RELATO DE CASO


AMPUTAÇÃO ABDÔMINO-PERINEAL DO RETO NA DOENÇA DE CRÖHN

Rodrigo Ribeiro Aprilli1, Ricardo Claudino Peixoto da Silva1, Omar Feres1

1 Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, São Paulo, SP, Brasil


Aprilli RR, Silva RCP, Feres o. Amputação Abdômino-Perineal do Reto na Doença de Cröhn. Rev bras Coloproct, 2005;25(4): 374-377.

RESUMO: A incidência da doença de Crohn está aumentando no Brasil e, conseqüentemente, é cada vez maior o número de casos crônicos e graves. O comprometimento ano-reto-perineal, embora freqüente e responsável por morbidade leve ou moderada, às vezes é muito extenso, causando importantes perdas anatômicas e funcionais. O objetivo desta apresentação é relatar a pequena casuística da Disciplina de Coloproctologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto _ USP, em que a amputação abdômino-perineal do reto foi uma medida drástica, mas a única alternativa capaz de melhorar a qualidade de vida de pacientes com grave comprometimento ano-reto-perineal. Vale ressaltar que o índice de amputações em nossa disciplina é bem menor que os observados em países da Europa e nos EUA.

Descritores: Doença de Crohn, amputação abdômino-peritonial

Introdução
O acometimento perianal da doença de Chron (DC) com a formação de fístulas, fibroepiteliomas, úlceras, estenose e carcinoma, ocorre em 25 a 80 % dos casos 1,5.
    Apesar das inúmeras medicações existentes para o tratamento dessa afecção, raramente o paciente está isento de alguma intervenção cirúrgica durante a evolução da doença e, em alguns casos extremos a amputação do reto é a única alternativa que pode causar melhora de sua qualidade de vida 1,3,5.
    Na FMRP-USP, foram catalogados, entre 1980 e 2000, 126 novos casos de DC 4. Destes, quatro pacientes (3,17 %), todos do sexo feminino, necessitaram de amputação do reto, devido ao grave comprometimento ano-reto-perineal com perda irreversível da função do reto.

CASOS CLÍNICOS
Caso 1: RCFS, 26 anos, com diagnóstico de doença inflamatória intestinal (DII) desde os dois anos de idade, foi operada de urgência com quadro de megacólon tóxico aos três anos, sendo realizada colectomia total, ileostomia terminal e fístula mucosa do reto. O exame anatomopatológico foi compatível com DC. A doença continuou em atividade no reto, apesar do tratamento medicamentoso tópico. Houve comprometimento progressivo do órgão e aparecimento de múltiplas fístulas retoperineais e vaginais. Aos 15 anos foi realizada a amputação do reto a pedido da própria paciente, que já não suportava mais sua qualidade de vida. Ficou assintomática por 10 anos, sem uso de medicação. Há dois anos a doença tornou-se novamente ativa, com acometimento do íleo terminal, sendo necessária reintrodução de mesalazina. Houve remissão do quadro e permanece assintomática até hoje.

Caso 2: SAFC, 35 anos, com DC diagnosticada aos 21 anos. Foi submetida a colectomia total com ileostomia terminal, devido ao acometimento perianal e colônico, em outro serviço. Atendida no HCRP, em 1996, então com 27 anos, apresentando-se com mau estado nutricional, fístulas na ileostomia e grave comprometimento do reto, anus e períneo. Após recuperação do estado nutricional e tratamento cirúrgico da doença ileal foi realizada amputação abdômino-perineal do reto cerca de 10 meses depois. Está assintomática há quatro anos e sem uso de medicação. (Figuras-1 a 4)

 
Figura 1 - Fístula periestomal.


 
Figura 2 - Acometimento perineal.


 
Figura 3 - Fístula perineal complexa.


 
Figura 4 - Períneo após amputação.


Caso 3: MFS, 22 anos, feminino. Início dos sintomas aos 14 anos, em 1996, com quadro de enterorragia intermitente. Ileocolonoscopia possibilitou identificação de lesões sugestivas de DC, forma colo-reto-perineal, sem comprometimento ileal. O exame anatomopatológico das biopsias foi compatível com DC. Em 1999, aos 17 anos, foi submetida a colectomia subtotal com ileostomia terminal e fístula mucosa, e a vários subseqüentes tratamentos cirúrgicos das várias fístulas perianais, sem sucesso. Foi necessária, então, amputação do reto, após quatro anos. Apresentou boa evolução clínica, tendo como complicação deiscência da ferida perineal; e após um ano da cirurgia apresentou fístula periestomal, sendo iniciado tratamento com infliximab. (Figura-5)

 
Figura 5 - Colectomia total



Caso 4: SHRL, 49 anos, com DC diagnosticada cerca de 19 anos atrás, sendo um dos primeiros casos do HCRP. Possui doença neurológica de Charcot-Marrie com paralisia de membros inferiores. A enfermidade manifestava-se basicamente no reto e períneo com várias fístulas e abscessos perianais recorrentes, sendo submetida a multiplas intervenções cirúrgicas (drenagens de abscessos, fistulotomias, fistulectomias, rotação de retalhos miocutâneos e colostomia ), sem melhora significativa do estado geral. Devido à falta de resposta aos tratamentos instituídos foi submetida à amputação abdômino-perineal do reto em novembro de 2004. Optou-se por deixar a pele e subcutâneo do períneo abertos devido ao intenso acometimento inflamatório local. Atualmente a ferida do períneo está quase cicatrizada, porém o anatomo patológico da peça cirúrgica revelou carcinoma espinocelular, mostrando a malignização da doença nos casos de longa evolução. (Figuras 6 e 7)

 
Figura 6 - Produto de proctectomia


 
Figura 7 - Acometimento perineal.



DISCUSSÃO

No Brasil, aumentou a incidência da DC quando comparada à da RCU4. Nos países europeus e na América do Norte, esta enfermidade existe há mais tempo e, portanto, há um maior número de doentes crônicos. O índice de proctectomia na Europa varia de 9 a 17 %2, mostrando uma percentagem muito maior quando comparada com a casuística aqui apresentada (3,17 %). Essa diferença poderia estar relacionada não só à maior incidência de casos crônicos, mas, também, a uma possível diferença de comportamento da doença, com expressão mais agressiva naqueles países. Embora o acometimento ano-reto-perineal seja freqüente (25 a 80%)1,5, na maioria dos pacientes ele é leve ou moderado, respondendo ao tratamento medicamentoso ou a operações conservadoras. Menos freqüentemente as lesões ano-reto-perineais são mais graves, sem resposta aos tratamentos medicamentosos, tópicos e sistêmicos, e às intervenções menos invasivas, sendo a amputação abdômino-perineal do reto, em alguns casos selecionados, a única terapêutica possível. As indicações elegidas pela disciplina de Coloproctologia do Departamento de Cirurgia e Anatomia da FMRP-USP foram a intratabilidade clínica em pacientes com má saúde geral, com ou sem manifestações extra-intestinais, graves e irreversíveis perdas anátomo-funcionais ano-reto-perineais e malignidade. Dentre os casos relatados, uma paciente apresentava malignidade no canal anal, além da DC. A técnica de amputação preconizada difere da cirurgia oncológica proposta por Miles. Na amputação pela DC preserva-se, quando possível, a musculatura esfincteriana externa do ânus e a dissecção é feita bem próxima ao reto para evitar lesões nervosas e as conseqüentes disfunções sexuais 1,5. O índice de mortalidade, já relatado, varia de 3 a 9 %1; enquanto na casuística aqui apresentada a mortalidade foi de 0%. A complicação mais freqüente desta cirurgia descrita na literatura é deiscência da ferida operatória perineal (22 %)1, seguida de abscessos pélvicos (9 %)1, abscessos e fístulas perineais (3%)1. Em nossa casuística, todas tiveram deiscência da ferida perineal, explicada pelas más condições nutricionais e ao grave acometimento do reto, ânus e períneo, o que nos leva a preconizar que a ferida perineal deve ficar aberta para cicatrizar por segunda intenção. A recidiva periestomal também está descrita e a incidência é maior nas formas mais agressivas da doença. Nos casos relatados uma paciente apresentou fístula periestomal após um ano da amputação do reto, mostrando o caráter agressivo dessa doença.

CONCLUSÃO
A DC é potencialmente grave e, quando há intenso acometimento do ânus e períneo, a amputação abdômino-perineal do reto é uma alternativa que, embora mutilante, pode melhorar a qualidade de vida do paciente.

SUMMARY: The incidence of Crohn's disease is growing up in Brasil, and the consequence is a larger number of chronic and bad cases. The anorectal involvement, however frequent, is responsible for light or moderate morbidity. Some times this involvement is very extensive, causing important anatomic and functions detriment. We relate four cases treated at the "Disciplina de Coloproctologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto _ USP", where the proctectomy was a drastic option, but the only alternative to offer a better quality of life to those patients with severe perineal involvement. It`s important to project that the index of amputation in our discipline is lower than the index observed in Europe and the USA.

Key words: Crohn disease, Proctocoloectomy, Complications, Instestinal Inflamatory Disease, Surgery Crohn disease

Referências Biliográficas
1. Keigrley and Williams. Surgery of the anus, rectum and colon. In: Abdominoperineal excision of the rectum and colostomy. Ed. WB Saunders, p.1789-1805, 2000.
2. Enríquez-Navascues JM, Leal J, Tobaruela E, Benita V, CamiñasJ, Gila A, Ratia T, Cataños R. Valor de la classificación de Hughes- Cardiff em el manejo de la enfermedad anorrectal de Crohn. Rev Esp Enf Digest, v. 89, p.583-6,1997.
3. Hurst RD, Gottieb LJ, Crctti P, Melis M, Rubin M, Michelassi F. Primary closure of complicated perineal wounds with myocutaneous and fascicutaneous flaps after proctectomy for Crohn's disease. Surgery, v. 130, p. 767-72, 2001.
4. Souza MH, Troncon LE, Rodrigues CM, Viana CFG, Onofre PH, Monteiro RA, Passos AD, Martinelli ALC, Meneghelli UG. Arq Gastroenterol, v. 39, p. 98-104, 2002.
5. Yamamoto T, Keighley MRB. Long-term outcome of total colectomy for Crohn"s disease. Scand J Gastroenterol, v.3, p. 280,1999.

Endereço para correspondência:
Rodrigo Aprilli
Rua Rui Barbosa, 1625
14.015-120 - Ribeirão Preto (SP)
raprilli@hotmail.com 

Trabalho realizado no Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, São Paulo, SP, Brasil

Recebido em 14/02/2005
Aceito para publicação em 15/12/2005