RELATO DE CASOS
ABSCESSO PERINEAL POR INGESTÃO ACIDENTAL DE PALITO DE DENTE
ROBERTO IGLESIAS LOPES1, ALEXANDRE CRIPPA SANT'ANNA1, ANDRÉ RONCON DIAS1, ROBERTO NICOMEDES LOPES1, CRISTOVÃO MACHADO BARBOSA FILHO1
1Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio Libanês, São Paulo, Brazil
RESUMO: Palitos de dente são itens domésticos comuns e a maioria das pessoas subestima a gravidade das lesões que podem ocorrer com a ingestão acidental de palitos. Nós apresentamos um caso de abscesso perineal causado pela ingestão de um palito de dente. Um homem de 55 anos apresentou-se com quadro de dor perianal há um mês. Ao exame físico, notou-se abscesso perineal. Leucocitose com desvio à esquerda foi observada e a tomografia pélvica demonstrou um corpo estranho na região perineal. A remoção cirúrgica do corpo estranho e a drenagem adequada do abscesso foram realizadas, revelando um palito de dente. O paciente evoluiu bem após a abordagem cirúrgica. O abscesso perineal pode progredir para gangrena de Fournier e, portanto, a abordagem de abscessos perineais deve ser agressiva, com drenagem adequada e remoção do corpo estranho (sempre que presente).
Descritores: abscesso, corpo estranho, palito de dente.
INTRODUÇÃO
Palitos de dente são itens domésticos
comuns e a maioria das pessoas subestima a gravidade
das lesões que podem provocar através de sua
ingestão acidental. A incidência de lesões relacionadas a
palitos de dente é de aproximadamente 3,6 por
100.000 pessoas por ano, com mais de 8.000 injúrias,
anualmente (1).
RELATO DO CASO
Um homem de 55 anos, previamente hígido, foi admitido em nosso serviço com história de
dor perianal há um mês. Havia sido tratado com
ciprofloxacina e anti-inflamatórios por dez dias, devido
a diagnóstico prévio de abscesso perineal. Relatava
piora da dor perianal e negava melhora do abscesso
apesar da antibioticoterapia.
Ao exame físico, observou-se abscesso
perineal, sem outras alterações. A extensão do edema e
do eritema perineal ao escroto sugeria progressão
da celulite com risco aumentado de evoluir para
gangrena de Fournier. O toque retal não revelou massas
palpáveis, com a presença de fezes normais na ampola retal,
sem sangramentos.
O paciente apresentava leucocitose com desvio à esquerda (13.400 leucócitos com 10% de
bastonetes e 80% de neutrófilos segmentados) e leucocitúria.
A hemoglobina, os eletrólitos, a glicemia e a função
renal do paciente eram normais. Uma tomografia
computadorizada de pelve para avaliar a extensão do
processo inflamatório evidenciou um corpo estranho na
área perineal, de formato linear e hiperdenso (Figura-1).
Figura 1 - Tomografia de pelve demonstrando corpo estranho. |
A remoção cirúrgica do corpo estranho
através de uma incisão perineal com drenagem adequada
do abscesso foi realizada (Figura-2). O objeto
removido era um palito de dente de 3,4 cm ´ 0,2 cm (Figura-3).
Figura 2 - Incisão perineal. |
Figura 3 - Palito de dente. |
O paciente negava a inserção transretal
do objeto. Possuía o hábito de mastigar palitos de
dente, com provável ingestão acidental, a qual não
conseguia lembrar.
O paciente apresentou evolução favorável
com resolução dos sintomas e regressão completa
do processo infeccioso.
DISCUSSÃO
A maioria dos corpos estranhos ingeridos (mais de 70%) consegue atravessar o trato
gastrointestinal sem complicações, com menos de 1% resultando
em perfuração. As manifestações da perfuração
incluem peritonite, abscesso, fístula, hemorragia e
obstrução (2). Essas manifestações podem ser ocasionadas
por outras doenças intra-abdominais
(processos inflamatórios como apendicite, diverticulite,
tumores, entre outras diversas causas) e os pacientes
raramente referem ingestão de corpo estranho, e
conseqüentemente, o diagnóstico pré-operatório de perfuração
por corpo estranho é difícil.
Um corpo estranho pode ser composto por qualquer material e a natureza do material que
o constitui é importante para o diagnóstico. A
madeira, por exemplo, é radiotransparente, enquanto que
vidro e objetos metálicos são radiopacos (4).
Um estudo experimental comparou diversos métodos radiológicos para diagnóstico de
corpos estranhos de madeira (radiografia simples,
ultra-sonografia, tomografia computadorizada e
ressonância magnética). Um palito de dente apresenta-se
da seguinte forma nos seguintes exames: a)
radiografia simples- imagem linear discretamente
hipotransparente; b) ultra-sonografia- imagem linear
hiperecóica, com sombra acústica posterior; c)
tomografia computadorizada- imagem linear hiperdensa;
d) ressonância magnética- imagem linear hipointensa (4).
A sensibilidade, especificidade, o valor preditivo positivo, o valor preditivo negativo e a
acurácia dos exames para detecção de um palito de madeira,
nesse estudo, foram, respectivamente, nessa ordem:
a) radiografia simples-13,6%, 100%, 100%, 53,7%,
56,8%; b) ultra-sonografia- 63,6%, 100%, 100%, 73,7%,
81,8%; c) ressonância magnética- 59,1%, 95,5%, 93,8%,
70,1%, 77,3%; d) tomografia computadorizada- 72,7%,
95,5%, 95%, 78,3%, 84,1% (4).
A partir desses resultados, observa-se que, no caso de corpo estranho radiotransparente como
a madeira, a radiografia simples possui uma sensibilidade baixa, sendo um exame de pouco
valor propedêutico. A ultra-sonografia
apresenta sensibilidade intermediária para objetos de
madeira, porém tem como principais limitações ser
operador-dependente e ter um índice alto de resultados
falso-positivos (cicatrizes e calcificações). A
tomografia computadorizada é provavelmente o melhor
método na avaliação de corpos estranhos de madeira, já
que apresenta maior acurácia. No entanto, é um
exame caro e utiliza radiação ionizante. A ressonância
é relativamente ineficaz na detecção de objetos
de madeira, quando comparada à tomografia computadorizada e à ultra-sonografia, além de
baixa disponibilidade e alto custo. Em nosso caso,
a tomografia computadorizada de pelve detectou corretamente o palito de dente, além de ser útil para
a avaliação do processo
infeccioso/inflamatório adjacente, decorrente da perfuração.
Além da perfuração, a ingestão de palito
de dente pode causar obstrução ureteral, flebite
supurativa, abscesso hepático piogênico, sepse e morte
(2). Portanto, as conseqüências da ingestão acidental
de um palito de dente podem ser extremamente
sérias. 9% de todas as perfurações do trato
gastrointestinal por corpos estranhos resultam da ingestão de
palitos de dente, lápis e outros objetos de madeira (2).
Como resultado, é recomendada a remoção endoscópica
de corpos estranhos pontiagudos sempre que
possível (como palitos de dente).
A ingestão inadvertida de palitos de dente
está associada ao uso de próteses dentárias, deficiência
mental, abuso de álcool e drogas e ao hábito de mastigar palitos.
A impactação de corpos estranhos no
trato gastrointestinal respeita determinadas regiões
anatômicas de estreitamento, possuíndo tendência a
ficar impactadas nos seguintes locais:
esfíncteres esofagianos, piloro, duodeno, válvula íleo-cecal e
na região anal. Os sítios de perfuração são geralmente
o íleo, o apêndice e o cólon. No nosso caso, a
perfuração e a migração do corpo estranho ocorreram após
a impactação do palito na região anal, causando
abscesso perineal.
O abscesso perineal pode progredir para gangrena de Fournier, uma fasceíte necrotizante
que envolve o pênis e o escroto. Conseqüentemente,
o manejo de um abscesso perineal deve ser
agressivo, com drenagem adequada e remoção do corpo
estranho (se presente).
SUMMARY: Toothpicks are a common household item and most people underestimate the seriousness of injuries that can occur with accidental ingestion. We report a case of a perineal abscess caused by an ingested toothpick. A 55-year-old man was admitted to the hospital with a 30-day history of perianal pain. Physical examination was unremarkable, except for a perineal abscess. Leucocytosis with 10% bands was present and pelvic tomography demonstrated a foreign body located in the perineal area. Surgical removal of the foreign body with adequate abscess drainage was performed revealing a toothpick. Perineal abscess may progress to Fournier`s gangrene and as a consequence the management of a perineal abscess should be aggressive with adequate drainage and removal of the foreign body (if present).
Key words: abscess, foreign body, toothpick
Referências Biliográficas
1. Budnick LD: Toothpick-related injuries in the United
States, 1979 through 1982. JAMA. 1984; 252: 796-7.
2. Callon RA Jr, Brady PG: Toothpick perforation of the
sigmoid colon: an unusual case associated with
Erysipelothrix rhusiopathiae septicemia. Gastrointest Endosc. 1990; 36:
141-3.
3. Kattan S, Youssef A: Fournier`s gangrene of the scrotum
following anorectal disorders. Int Urol Nephrol. 1994; 26:
215-22.
4. Venter NG, Jamel N, Marques RG, Djahjah F, Mendonça
LS. Avaliação de métodos radiológicos na detecção de
corpo estranho de madeira em modelo animal. Acta Cir Bras
2005; 20: 19-26.
Endereço para correspondência:
Roberto Iglesias Lopes
Rua Baronesa de Itu, 721 apto 121 - Higienópolis
01.231-001 - São Paulo (SP) - Brazil
Tel/Fax: (11) 3666- 82 66
E-mail: robertoiglesias@terra.com.br
Recebido em 01/11/2005
Aceito para publicação em 31/01/2006
Trabalho realizado na Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio Libanês, São Paulo, Brazil