RELATO DE CASOS
NECROSE PELVI-PERINEAL PÓS-RADIOTERAPIA PARA CÂNCER DE PRÓSTATA: RELATO DE CASO
Perineal Necrosis Following Radiotherapy for Prostate Cancer: Case Report
Paulo Gustavo Kotze 1; Juliana Ferreira Martins 2; Guilherme Vasconcelos Sella3; Juliana GonÇalves Rocha 4; Eron FÁbio Miranda 5
1 Chefe do Serviço de Coloproctologia do Hospital Universitário Cajuru - PUCPR; 2 Residente do Serviço de Coloproctologia do Hospital Universitário Cajuru - PUCPR; 3 Residente do Serviço de Cirurgia Geral do Hospital Universitário Cajuru - PUCPR; 4 Membro do Serviço de Coloproctologia do Hospital Universitário Cajuru - PUCPR; 5 Membro do Serviço de Coloproctologia do Hospital Universitário Cajuru - PUCPR.
Resumo: Cerca de 75 % dos pacientes irradiados para o tratamento do câncer de próstata desenvolverão sintomas proctológicos, como urgência, dor retal, tenesmo e sangramento. O objetivo deste relato é descrever a ocorrência de necrose pelvi-perineal difusa associada à radioterapia para câncer de próstata, já que casos semelhantes não foram encontrados na literatura. Descreve-se o caso de um paciente de 77 anos, com adenocarcinoma de próstata, que realizou radioterapia pélvica de 70 Gy como tratamento. Após 4 meses, identificou-se extensa lesão ulcerada de parede anterior do reto, extendendo-se superiormente até a junção retossigmoideana, com diagnóstico de proctite actínica, sem identificação de malignidade. O paciente desenvolveu necrose da pele perineal, próstata, reto e musculatura do assoalho pélvico, que foi tratada com colostomia e extenso debridamento. Apresentou boa evolução pós-operatória e realizou tratamento com oxigenoterapia hiperbárica para cicatrização da ferida. A prevenção parece ser a melhor forma de tratamento de lesões actínicas em órgãos pélvicos. Pacientes submetidos a altas doses de irradiação encontram-se em risco real de desenvolvimento de lesões mais graves.
Descritores: Necrose, Períneo, Radioterapia, Neoplasias, Próstata.
INTRODUÇÃO
A radioterapia é uma das modalidades
terapêuticas mais importantes no tratamento do câncer
1. Na pelve, é usada em casos de neoplasias malignas de
próstata, bexiga, colo do útero, reto e canal anal
2,3. É possível minimizar a exposição dos tecidos sadios
adjacentes à radiação pela anatomia favorável da região
(proteção dos órgãos intra-abdominais), para se evitar
lesões actínicas 1. O reto é o órgão mais afetado no
tratamento radioterápico das neoplasias nesta topografia
1,2.
Cerca de 75 % dos pacientes irradiados na pelve desenvolverão sintomas proctológicos, como
urgência, dor retal, tenesmo e sangramento
2. A proctite crônica pode surgir até dois anos após o
tratamento, geralmente na forma de sangramento, com
incidência de 3 a 20% dos casos
4,5. Pode apresentar-se também com os mesmo sintomas da doença aguda, e mais
raramente, com fístulas e estenoses.
Outras estruturas pélvicas, como a
musculatura do assoalho pélvico, esfíncteres anais, próstata e
pele podem ser afetadas pela radiação. A necrose é
um evento raro, sendo poucos os casos descritos. Os
relatos mais comuns são de necrose do reto isolada
6,7. O objetivo deste relato é descrever a ocorrência de
necrose pelvi-perineal difusa associada à radioterapia para
câncer de próstata, já que casos semelhantes não
foram encontrados na literatura.
RELATO DO CASO
I.A.Z., 77 anos, masculino, branco, natural de Joaçaba - SC, procedente de Curitiba _ PR. Deu
entrada no Ambulatório de Coloproctologia do
Hospital Universitário Cajuru, em janeiro de 2007, com
queixa de sangramento abundante por via anal, dor
pélvica profunda e tenesmo com 30 dias de evolução. A
dor era de forte intensidade, o que o impedia de
sentar-se. Apresentava diarréia sanguinolenta, cerca de 3 a
4 episódios por dia, associada a antecedentes de
distúrbios urinários. Tratado por 20 anos de
hiperplasia prostática benigna. Foi diagnosticado em 2004
com adenocarcinoma de próstata. Em maio de 2005 foi
submetido à orquiectomia bilateral e cistostomia.
Iniciou radioterapia em junho de 2006 com término em
setembro de 2006. A dose total de radiação foi de 70
Gy, aplicada com acelerador linear de 4 mV. Em
tratamento clínico para hipertensão arterial, negava outras
patologias. Negava etilismo ou tabagismo. Negava
história familiar prévia de qualquer tipo de câncer.
Referia história de angioplastia de artérias coronárias há 7 anos.
Ao exame apresentava-se em mal estado geral, palidez muco-cutânea, abdome escavado,
com cistotomia suprapúbica sem complicações.
Apresentava inspeção normal ao exame proctológico. Ao
toque retal apresentava extensa massa endurecida na
parede anterior do reto, superfície irregular,
acompanhado de extrema dor. A retossigmoidoscopia rígida não
foi realizada por este motivo.
O paciente foi encaminhado para colonoscopia, que demonstrou extensa lesão ulcerada de parede
anterior do reto, extendendo-se superiormente até a
junção retossigmoideana, que impediu a progressão do
aparelho. Foram colhidas biópsias que demonstraram
proctite actínica, sem identificação de malignidade. Foi
realizado enema opaco para análise do cólon proximal, que
demonstrou estreitamento da luz do sigmóide por inflamação.
Persistiu com sangramento nos dias
subseqüentes, sendo internado por sepse e anemia pelo
Serviço de Geriatria do referido hospital, com necessidade
de transfusões sangüíneas múltiplas. Foi feito
diagnóstico de pneumonia e sepse urinária. Nesta ocasião o
paciente iniciou com quadro de incontinência fecal, e o
exame proctológico identificou pequena ferida perineal
com saída de secreção purulenta. Hipotonia
esfincteriana foi evidenciada ao toque retal, com aparente dano
na porção anterior da musculatura esfincteriana externa.
Após o término da antibioticoterapia e
melhora do estado geral, o paciente foi submetido à colostomia
em alça do cólon transverso com anestesia local e sedação
e debridamento da ferida perineal. Durante o ato
operatório, observou-se extensa necrose da musculatura
do assoalho pélvico, esfíncteres anais, próstata e parede
anterior do reto (figura 1). Realizou-se debridamento
extenso destas estruturas. Apresentou evolução satisfatória,
sem queda do hematócrito. Iniciou oxigenoterapia
hiperbárica 48 horas após o debridamento. Em 2 semanas
houve melhora da ferida perineal e identificou-se prolapso
da boca distal da colostomia do transverso. Devido à
dificuldade no manuseio das placas da estomatoterapia, foi
submetido à correção do prolapso e transformação
da colostomia em alça para terminal. Apresentou boa
evolução pós-operatória e realizou tratamento
com oxigenoterapia hiperbárica para acelerar a
cicatrização da ferida perineal (figura 2).
Figura 1 - Aspecto operatório do debridamento: necrose perineal profunda. |
Figura 2 - Aspecto da ferida operatória após 20 sessões
de Oxigenoterapia Hiperbárica. |
DISCUSSÃO
A incidência da proctite actínica tem
aumentado com as maiores indicações da radioterapia para
o câncer pélvico. Os sintomas pélvicos ocorrem em
75 % dos casos após a radioterapia para o câncer de
próstata, com queixas de urgência evacuatória,
tenesmo, dor retal e sangramento 2. A proctite crônica
ocorre em 3 a 20% dos casos, geralmente
manifestando-se como sangramento retal
4,5. Tal sintoma pode variar desde pequenas quantidades (forma intermitente)
até perdas volumosas de sangue, com necessidade de
transfusões sangüíneas periódicas
1.
A radiação causa liberação de radicais
livres de oxigênio e causa lesão do DNA, RNA e da
parede celular. Afeta principalmente células com altas
taxas de mitose, como é o caso das células da mucosa
intestinal 1.
As lesões agudas caracterizam-se pela
presença de edema pálido da mucosa, sem
alterações submucosas, com espessamento e fibrose da
lâmina basal 1. No caso de lesões crônicas, há
fibrose do tecido conectivo e alterações vasculares,
com espessamento da camada íntima dos vasos submucosos. Isto resulta em uma isquemia
relativa, havendo formação de telangectasias pelos capilares
da mucosa, com maior propensão ao sangramento
1,7. Se a isquemia for mais severa, pode haver formação
de úlceras mucosas, perfuração ou fístulas. Após 1 a
2 anos há contração máxima da fibrose, levando à
exacerbação dos sintomas
1.
No caso relatado o sangramento foi o sintoma principal. Chama atenção a rápida ocorrência dos
sintomas após o termino da radioterapia.
Pode haver maior gravidade nas lesões actínicas em pacientes hipertensos, diabéticos, ou
com doença cerebrovascular, assim como naqueles com
cirurgias abdominais prévias, conforme mostram
alguns estudos 1. O dano tissular tende a ser mais
acentuado, e mais estruturas podem ser lesadas nestes
pacientes. Apesar de compensado clinicamente, o paciente
descrito apresentava hipertensão arterial sistêmica, o
que pode ter contribuído para o avançado grau da lesão
e necrose das múltiplas estruturas.
Além disso, sabe-se que tratamentos radioterápicos com dosagem abaixo de 45 Gy
raramente causam complicações actínicas nos órgãos pélvicos
1,4. Por outro lado, pacientes submetidos à irradiação
em torno de 75 Gy (dose máxima de radiação
prescrita para a pelve) apresentam complicações mais
severas em cerca de 60% dos casos 4. Tal fato,
possivelmente, explique a extensa necrose pelvi-perineal do caso
em discussão.
O diagnóstico da proctite é feito
por colonoscopia, já que geralmente o calibre do reto e
do sigmóide está reduzido
1,4,5. O sigmóide encontra-se comumente fixo, dificultando a passagem de
qualquer tipo de aparelhagem endoscópica, rígida ou flexível.
O exame permite o diagnóstico de lesões
mucosas, biópsias e a identificação de possíveis lesões
colônicas sincrônicas. O enema opaco deve ser realizado na
impossibilidade de passagem do colonoscópio. Pode
ser útil nos casos suspeitos de fístulas e em estenoses
do sigmóide e do reto para estudo do restante do cólon
1. A tomografia computadorizada e o PET-CT são
usados freqüentemente para o diagnóstico diferencial
com recidiva da doença primária
1.
A colonoscopia, no presente relato, não
pôde ser realizada na sua totalidade devido a estas
freqüentes alterações inflamatórias anteriormente
discutidas. O enema opaco identificou de forma evidente
estes achados.
As formas leves de proctite actínica são
tratadas com uso tópico de derivados do 5-ASA,
corticóides e formalina 1,4,5. Outras formas de tratamento
empregadas são a fulguração com plasma de argônio e
a cauterização bipolar
1,5.
A oxigenoterapia hiperbárica apresenta
bons resultados em casos selecionados 4. Geralmente
é indicada em casos de sangramento, com bons
resultados na remissão dos sintomas. No caso descrito, a
indicação do método foi para cicatrização mais rápida
e controle da infecção da extensa ferida perineal
resultante do debridamento.
O tratamento cirúrgico fica reservado para
situações de intratabilidade clínica, como fístulas
reto-vaginais, sangramento que não responde à
terapia endoscópica, ou em casos de necrose
1,5. Pode-se optar por ressecção do segmento acometido com ou
sem anastomose primária, utilizando desvios do
trânsito proximal quando necessário
1,3,5.
As necroses do reto descritas na literatura
são usualmente tratadas com enemas de corticóides e
desvio do trânsito proximal, com ou sem ressecção
6,7. Destes, a melhor opção é a colostomia em alça
do sigmóide, pelas menores taxas de complicações e
maior facilidade técnica de confecção
6. Entretanto, nos casos de fixação e inflamação do sigmóide, tal
opção não é factível. Neste caso pode-se optar por
ileostomia em alça ou colostomia em alça do transverso.
Estas foram as razões que justificaram o tipo de
colostomia empregada no caso descrito.
Com o avanço nas técnicas de
radioterapia pélvica deve haver diminuição da incidência de
complicações locais de natureza actínica. As técnicas
mais novas desta modalidade terapêutica apresentam
melhor distribuição da radiação por estudo
tomográfico tridimensional, causando menor dano às estruturas
adjacentes ao órgão-alvo
8.
Portanto, a prevenção parece ser a melhor
forma de tratamento de lesões actínicas em
órgãos pélvicos. Pacientes submetidos a altas doses de
irradiação, encontram-se em risco real de
desenvolvimento de lesões mais graves. É necessário um alto grau
de suspeição no diagnóstico de feridas perineais, e
exames proctológicos freqüentes devem ser realizados.
Abstract: Around 75% of the patients submitted to radiotherapy for prostate cancer will develop anorectal symptoms, such as fecal urgency, bleeding, rectal pain and tenesmus. Perineal necrosis is a very rare event in these cases. The purpose of this report is the description of a diffuse perineal necrosis due to radiotherapy for the treatment of prostate cancer. This is a report of a 77-year old male, submitted to radiotherapy with 70 Gy of pelvic radiation for prostate cancer treatment. He came to the outpatient practice after 4 months with anorectal complaints. Further investigation revealed severe radiation proctitis, with a perineal wound and external anal sphincter damage. The patient was submitted to a loop transverse colostomy with extended perineal debulking due to diffuse necrosis of pelvic structures, such as prostate, pelvic floor muscles and anterior rectal wall. Hyperbaric oxygen therapy was started for the extended perineal wound, with success. Prevention is the key to avoid radiation damage in pelvic organs. Doses above 70 Gy are associated with high risk of associated pelvic complications. The treatment of diffuse perineal necrosis must be prompt and aggressive. Fecal diversion is mandatory in cases with extended sphincter destruction.
Key words: Necrosis, Perineum, Radiotherapy, Neoplasms, Prostate.
Referências
1. Johnston, MJ; Robertson, GM; Frizelle, FA. Management
of Late Complications of Pelvic Radiation in the rectum
and Anus. Dis Colon Rectum 2003; 46, (2): p 247-256
2. Kushwaha, RS; Hayne, D; Vaizey, CJ et al.
Physiologic Changes of the Anorectum After Pelvic radiotherapy for
the Treatment of Prostate and Bladder Cancer. Dis Colon
Rectum 2004; 46, (9): p 1182-1188.
3. Lucarotti, ME; Mountford, RA; Bartolo, DCC.
Surgical Management of Intestinal Radiation Injury. Dis Colon
Rectum 1991; 34, (10): p 865-869.
4. Bem, MD; Bem, S; Singh, A. Use of Hyperbaric
Oxygen Chamber in the Management of
Radiation-Related Complications of the Anorectal Region. Dis Colon
Rectum 2003; 43, (10): p 1435-1438.
5. Bonis, PAL; Nostrant, TT. Diagnosis and Treatment
of Chronic radiation Proctitis. 2006. Available from: URL:
http://www.uptodate.com.
6. Quan, SHQ; O´Kelly, PJ. Rectal Necrosis Following
external Radiation Therapy for Carcinoma of the Prostate: Report of
a Case. Dis Colon Rectum 1975;18, (1): p 64-66.
7. Tomori, H; Yasuda, T; Shiraishi, M et al.
radiation-Associated Ischemic Coloproctitis: Report of Two Cases. Surgery
Today 1999: p 1088-1092.
8. Taussky, D; Schneider, U; Rousson, V; Pescia, R.
Toxicity Correlated to Dose-Volume Histograms of the Rectum
in Radiotherapy of the Prostate. American Journal of
Clinical Oncology 2003; 26, (5): p 144-149.
Endereço para correspondência:
Paulo Gustavo Kotze
Rua Jaime Balão, 975 - ap. 106 - Curitiba - PR
CEP: 80040-340
FAX: 41 3253-7838
E-mail: pgkotze@hotmail.com
Recebido em 13/09/2007
Aceito para publicação em 08/10/2007
Trabalho realizado no Serviço de Coloproctologia do Hospital Universitário Cajuru - PUCPR.