RELATO DE CASOS
SEMI-OBSTRUÇÃO INTESTINAL POR ESCLERODERMIA - RELATO DE CASO
Juliana Mendes Cardoso1, Panmella Lemos Lima1, Carlos Eduardo de Oliveira Ribeiro1, Daniel Bonomi1, Marcílio José Rodrigues Lima1, Antônio Lacerda-Filho1
1Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG, Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da UFMG
Cardoso JM, Lima PL, Ribeiro CEO, Bonomi D, Lima MJR, Lacerda-Filho
A. Semi-obstrução Intestinal por
Esclerodermia - Relato de Caso. Rev bras
Coloproct, 2006;26(2):187-192.
RESUMO: A esclerodermia ou esclerose sistêmica progressiva é uma doença auto-imune de causa desconhecida que se caracteriza por fibrose da pele, vasos sanguíneos e de alguns outros órgãos, como os pulmões, coração, rins e trato gastrintestinal. Sintomas atribuíveis ao comprometimento gastrintestinal podem estar presentes em até 50% dos pacientes, sendo os mais freqüentes, relacionados às manifestações esofagianas e anorretais. Anormalidades na motilidade intestinal com freqüência levam a desnutrição, supercrescimento bacteriano e quadro de pseudo-obstrução ou mesmo semi-obstrução intestinal. É apresentado um caso de paciente com esclerodermia há 43 anos, evoluindo com quadro de semi-obstrução, apresentando distensão abdominal, cólicas recorrentes e desnutrição grave. Sem resposta ao tratamento clínico foi submetida à cirurgia que evidenciou quadro obstrutivo por comprometimento ileal, o qual foi tratado por bypass íleo-cólico. Lesão intestinal por esclerodermia levando a quadro de obstrução é raramente descrita na literatura médica e, portanto, o tratamento de escolha ainda não foi definido.
Descritores: Esclerose sistêmica progressiva, esclerodermia gastrointestinal, pseudo-obstrução intestinal
Introdução
A esclerodermia ou esclerose sistêmica progressiva é uma doença de etiologia
desconhecida caracterizada pela proliferação de tecido
conjuntivo associado a uma variedade de distúrbios funcionais
de vários sistemas orgânicos e que acomete,
mais freqüentemente, mulheres entre 30 e 40 anos.
Apesar das principais manifestações ocorrerem na pele
e sistema vascular, ocorrem também distúrbios em
outros sistemas, os quais podem definir o quadro clínico,
como no acometimento intestinal, produzindo disfunções
da motilidade e má
absorção1. A patologia consiste
em inflamação severa com fibrose densa e atrofia
da camada muscular própria e conseqüente
substituição por tecido conjuntivo na parede intestinal
2,3,4. A doença pode ocorrer como entidade única ou fazer parte
da síndrome CREST (calcinose, Fenômeno de
Raynaud, hipomotilidade esofagiana, esclerodactilia
e telangiectasia)5.
A esclerodermia é uma doença
multisistêmica com uma variedade de complicações. Estima-se
que 50 % dos pacientes morrem em 5 anos. A
mortalidade associada com a doença tem influenciado a
decisão cirúrgica6, sendo que as opções terapêuticas para
as complicações do escleroderma intestinal
avançado ainda são
limitadas2. A primeira colectomia por esclerodermia foi descrita em 1931, em um
paciente com dilatação colônica e
obstrução7. Tem sido considerado que, a despeito dos riscos da
doença sistêmica, a mortalidade pode ser diminuída
com abordagem cirúrgica precisa, como em quadros
com crises intra-abdominais freqüentes.
Relato do caso
Paciente de 61 anos, sexo feminino, com diagnóstico de esclerodermia há 43 anos, apresentando
grave acometimento cutâneo com fenômeno
de Raynaud (Figura-1). Há cerca de 20 anos foi
submetida à gastrectomia parcial e reconstrução em Y de
Roux por grave refluxo gastro-esofágico. Há cerca de 2
anos apresentava quadro de distensão abdominal
(Figura-2) associada à dor em cólicas recorrente com
historia de internações freqüentes pela mesma
sintomatologia. Propedêutica radiológica sugeria a presença de
transito intestinal lento e dilatação do intestino delgado,
sem nenhum ponto evidente de obstrução (Figura-3).
Fez uso de diversas medicações, dentre elas todos os
pró-cinéticos disponíveis, incluindo octreotide,
porém mantinha sintomatologia associada a quadro
de desnutrição grave e desidratação. Submetida a
terapia nutricional e, na seqüência, a laparotomia
exploradora, a qual evidenciou alças de delgado
comprometidas, distendidas e de aspecto fibrosado (Figura-4) e
região de íleo distal com fibrose acentuada causando
estenose da luz intestinal (Figura-5). Devido ao grave
estado nutricional foi realizado apenas " bypass"
ileo-transverso (Figura-6) com boa evolução
pós-operatória e melhora da sintomatologia clinica.
Figura 1 - Acometimento cutâneo das mãos com fenômeno de Raynaud. |
Figura 2 - Distensão abdominal secundária ao quadro intestinal semi-oclusivo. |
Figura 3 - Trânsito intestinal baritado evidenciando importante retardo e dilatação intestinal sem área de obstrução mecânica. |
Figura 4 - Dilatação intestinal por acometimento difuso secundário à esclerodermia. |
Figura 5 - Área fibrótica em íleo terminal levando a quadro de semi-oclusão intestinal. |
Figura 6 - Bypass por anastomose íleo-cólica látero-lateral. |
Discussão
A esclerodermia é uma doença do
colágeno, de etiologia desconhecida, que afeta primariamente
o tecido conjuntivo, acometendo vários órgãos.
O processo patológico básico é a fibrose progressiva
7,8. Mais da metade dos pacientes com esclerodermia
tem evidências clínicas de envolvimento
gastrointestinal, mais comumente acometendo o
esôfago. Em 58 autópsias estudadas, D'Angelo e cols
encontraram fibrose e lesões vasculares na pele (98%), no
trato gastrointestinal (74%), nos pulmões (59%),
fígado (49%), pericárdio (41%) e miocárdio
(26%)9.
O envolvimento gastrintestinal pela
doença ocorre mais na forma de disfunção esofágica
e manifestações anorretais, sendo o
acometimento intestinal bem menos comum. As
complicações gastrointestinais mais freqüentes são: 1) distúrbios
de motilidade, o que aumenta o crescimento da flora
e agrava a má absorção e a distensão; 2) refluxo
gastro-esofágico, por estase de fluido gástrico e
diminuição do esvaziamento do estômago; 3) má absorção em
40% dos pacientes, associada a hipomotilidade; 4) constipação por perda do reflexo gastrocólico e
da capacidade propulsiva colônica, podendo levar
a quadros de impactação fecal; 5) ulcerações que
podem causar hemorragia severa, infarto intestinal,
perfuração e peritonite e 6) pneumatose cistóide
intestinal, algumas vezes associada à isquemia intestinal
2,5 e raramente, pneumoperitôneo por
perfuração intestinal10.
A hipomotilidade é o sintoma cardinal do envolvimento intestinal pela esclerodermia,
causando retardo significativo no trânsito intestinal e levando
à constipação1. A estase propicia
supercrescimento bacteriano e, subseqüentemente, síndrome de
má absorção, embora outras causas para esta
síndrome tenham sido postuladas, como por exemplo,
deficiência de enzimas digestivas e defeito intrínseco da
função absortiva1. A motilidade pode estar comprometida
a ponto de causar uma "obstrução funcional"
do intestino, levando a sintomas similares aos de
uma obstrução mecânica.
O acometimento intestinal geralmente leva a quadros crônicos, de evolução lenta e
progressiva. Ao exame, geralmente os pacientes apresentam
estado geral comprometido, fraqueza, desidratação
e sintomatologia característica de má absorção,
como desnutrição grave, perda ponderal e anemia.
Anorexia, náuseas e vômitos podem fazer parte do
quadro clínico. Dor abdominal, geralmente em cólica,
e constipação são relatadas e na maioria das vezes,
estão presentes há várias meses ou até anos, sendo
que geralmente já foram realizadas várias tentativas
de tratamento clínico10,11. O exame físico evidencia
as alterações e sinais típicos da doença de base,
como pele fibrótica, dedos endurecidos e com
movimentos limitados, telangiectasias e fenômeno de
Raynaud, um achado muito comum5. A distensão abdominal
é queixa freqüente, sendo que ao exame é comum
dor à palpação profunda. Exames complementares
podem demonstrar quantidade aumentada de gordura
nas fezes, anemia, carência de vitamina B12,
todos decorrentes da má absorção. A propedêutica
de imagem geralmente sugere um período de
trânsito intestinal baritado lento, dilatação dos segmentos
do intestino e ausência de obstruções mecânicas,
apesar da clínica sugestiva10.
A fisiopatologia da hipomotilidade intestinal pode, pelo menos em parte, ser explicada pela
atrofia da mucosa, submucosa e camadas musculares,
devido à deposição de colágeno e fibrose nessas estruturas
7, causando diminuição das células ganglionares
do plexo mioentérico1. Como conseqüência da
atonia pode surgir impactação das fezes e acúmulo
gasoso, provocando distensão, íleo paralítico e
supercrescimento bacteriano, exatamente como
observado no presente caso. O seguimento atônico atua
como um ponto de obstrução funcional ou de
pseudo-obstrução.
Inicialmente, os laxativos e
procinéticos exercem algum efeito e alguns autores defendem
o tratamento precoce e agressivo com esses
medicamentos10. Porém, com a progressão do quadro, tal
efeito diminui e as drogas geralmente utilizadas
(cisaprida, octreotide e outras) já não apresentam
impacto significativo na doença
avançada11.
Com relação à abordagem terapêutica
mais resolutiva, a maior fonte de dúvida surge no que
diz respeito ao papel da cirurgia. Geralmente, em decorrência da proeminência dos sintomas,
a laparotomia costuma ser indicada e pode
evidenciar fontes de obstrução como aderências,
estenoses verdadeiras e fecalomas. Haque e cols
descreveram um caso de volvo como fonte de obstrução
em paciente com esclerodermia12. Em muitos casos,
a laparotomia pode ter papel diagnóstico e
terapêutico13. Na maioria das vezes, o motivo
da obstrução é um segmento atônico, geralmente
de aspecto fibrosado à macroscopia, como
encontrado neste caso.
A ressecção cirúrgica do segmento atônico
é desencorajada por alguns autores, sob o argumento
de que, na doença avançada e severa, o
envolvimento intestinal é tão extenso que o procedimento
seria inefetivo 2 . Porém, há relatos de que a ressecção
do segmento atônico aumenta a chance de sucesso
do tratamento1. Entretanto, como os pacientes
se apresentam desnutridos e com estado geral comprometido, na maioria das vezes
grandes ressecções são evitadas, optando-se, muitas vezes,
por derivação intestinal. No presente caso,
observou-se melhora significativa da qualidade de vida da
paciente, como relatado por outros autores
1,13. Já a
obstrução mecânica devida à formação de volvos representa
uma emergência cirúrgica
13.
Outra fonte de discussões é acerca do
tamanho do segmento a ser ressecado, não estando
ainda estabelecido se deve ser ressecado somente o segmento atônico que resulta em
pseudo-obstrução ou todo o segmento intestinal acometido
pela esclerodermia14 .
Outros pontos de controvérsia
relacionam-se à resposta modesta ao tratamento cirúrgico e
ao aumento expressivo de morbimortalidade em
muitos casos7,14, além da grande possibilidade de recidivas
ou complicações nos segmentos
remanescentes3,13.
Como muitos pacientes podem apresentar acentuada melhora da qualidade de vida
após intervenção cirúrgica, esta conduta tem sido
considerada como a mais apropriada em pacientes
com quadros obstrutivos ou semi-obstrutivos e
grave comprometimento do estado geral1,11,12.
Conclusão
O acometimento gastrointestinal pela esclerodermia já está bem estabelecido, bem como
os prejuízos que isto acarreta à saúde dos
pacientes, como por exemplo, desnutrição,
diarréia, desidratação, dor abdominal, constipação,
entre outros. Este comprometimento intestinal em
muitos casos simula quadros de obstrução intestinal,
tratando-se na verdade de uma obstrução
funcional ou pseudo-obstrução. A conduta diante destes
casos é controversa, mas a cirurgia tem se tornado
uma opção cada vez mais atraente, pois apesar de
acarretar morbidade e mortalidade consideráveis, há
muitos casos em que ocorre recuperação satisfatória.
No entanto, permanecem indefinidas muitas questões
relacionadas ao melhor momento para a
intervenção cirúrgica, assim como sua tática. São necessários
mais estudos a respeito do papel da cirurgia na esclerodermia intestinal e bom senso do
profissional experiente diante desta situação.
SUMMARY: Scleroderma or progressive systemic sclerosis (PSS) is a self-immune illness of unknown cause that is characterized by fibrosis of the skin, blood vessels and some other tissues like the lungs, heart, kidneys and gastrointestinal system. Attributable symptoms to the gastrointestinal involvement can be present in up to 50% of the patients, esophageal and anorectal manifestations being more frequent. Abnormalities in the intestinal motility frequently lead to malnutrition, bacterial over-growth and intestinal pseudo-obstruction. We report a case of scleroderma with intestinal pseudo-obstruction presenting chronic abdominal cramps, bloating and malnutrition with no response to clinical approach. Patient underwent surgery with diagnosis of intestinal obstruction by annular ileal fibrosis treated by ileocolic bypass. Intestinal injury causing obstruction is rarely described in the literature and therefore the treatment of choice is not yet defined.
Key words: Progressive systemic sclerosis, gastrointestinal scleroderma, intestinal pseudo-obstruction.
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Endereço para correspondência:
Antônio Lacerda Filho
Instituto Alfa de Gastroenterologia
Hospital das Clínicas da UFMG - 2º andar
Avenida Alfredo Balena, 110
30.130-100 - Belo Horizonte (MG)
E-mail: alacerda@ufmg.br
Recebido em 02/01/2006
Aceito para publicação em 23/01/2006
Trabalho realizado no Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG pelo Grupo de Coloproctologia e Intestino Delgado do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da UFMG