GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR
PESQUISA EM BIOLOGIA MOLECULAR: COMO FAZER?
Molecular Biology Research - How to do it?
Mauro de Souza Leite Pinho - TSBCP
RESUMO: O estudo da biologia molecular representa hoje uma das áreas de maior potencial para a realização de pesquisas em Medicina e um número cada vez maior de profissionais de saúde tem se interessado em aprofundar seus conhecimentos e produção científica, mediante a realização de projetos de pesquisa nesta área. Entretanto, a elaboração do projeto de pesquisa necessita ser realizada de forma bastante cuidadosa, considerando a grande amplitude dos potenciais objetivos e metodologias a serem utilizadas, dependentes em grande parte da disponibilidade de recursos tecnológicos e experiência prévia da equipe. O objetivo deste trabalho é contribuir para esta elaboração do projeto de pesquisa através da apresentação de alguns modelos estruturais mais freqüentemente utilizados na realização de estudos em biologia molecular, assim como rever seus princípios e métodos empregados.
Descritores: Pesquisa, biologia molecular.
O estudo da biologia molecular representa hoje uma das áreas de maior potencial para a realização
de pesquisas na área médica, considerando-se não
apenas sua grande relevância clínica e epidemiológica,
mas também pela possibilidade de aplicação de
ferramentas recentemente desenvolvidas a um número
bastante amplo de doenças.
Em conseqüência do grande interesse
despertado por esta área, observa-se um número cada
vez maior de profissionais da área de saúde motivados
em aprofundar seus conhecimentos e produção
científica, mediante a realização de projetos de pesquisa, os
quais de alguma forma utilizem conceitos e
procedimentos relacionados á biologia molecular.
Entretanto, já aos primeiros passos neste
caminho o candidato a pesquisador defronta-se com
questões bastante complexas referentes não apenas à
escolha do tema a ser estudado, mas principalmente
á definição de seus objetivos gerais, específicos ou
mesmo aos recursos adequados e/ou disponíveis para
a execução de sua metodologia.
Assim sendo, o objetivo deste texto será
apresentar uma breve revisão de conceitos básicos sobre
a biologia molecular, confrontando-os com a
respectiva seqüência de potenciais áreas e metodologias de
pesquisa.
Biologia molecular: o que é ?
Até algumas décadas atrás, o estudo dos
tecidos vivos baseava-se quase que exclusivamente
em observações de natureza morfológica, fossem estas
a nível macroscópico ou microscópico. Desta forma,
a análise das alterações ocorridas na intimidade
destes tecidos poderiam ser identificadas apenas mediante
a constatação de seus efeitos sobre sua estrutura, a
qual iria apresentar modificações em sua forma,
tamanho, aparência e outras variáveis.
O grande e acelerado desenvolvimento da tecnologia permitiu que estes mesmos tecidos
fossem posteriormente analisados em seu
conteúdo submicroscópico, ou seja, através da identificação
das moléculas que os compõem pela aplicação de
métodos químicos ou físicos.
O grande salto de conhecimento ocorrido nesta área foi proporcionado pelos trabalhos pioneiros
de Watson e Crick, na década de 50, os quais, ao definir
a estrutura química da molécula de DNA,
estabeleceram a principal diferença entre os seres vivos e a
matéria inanimada.
A partir deste achado, sucedeu-se uma
seqüência de descobertas que demonstrou que esta
molécula representava o elemento primordial, a partir do
qual poderíamos compreender as principais
características dos seres vivos. Nascia a
biologia molecular.
Vida, DNA, genes, proteínas
A identificação da molécula de DNA
possibilitou uma melhor compreensão do ciclo finito da
vida, descrito como o intervalo entre os processos de
nascimento e morte, e mantido através de um constante
funcionamento baseado na ação de moléculas, a qual
seria o elemento básico das transformações
morfológicas observadas de forma peculiar em cada ser vivo no
reino animal ou vegetal.
Para melhor analisarmos o impacto destas descobertas, consideremos como elemento vivo uma
única célula, mínimo organismo capaz de realizar as
tarefas inerentes á vida como captação de energia e
o metabolismo interno necessário durante o seu ciclo
de existência.
Os estudos bioquímicos nos trouxeram o
conhecimento de que as principais moléculas responsáveis
pela realização destas tarefas são as
proteínas. Estas macromoléculas, compostas por seqüências
de aminoácidos, representam a maior parte de matéria
seca de uma célula. Além de auxiliar a compor sua
estrutura, as proteínas realizam praticamente todas as
funções celulares, como enzimas, transporte, transmissão de
sinais, recepção de estímulos e até a regulação da
ativação de genes para a produção de outras proteínas.
Estima-se hoje que cada célula necessite
para seu funcionamento vital de cerca de 10 000
proteínas diferentes, cada uma delas desempenhando uma
tarefa específica.
Estas proteínas, como sabemos, são
produzidas a partir de segmentos de seqüências gênicas
no DNA, através da qual se estruturam moléculas
de RNA, descritas como mensageiras (RNAm).
Estas moléculas irão migrar a partir do DNA nuclear para
os ribossomos, no citoplasma, onde, através de
ligações com outra forma de RNA (descrito como
transportador), irão realizar a síntese das proteínas mediante
o encadeamento seqüencial de aminoácidos.
Poderíamos então sumarizar esta seqüência de eventos da
seguinte forma:
|
Estruturando um projeto de pesquisa em biologia molecular
Utilizando os conceitos acima revistos, discutiremos a seguir três tipos de projetos
mais freqüentemente utilizados em biologia molecular:
1º tipo: Pesquisar no DNA de um
indivíduo saudável o risco de desenvolver uma
doença de caráter hereditário
Esta é certamente um dos tipos de projetos
de pesquisa mais realizados, representando a base do
estudo das doenças genéticas. Como exemplo
clássico na área da Coloproctologia para este modelo de
estudo, podemos citar a necessidade de identificar se
um membro de uma família de um paciente portador
de polipose adenomatosa familiar terá ou não o risco
de desenvolver a mesma doença. Neste caso,
sabemos que o gene responsável pela ocorrência desta
doença é dominado como APC, cuja função é codificar
uma proteína relacionada ao controle da
atividade proliferativa da célula intestinal.
Para realizar este estudo, precisamos responder às seguintes perguntas:
· A seqüência deste gene APC em um
DNA normal (sem mutações) já é conhecida ?
Sim, como a maior parte dos genes de relevância clínica, sua seqüência já é publicamente
disponível em bases de dados facilmente acessíveis
pela Internet;
· Já foi identificada a mutação existente
no paciente portador da polipose ?
Provavelmente não. Neste caso, teremos
necessariamente que fazer um sequenciamento de
todo o gene APC deste paciente, em qualquer célula
normal somática (ou seja, excluindo óvulos e
espermatozóides), pois ao se tratar de uma mutação (também
chamada de polimorfismo) provavelmente herdada
geneticamente, esta deve estar necessariamente
universalmente presente. Para esta finalidade, utiliza-se
mais freqüentemente as células sanguíneas, cujo DNA
é extraído.
Para realizar esta avaliação da seqüência
de todo o gene, necessitaremos utilizar
seqüenciadores eletrônicos, os quais nos permitirão determinar a
seqüência de bases nitrogenadas (adenina,
citosina, guanina e timina) no segmento desejado,
conforme demonstrado na figura 1, e compará-la com a
seqüência previamente conhecida.
Figura 1 - Sequenciamento do DNA. |
Este é um procedimento ainda disponível
em poucos centros, demorado e de alto custo,
especialmente se considerarmos que o gene APC é bastante longo, contendo 8535
pares de bases nitrogenadas. Caso este exame seja possível, e tenha sido
possível identificar uma mutação em algum segmento (como uma troca de uma
adenina por timina, por exemplo), então estaremos aptos a prosseguir em nosso
estudo.
· Como saber se um familiar
assintomático apresenta a mesma mutação em seu DNA ?
Para isto, bastar extrair o DNA de algum tecido celular deste paciente (sangue, esfregaço da
bochecha, etc) para pesquisar se esta mutação
estará presente. Como neste caso já sabemos onde e qual
a mutação a ser procurada, não necessitamos fazer
um sequenciamento novamente. Para isto, podemos
apenas utilizar uma técnica de amplificação do DNA
denominada como reação em cadeia pela
polimerase (PCR), a qual irá permitir a replicação
in vitro em larga escala apenas do segmento de DNA desejado,
ou seja, aquele no qual está contida a seqüência que
apresentou a mutação no familiar doente.
Caso o laboratório disponha de aparelhos
de PCR mais modernos (real-time PCR) esta
identificação e mensuração dos segmentos a serem
examinados poderá ser realizada eletronicamente, no
chamado tempo real. Caso o aparelho de PCR não
disponha deste recurso, o produto de sua amplificação
deverá ser identificado posteriormente em gel
de eletroforese (Figura 2). Como qualquer alteração
na seqüência de DNA implicará uma alteração de
seu peso molecular, será possível observar se a
seqüência do segmento gênico examinado está íntegra
ou não, pois o peso molecular do segmento normal é
conhecido (Figura 3).
Figura 2 - Gel de agarose contendo dez amostras teciduais, nas quais fragmentos de DNA podem ser identificados através de seu posicionamento decorrente de seu peso molecular. | Figura 3 - Eletroforese em gel de fragmentos de DNA. Observe que a alteração na banda mais inferior do DNA do tecido a ser estudado revela uma provável mutação em relação ao fragmento normal correspondente ao peso molecular de 1000 pb (pares de bases). |
Este tipo de estudo é, portanto, utilizado
quando desejamos conhecer a existência de uma
alteração genética, hereditária ou não, e é usualmente
descrito como pesquisa de polimorfismos.
2º tipo: Pesquisa de DNA estranho ao indivíduo em um tecido
Este tipo de estudo, de grande relevância
na esfera da infectologia, é semelhante a este último
apresentado acima, com a diferença de que o
segmento de DNA pesquisado no tecido do indivíduo não é
uma variação de uma seqüência gênica humana
normal, mas uma seqüência presente exclusivamente em
um determinado ser vivo de outra espécie, seja este
um vírus ou bactéria, denotando assim a sua
presença anômala.
Como exemplo, vamos definir como nossa hipótese que a ileite em um paciente portador de
diarréia é causada pela presença de uma infecção por
Yersinia enterocolitica. Neste caso, como poderemos utilizar
as ferramentas da biologia molecular para fazer este
diagnóstico ?
· Extração do DNA a partir de uma
biópsia do íleo terminal colhida por colonoscopia
Trata-se de um procedimento bioquímico
relativamente simples, podendo ser realizado por
laboratórios bem equipados com pessoal treinado.
· Pesquisa do DNA da Yersinia através
de PCR
Neste caso, a técnica de reação em cadeia
pela polimerase deverá incluir, além do DNA ileal
extraído, pequenas seqüências (denominadas como
primers) previamente preparadas para amplificar apenas
um segmento conhecido do DNA da Yersinia.
Se neste tecido houver DNA da Yersinia, mesmo em mínima quantidade, este será amplificado e
identificado pelo PCR (em tempo real ou no gel de eletroforese), gerando um resultado preciso e sem
necessidade de realização da cultura, nem sempre
disponível.
Embora tenhamos utilizado um exemplo referente a tecido intestinal, exames análogos de
identificação de DNA extrínseco podem também ser
realizados em outros tecidos, incluindo o sangue circulante, o que é feito com grande freqüência,
por exemplo, no diagnóstico de infecções
virais sistêmicas.
3º tipo: Determinação do
comportamento biológico de um tecido tumoral
Este é o principal objetivo de muitos
estudos em biologia molecular, destacando-se aqueles
referentes à área oncológica, e é descrito como análise
da expressão gênica tecidual.
Através desta análise, podemos
compreender as funções de cada proteína mediante a correlação
entre sua expressão tecidual e diferentes parâmetros
clínicos e anatomo-patológicos observados, como grau
de diferenciação tumoral, potencial metastático,
resposta à terapêutica, intensidade de processos
inflamatórios, prognóstico etc.
Como o comportamento biológico de uma
célula ou um tecido, seja ele normal ou patológico,
será determinado pela presença e concentração das
proteínas existentes em seu interior, os métodos
anteriormente citados para determinar a seqüência
gênica no DNA não se aplicam neste caso, pois todos
os genes deverão estar presentes em todas as
células somáticas de nosso corpo, independentemente de
serem ou não ativados para a produção de sua
respectiva proteína. Desta forma, o gene da insulina,
por exemplo, se mostrará presente e íntegro em
células como neurônios ou linfócitos, embora não ocorra
sua ativação (expressão) visando à produção desta
proteína nestas células.
Assim sendo, toda célula, seja ela um
organismo independente como uma bactéria ou
integrante de um grande organismo multicelular como
um hepatócito ou célula tumoral, terá suas funções
realizadas pela ação de milhares de proteínas
distintas, formadas a partir de um número equivalente
de RNAs mensageiros, os quais foram produzidos sobre os respectivos genes em seu DNA. Assim
sendo, podemos estudar o comportamento biológico
de cada célula através da determinação do estado
funcional e integridade de uma proteína ou um
conjunto delas.
É importante destacar que, ao contrário
dos estudos anteriores, em que o foco estava sobre o
código genético do indivíduo e portanto presente em
qualquer célula somática, neste caso necessitaremos
fazer a análise biomolecular específica do tecido a ser
estudado, seja ele um tumor, um processo inflamatório,
ou mesmo um tecido normal cuja atividade celular
fisiológica necessite ser esclarecida.
Para esta avaliação, dispomos de duas
abordagens distintas, a saber:
1. Pesquisa do RNAm de uma determinada proteína
Considerando a seqüência: DNA à RNAm à Proteína,
podemos concluir que, ao contrário da seqüência
gênica do DNA, a qual estará presente em todas as
células somáticas, seu respectivo RNA mensageiro
(RNAm) somente estará presente em um tecido no qual
tenha havido a ativação deste gene específico visando a
produção de sua respectiva proteína.
Para identificarmos a presença deste
RNAm, necessitamos inicialmente extrair, por meios bioquímicos, todo o RNA do tecido a ser analisado.
Em seguida teremos que, através de reações químicas
que utilizem uma enzima denominada como
transcriptase reversa, reverter a transcrição deste RNAm em
DNA novamente (em segmentos denominados como
cDNA ou DNA complementar), os quais poderão
ser quantificados, segundo o método de PCR descrito
acima. Caso possamos identificar a presença deste,
então iremos demonstrar que sua respectiva proteína
está sendo produzida naquele tecido, pois foi formado a
partir de um RNAm já existente. Este método de análise
de expressão gênica é denominado como RT-PCR (RT
= reverse transcriptase) e apresenta a vantagem
de permitir a avaliação das proteínas produzidas
naquele tecido, possibilitando uma análise do
perfil genômico tumoral.
Uma aplicação mais sofisticada deste
procedimento é denominada como
microseqüência
(microarrays), para a qual são utilizados os
chamados `microchips', possibilitando a identificação
simultânea de milhares de genes que estão
sendo ativados (ou não) no DNA daquele tecido. Este
método, embora venha sendo aplicado cada vez
mais em laboratórios avançados de pesquisa, é ainda
bastante complexo para sua utilização em bases
clínicas.
2. Pesquisa da proteína propriamente
dita no tecido
Para correlacionar o comportamento
biológico de um tecido diretamente com as proteínas ali
expressas dispomos de dois procedimentos mais freqüentemente utilizados. O primeiro deles é
a imunohistoquímica, já revista recentemente nesta
Seção, a qual nos permite a visualização
in loco da proteína em questão em um corte do tecido após sua
reação com um anticorpo específico, como
demonstrado na Figura 4.
a | b |
Figura 4 - Cortes histológicos de tecido tumoral (câncer colorretal) pela coloração convencional em (a) e imunohistoquímica em (b), na qual podemos observar a presença de proteína p53 (coloração acastanhada). |
A imunohistoquímica apresenta grandes
vantagens, como sua maior disponibilidade em
laboratórios de anatomia patológica, baixo custo, a
possibilidade de identificação do posicionamento da proteína no
tecido (nuclear, citoplasmática, etc) ou a intensidade
de sua presença através do grau de coloração. Por
outro lado, apresenta-se pouco adequada à análise
estatística devido ao forte componente subjetivo
na quantificação dos resultados durante a observação
das lâminas.
Outra forma de demonstrar a presença de uma determinada proteína a ser estudada em um
determinado tecido é através da técnica
conhecida como Western blotting. Este método consiste
na extração bioquímica de um
pool, contendo todas as proteínas presentes no tecido, sendo estas
posteriormente separadas por um processo de
eletroforese. Feito isto, a identificação de uma determinada
proteína naquele tecido poderá ser feita através da
adição de um anticorpo específico e sua
demonstração através de corante, conforme demonstrada na
Figura 5.
Figura 5 - Técnica de Western-Blotting. Observa-se na avaliação de duas amostras (2 e 3) a presença de uma banda de peso molecular correspondendo a 100 kDa, demonstrando a existência da proteína pesquisada no presente espécime. (Extraído de www.upstate.com) |
Assim sendo, o conhecimento destes tipos mais freqüentes de estruturas de pesquisa em
biologia molecular representa, na verdade, a primeira etapa
na elaboração de um projeto, pois baseia-se na
disponibilidade de equipamentos e experiência de cada
laboratório, devendo ser então o resultado de uma
perfeita integração entre o pesquisador clínico e o grupo de
profissionais que atuam neste, incluindo outros
profissionais da área de saúde, como biologia, bioquímica e
farmácia.
Uma vez definidos os recursos disponíveis e
a estrutura do projeto, restará ao pesquisador
enfrentar outra etapa bastante complexa, referente à
definição dos elementos biomoleculares a serem estudados.
Discutiremos esta delicada etapa em um próximo
número desta seção.
ABSTRACT: Molecular biology studies are presently regarded as a major source for research in Medicine, and an increasing number of medical professionals are interested in improving their knowledge and scientific production in this subject. However, structuring the research project may become a difficult challenge due to the wide range of methods and techniques available in this area, most of them depending on existing technological facilities and personal skill. The aim of this study is to contribute for the task of setting up a research project by presenting a brief review of most used structure models in molecular biology studies as well as its related principles and methods.
Key words: Research, Molecular biology.
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2005;25:188-91.
Endereço para correspondência:
Mauro Pinho
Rua Palmares, 380
89.203-230 - Joinville (SC)
Recebido em 01/06/2006
Aceito para publicação em 08/08/2006
Trabalho realizado na Disciplina de Clínica Cirúrgica - Univille - Joinville - SC - Brasil.