the advantages and disadvantages of the different incisions. It is also appointed the esthetic, functional and respiratory consequences involved with each incision, making suggestions about the best tactical options for various procedures.
Key words: laparoscopy, laparotomy, colectomy, minimally invasive surgery, abdominal incision.
Referências Biliográficas
1. Neidhardt JPH, Caillot JL: Anatommie chirurgicale ded
la paroi abdominale antéro-laterále. Voies d'abord de la
cavité abdominale. Coeliotomies, laparotomies, abords
combinés thoraco-abdominaux. Editions Techniques - Encycl Méd
Chir (Paris - France) - Techniques Chirurgicales, Appareil
Digestif. 40040, 1990; 6: p. 24.
2. Hackert T, Uhl W, Buchler MW: Specimen retrieval
in laparoscopic colon surgery. Dig Surg. 2002; 19: 502-6.
3. Burger JW, van `t Riet M, Jeekel J: Abdominal incisions:
techniques and postoperative complications. Scand J Surg.
2002; 91: 315-21.
4. Grantcharov TP, Rosenberg J: Vertical compared with
transverse incisions in abdominal surgery. Eur J Surg. 2001;
167: 260-7.
5. Hendrix SL, Schimp V, Martin J, Singh A, Kruger M,
Mc Neeley SG: The legendary superior strength of
the Pfannenstiel incision: a myth? Am J Obstet Gynecol.
2000; 182: 1446-51.
Endereço para correspondência:
Renato Lupinacci
Rua Minas Gerais, 49 - Higienópolis
01.244-011 - São Paulo (SP)
E-mail: rmlupinacci@terra.com.br
Recebido em 16/05/2005
Aceito para publicação em 31/05/2005