GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR
A ESTÓRIA BIOMOLECULAR DO PÓLIPO ADENOMATOSO
Mauro de Souza Leite Pinho1
1Disciplina de Clínica Cirúrgica da UNIVILLE e Departamento de Cirurgia do Hospital São José, Joinville, Santa Catarina, SC
RESUMO: Um dos principais objetivos do estudo da biologia molecular é compreender os mecanismos bioquímicos capazes de determinar o comportamento biológico das células em seus respectivos tecidos conforme observado à microscopia e macroscopia. A análise histológica da mucosa colonica normal nos mostra que esta é uma estrutura essencialmente dinâmica, com uma grande rotatividade em suas células, a qual é determinada pela concentração nestas células das proteínas que atuam sobre o controle do ciclo celular. Dentre estas, a proteína APC é aparentemente um elemento chave, promovendo a inibição da ação estimulante sobre as divisões celulares exercida por outras proteínas de grande relevância, como a beta-catenina e a survivina. Além de representar a marca genotípica da polipose adenomatosa familiar, a mutação da proteína APC parece desempenhar uma função de gatilho nos processos de desequilíbrio proliferativo observado no processo neoplásico colorretal, o qual pode variar desde a formação de um pequeno adenoma (ou carcinoma intramucoso) até o desenvolvimento de neoplasias invasivas avançadas. A utilização da imunoistoquímica nos permite demonstrar esta relação entre as concentrações de proteínas e o aspecto histológico, representando uma importante ferramenta para um conhecimento cada vez melhor do processo de carcinogênese colorretal.
Descritores: neoplasia colorretal, biologia molecular, imunoistoquímica
Introdução
Um dos principais objetivos do estudo da biologia molecular é compreender os
mecanismos bioquímicos capazes de determinar o
comportamento biológico das células em seus respectivos
tecidos conforme observado à microscopia e à macroscopia.
Considerando-se que este comportamento biológico é causado principalmente pela interação
entre um grande número de proteínas que são expressas
a partir do próprio DNA celular, compreende-se
que estes estudos visam correlacionar a presença ou
não de determinada(s) proteína(s) com as respectivas
ações celulares ou arranjos estruturais de tecidos.
Tal princípio tem norteado as pesquisas
na biologia molecular do câncer, possibilitando não
apenas a avaliação prognóstica tumoral a partir da análise
do espécime cirúrgico, mas também possibilitando
o desenvolvimento de medicações capazes de influir
no metabolismo tecidual de forma específica como
a atuação sobre receptores de membrana celular
ou bloqueio da angiogênese.
Um dos aspectos mais característicos do
câncer colorretal é apresentar-se na maior parte dos
casos como o resultado de um processo evolutivo a partir
de pólipos neoplásicos da mucosa colônica,
inicialmente de natureza benigna e não invasiva, denominados
como adenomas ou carcinomas intramucosos,
dependendo da classificação adotada pelo médico patologista.
Na verdade, esta evidente evolução de
uma mucosa normal até o surgimento de um
carcinoma invasivo passando por um espectro de
alterações morfológicas microscópicas e
macroscópicas possibilitou o desenvolvimento de uma das
principais bases do estudo da biologia molecular do câncer,
em especial devido à existência da polipose
adenomatosa familiar, doença na qual estas alterações podem
ser observadas em grande volume e em diferentes
estágios coexistentes em um mesmo paciente.
Entretanto, antes da análise das
anormalidades ocorridas na mucosa intestinal torna-se necessária
a compreensão de que a mucosa colônica, assim
como os epitélios em geral, são tecidos dotados de
uma dinâmica especial bastante ativa, a qual tem como
base a necessidade de reposição constante de novas
células em sua superfície afim de substituir aquelas
perdidas em um contínuo processo de autodestruição
pela apoptose.
Visando fornecer subsídios para uma
melhor compreensão dos pólipos adenomatosos intestinais
e sua participação no processo de surgimento do
câncer colorretal, o objetivo deste texto será apresentar
alguns aspectos referentes ao estado atual dos estudos
da correlação entre os achados histológicos
e biomoleculares observados em sua estrutura,
quando comparada àquela existente em uma mucosa normal.
A dinâmica normal da mucosa intestinal
Conforme demonstrado na Figura 1, a mucosa colônica é composta por criptas dispostas de
forma vertical, paralelas entre si e entremeadas por um
tecido denominado como lâmina propria. Inferiormente
à linha correspondente ao posicionamento das bases
das criptas iremos observar a camada muscular da
mucosa, abaixo da qual encontraremos na submucosa um
tecido rico em vasos sanguíneos e linfáticos.
Figura 1 - O epitélio colônico normal |
As criptas e sua atividade proliferativa
A análise mais detalhada da histologia
destas criptas nos mostrará que suas células apresentam
um padrão característico, o qual pode ser
melhor compreendido a partir de uma hipotética
subdivisão em três áreas distintas, conforme demonstrado
na Figura 2:
Figura 2 - A atividade proliferativa da cripta normal |
a. Zona proliferativa 1 _ Situada na parte mais inferior das criptas, as células desta região
apresentam-se predominantemente ainda indiferenciadas, sem
o aspecto característico das células da mucosa
intestinal, com ausência de células caliciformes em
conseqüência de uma baixa produção de muco. Do ponto de
vista proliferativo, estas células apresentam uma
elevada freqüência de mitoses e ausência de
apoptoses, demonstrando sua importante função na produção
de novas células, as quais irão progressivamente
ascender ao longo da cripta em direção à superfície da mucosa.
b. Zona proliferativa 2 - Ocupando predominantemente a região média da
cripta, observamos nesta zona células com padrão
histológico típico dos colonócitos, com produção de
muco representada pela presença de múltiplas
células caliciformes e a polaridade dos núcleos dispostos
de forma uniforme na base das células, próximo à
sua fixação à membrana basal. Em relação à
atividade proliferativa, esta persiste de forma ativa, sendo
ainda encontrado um alto número de mitoses e ausência
de morte celular apoptótica.
c. Superfície epitelial _ Nesta região
mais superficial da cripta, junto à luz intestinal,
iremos observar ainda a presença de colonócitos
típicos, embora com redução gradual da produção de
mucina. O achado mais importante nesta região, no entanto, é
a presença de uma inversão do padrão
proliferativo celular em relação àquele observado na base da
cripta, com acentuada redução da atividade mitótica e
a ocorrência de morte celular programada (apoptose)
em um grande número de células, seguida de
descamação para a luz intestinal.
Ao analisarmos em conjunto estas três
regiões, compreendemos que ocorre uma atividade
dinâmica permanente nas criptas intestinais, caracterizada
pelo surgimento de novos colonócitos na base da cripta,
a partir das células indiferenciadas (células tronco),
os quais irão sofrer um processo de maturação gradual
ao longo de sua ascensão até atingir a luz intestinal.
Tendo completado esta evolução de forma completa,
durante a qual esteve exposta aos agentes agressores
deste epitélio e o conseqüente risco de lesão em seu
DNA nuclear, esta célula irá desencadear o processo de
auto-destruição não inflamatório característico da
apoptose que levará à sua descamação na luz intestinal.
Durante este período, não deverá ocorrer qualquer atividade
de divisão celular a fim de evitar o surgimento de
uma linhagem de células-filhas capazes de herdar
eventuais mutações em seu DNA.
Estima-se que este ciclo de surgimento, maturação e morte das células nas criptas ocorra
em um período compreendido entre três a oito dias, e
que em conseqüência disto o epitélio colônico sofra
um processo de renovação a cada três a quatro dias.
Pólipos adenomatosos: o distúrbio proliferativo
O surgimento dos pólipos adenomatosos, também descritos como carcinomas intramucosos
pelos defensores da classificação japonesa, é
conseqüência de uma alteração da dinâmica proliferativa em
relação à mucosa normal, conforme descrito acima.
Nestes casos, pode-se observar à
microscopia um crescimento da zona proliferativa 1,
ocorrendo então uma perda progressiva do padrão
característico da zona proliferativa 2 com a conseqüente
substituição dos colonócitos normais por células
pouco diferenciadas e redução acentuada da produção
de mucina, como demonstrado na Figura-3.
Figura 3 - O distúrbio proliferativo no pólipo adenomatoso |
Além deste crescimento da zona
proliferativa com um aumento do número de mitoses e
o conseqüente surgimento de novas células, uma
outra alteração irá ocorrer na extremidade superior da
cripta, onde iremos observar uma redução do número
de apoptoses (Figura-4).
Figura 4 - Alterações proliferativas no pólipo adenomatoso |
Como conseqüência destas duas
alterações proliferativas simultâneas caracterizadas por uma
maior produção de novas células na cripta e redução da
morte celular epitelial, iremos observar um
progressivo acúmulo destas células ao nível da superfície
mucosa (Figura-5), inicialmente evidenciado apenas
à microscopia. A progressão deste acúmulo
celular conseqüente ao desequilíbrio proliferativo
irá finalmente dar origem a um pólipo
macroscopicamente identificável através de exames endoscópicos.
Figura 5 - Acúmulo de células epiteliais na formação do polipo adenomatoso |
Os mecanismos biomoleculares do equilíbrio proliferativo
Conforme dito anteriormente, as atividades celulares são determinadas pela ação de proteínas,
as quais podem atuar a partir de sua presença no
interior da célula ou mediante contato externo a esta,
com receptores existentes em sua membrana, os quais,
por seu turno, podem desencadear efeitos
intracelulares através de uma seqüência de reações em cascata.
O grande número de estudos a respeito
dos aspectos biomoleculares do câncer colorretal e
seus precursores tem permitido a identificação de
diversas proteínas, as quais exercem um importante
controle sobre a atividade proliferativa das células da
mucosa colônica.
Para melhor compreensão dos mecanismos biomoleculares responsáveis pelo equilíbrio
proliferativo desta mucosa, faremos a seguir uma
breve revisão de algumas proteínas consideradas
como principais controladoras do ciclo celular:
Proteína APC: o fio da meada
Um achado de grande relevância para a compreensão da biologia molecular do
câncer colorretal foi a identificação de uma proteína
cuja alteração é considerada como um "gatilho" para
o surgimento de distúrbios proliferativos na
mucosa colônica, sejam estes no estágio de
pólipos adenomatosos ou carcinomas invasivos. Por ter
sido inicialmente identificada em pacientes portadores
de polipose adenomatosa familiar, esta proteína,
assim como seu respectivo gene, foi denominada como
APC (Adenomatous poliposis coli). Estudos
posteriores confirmaram que mutações desta proteína APC
estão presentes em cerca de 80% dos adenomas em
fase inicial, mesmo em pacientes não portadores de
polipose familiar, sendo esta mutação considerada hoje como
a alteração mais precoce no processo de
carcinogênese da mucosa colônica, motivo pelo qual é a ela
atribuída a função de "guardiã" ("gatekeeper").
Embora as diversas funções da proteína
APC estejam ainda em fase de melhor definição,
existem fortes evidências de que estas são relacionadas a
dois aspectos principais: adesão e proliferação celular.
Em relação à sua participação no
equilíbrio proliferativo da mucosa colônica, a proteína
APC exerce, em condições normais, uma importante
função supressora através da inibição da divisão
celular. Considerando-se a dinâmica do epitélio
colônico apresentado acima, torna-se então compreensível
a demonstração por diversos autores de uma
elevada concentração da proteína APC na parte alta das
criptas, e sua ausência nas células situadas na base destas.
Esta disposição tecidual é portanto bastante compatível
com a elevada proliferação na base das criptas e com a
morte celular observada na superfície epitelial.
Para melhor compreender o mecanismo pelo qual a proteína APC atua na inibição da divisão
celular, torna-se necessário o conhecimento sobre
outra proteína de grande relevância no controle
proliferativo do epitélio colônico, denominada como beta-catenina.
Beta-catenina: o estímulo à divisão celular
Um crescente número de estudos tende a atribuir a esta proteína uma função central no
equilíbrio proliferativo da mucosa colônica e, por extensão,
ao próprio mecanismo da carcinogênese colorretal.
Tais conceitos representam uma mudança
em relação à impressão inicial de que a função da
beta-catenina restringia-se à adesão entre células,
motivada por sua participação em um complexo no
qual representava um elemento de ligação com uma
proteína transmembrana, denominada como e-caderina.
Estudos mais recentes, no entanto, demonstram que além
desta forma relacionada à membrana, a beta-catenina
pode ainda ser observada em uma forma livre no
citoplasma e ainda no interior do núcleo. Além disto,
foi demonstrado que a redução dos níveis celulares
da proteína APC está associada a uma elevação
da concentração nuclear da beta-catenina, a qual, por
seu turno, representa um importante estímulo à
divisão celular. Este estímulo proliferativo é conseqüência
da ação positiva da beta-catenina para a expressão
nuclear de outras proteínas que desempenham um
importante papel na divisão celular, como a ciclina D1, gastrina,
c-myc, COX-2 e MMP-7, sendo estas duas
últimas claramente relacionadas à angiogênese e à
invasão estromal, respectivamente.
Survivina
Esta é outra proteína cujo papel no
controle do ciclo celular na mucosa colônica e no
mecanismo de carcinogênese colorretal vem ganhando
uma crescente relevância. Sua função está relacionada
ao controle do ciclo celular, no qual desempenha uma
ação inibidora da apoptose, conferindo à célula
portanto uma sobrevida mais prolongada. Assim sendo,
é perfeitamente compreensível a observação em
estudos de imunoistoquímica da mucosa colonica normal
de uma presença expressiva da survivina nos
colonócitos situados na base da cripta intestinal, onde a
atividade proliferativa é intensa e sua ausência nas
células situadas na porção superior da cripta, onde a
apoptose torna-se necessária para o equilíbrio tecidual.
Assim como a beta-catenina, a expressão celular de
survivina é também inibida pela presença da proteína
APC, embora não esteja ainda bem definido o
mecanismo relacionado a esta ação repressora.
Resumindo, podemos ver então que a
mucosa colonica é uma estrutura essencialmente dinâmica,
com uma grande rotatividade em suas células, a qual
é determinada pela concentração nestas células
das proteínas que atuam sobre o controle do ciclo
celular. Neste sentido, a proteína APC é aparentemente
um elemento chave, promovendo a inibição da
ação estimulante sobre as divisões celulares promovidas
pela beta-catenina e pela survivina.
A utilização da imunoistoquímica nos
permite demonstrar esta relação entre as concentrações
de proteínas e o aspecto histológico, representando
uma importante ferramenta para um conhecimento cada
vez melhor do processo de carcinogênese colorretal.
SUMMARY: One of the main objectives of molecular biology studies is the understanding of biochemical mechanisms which will ultimately contribute to biological behavior of tissues as observed by macroscopic or microscopic analysis. Hystological examination of normal colonic mucosa shows a relevant cellular turnover, determined by local concentration of proteins related to circle cell control. Among these proteins, APC seems to be a key element, promoting inhibition of other important circle cell stimulating proteins as beta-catenin and survivin. Thus, besides its role as genotypic landmark in familiar polipose patients, there are several strong evidences that APC acts in a trigger function in proliferative disorders of colonic mucosa from small adenomas to advanced infiltrative carcinomas. The current use of immunohystochemistry has provided relevant information of this close relationship between cellular protein profile and histological findings and have contributed to an improved comprehension of colorectal cancer carcinogenesis.
Key words: colorectal neoplasm, molecular biology, immunohystochemistry
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Endereço para correspondência:
Mauro Pinho
Rua Palmares,380
89203-230 Joinville - SC
Recebido em 04/05/2006
Aceito para publicação em 04/06/2006
Trabalho realizado na Disciplina de Clínica Cirúrgica da UNIVILLE e Departamento de Cirurgia do Hospital São José, Joinville, Santa Catarina, SC