GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR


A BIOLOGIA MOLECULAR DAS DOENÇAS INFLAMATÓRIAS INTESTINAIS

Molecular Biology of Inflammatory Bowel Diseases

Mauro Pinho1

1 Laboratório de Biologia Molecular e Disciplina de Clínica Cirúrgica do Departamento de Medicina da UNIVILLE, Joinville, SC e Departamento de Cirurgia do Hospital Municipal São José, Joinville, SC.


PINHO M. A Biologia Molecular das Doenças Inflamatórias Intestinais. Rev bras Coloproct, 2008;28(1): 119-123.

RESUMO: Com elevada prevalência, a Doença de Crohn e a retocolite ulcerativa apresentam mecanismos fisiopatológicos os quais permanecem como um grande desafio apesar de muitas décadas de pesados investimentos em pesquisa. Entretanto, o desenvolvimento de técnicas de análise da biologia molecular tem proporcionado a identificação de um grande número de moléculas relacionadas a estas doenças as quais poderão representar um importante auxílio na compreensão de seus complexos aspectos. Existem fortes evidências hoje, de que as doenças inflamatórias intestinais (DII) são o resultado de um desequilíbrio entre a flora bacteriana comensal e o aparato imunológico da mucosa intestinal. Um dos achados mais consistentes neste sentido refere-se à elevada incidencia de mutações do gene NOD2/CARD15 em pacientes portadores de Doença de Crohn, além da comprovação de sua correlação fenotípica com esta doença. Além desta proteína, diversas outras moléculas apresentam-se alteradas nas DIIs, envolvendo diversos aspectos como imunidade inata, resposta inflamatória e função de barreira mucosa. A observação das variações de expressão destas moléculas correlacionadas à evolução clínica e respostas terapêuticas irá contribuir para que possamos em um futuro obter resposta a históricos questionamentos sobre estas complexas doenças.

Descritores: Doença de Crohn, retocolite ulcerativa, biologia molecular.

Apesar de sua elevada prevalência, a compreensão dos mecanismos fisiopatológicos da doença de Crohn e da retocolite ulcerativa permanece como um grande desafio apesar de muitas décadas de pesados investimentos em pesquisa. Estudos clínicos em grande escala, assim como análises em ciências básicas mostraram-se insuficientes para superar a complexidade destas doenças as quais, apesar de apresentar uma profunda similaridade entre si, possuem uma extensa variedade no que diz respeito à incidência, sítio anatômico de envolvimento, formas de apresentação, evolução e resposta terapêutica.
   O grande avanço tecnológico, ocorrido ao longo dos últimos anos que permitiu o desenvolvimento de técnicas de análise da biologia molecular dos tecidos, trouxe também uma renovação de esperanças quanto à possibilidade de obtenção de respostas na área das doenças inflamatórias intestinais. De fato, um grande número de estudos realizados nos principais centros de pesquisa internacionais dedicam-se desde então, a compreender os vários aspectos envolvidos nestas doenças. Embora estejamos ainda bastante distantes de alcançar estes objetivos, começam a ser definidas algumas bases, sobre as quais poderão ser erguidas as linhas de pesquisa necessárias para proporcionar uma visão futura deste complexo mosaico.
   O objetivo deste artigo será, apresentar uma breve revisão sobre o estado atual dos conceitos e resultados gerados até o momento pela análise biomolecular dos mecanismos fisiopatológicos responsáveis pela ocorrência das doenças inflamatória intestinais.

Intestinos e bactérias: um equilíbrio delicado
Embora o tubo digestivo inteiro seja amplamente colonizado por bactérias, existe entre seus diversos segmentos uma grande variedade na concentração destas. A presença de secreções ácidas e biliares no estômago e intestino delgado proximal, e a presença de um trânsito mais acelerado contribuem para uma redução da quantidade de bactérias nestes segmentos. A colonização bacteriana aumenta de forma exponencial no intestino delgado dista,l devido à ausência das referidas secreções e pelo retardo de trânsito pela ação da válvula ileocecal. No cólon iremos observar um aumento acentuado da flora bacteriana, na qual coexistem cerca de 400-500 espécies em um volume estimado entre 1010 e 1012 bactérias por grama de conteúdo fecal ou 60% do total de fezes existentes no intestino grosso.
   Uma única camada de células epiteliais separa todo este extenso volume de bactérias do maior aparato imunológico do nosso corpo, formado por uma grande massa de tecido linfático genericamente descrita como GALT (gut associated lymphoid tissue), a qual inclui as placas de Peyer, folículos linfóides isolados e linfonodos mesentéricos.
   Sendo assim, é realmente notável que a coexistência entre estes dois ambientes de natureza tão antagônica, seja capaz de preservar na maioria das pessoas um equilíbrio no qual este extenso sistema imunológico possa tolerar a presença do grande volume de bactérias comensais, representando um importante elemento na fisiologia intestinal.
   Este equilíbrio, mantido através das imunidades inatas ou adquiridas, impede a ocorrência de uma resposta inflamatória mediada pela liberação de diversas proteínas genéricamente classificadas como citocinas, cuja produção é estimulada a partir da presença de microrganismos ou outros antígenos com diversos objetivos como: ativação dos diversos tipos de leucócitos, apoptose, síntese hepática de proteínas de fase aguda, febre, etc. Embora algumas destas citocinas apresentem nomes específicos como fator de necrose tumoral (TNF), interferon (IFN) ou fator-b de transformação do crescimento (TGF-b), a grande maioria é também denominada como interleucinas (IL), sendo então numeradas sucessivamente a partir de suas descobertas.

Doenças inflamatórias intestinais: o desequilíbrio
Sabe-se que a ocorrência de uma doença inflamatória crônica representa a perda do equilíbrio acima citado, constatando-se uma elevação local dos níveis de diversas citocinas. Na Doença de Crohn, por exemplo, existe uma liberação de TNF-a, IFN- a, IL-12 e IL-17, enquanto que na retocolite ulcerativa ocorre um aumento de IL-13, entre outras.
   Três hipóteses vêm sendo examinadas como possíveis origens deste desequilíbrio imunológico, incluindo distúrbios da flora bacteriana, fatores imunológicos e defeitos na barreira mucosa.

Distúrbios da flora bacteriana
Existem múltiplas evidências de que as bactérias desempenham um papel chave no surgimento das doenças inflamatórias intestinais crônicas. Estudos experimentais demonstram a impossibilidade do desenvolvimento desta inflamação na ausência de bactérias, levando à ampla aceitação atual do aforisma "sem bactéria, não há colite".
   Baseados nestes achados há muitos anos tenta-se identificar um possível agente causal das doenças inflamatórias intestinais. Várias bactérias e vírus foram propostos como agentes etiológicos, incluindo o Mycobacterium paratuberculosis, Listeria monocytogenes, Yersinia enterocolitica e a Escherichia coli, mas nenhuma comprovação consistente foi demonstrada. Na verdade, as evidências atuais sugerem que a atividade inflamatória crônica intestinal parece, paradoxalmente, ser desencadeada a partir de bactérias pertencentes à flora comensal normal, as quais assumem, em condições ainda desconhecidas, um papel patológico capaz de ativar o aparato imunológico local.

Desregulação imunológica da mucosa e o papel da genética
O equilíbrio imunológico baseia-se em grande parte na existência de um mecanismo denominado como imunidade inata. Através deste, células de defesa como macrófagos e células dendríticas, existentes na mucosa intestinal, são capazes de detectar a presença de moléculas associadas a microrganismos. Estas moléculas, genericamente descritas como PAMPs (pathogen-associated molecular patterns), são de natureza distintas entre si como lipopolissacarídeos, lipoproteínas, peptoglucanos ou flagelinas.
   Para que este reconhecimento ocorra, as células de defesa possuem em sua superfície um grande número de "sensores" ou receptores, os quais podem ser classificados em duas grandes famílias denominadas, respectivamente, como TLR (toll-like receptor) e NOD (Nucleotide-binding oligomerization domain). Uma vez ativados pelas moléculas bacterianas, os receptores que compõem estas famílias desencadeiam seqüências de reações em cadeia, que irão levar a uma resposta capaz de manter o equilíbrio bactéria x epitélio na mucosa intestinal. Dentre os receptores da família NOD, destacam-se as proteínas NOD-1 e NOD-2 as quais são capazes de detectar componentes de bactérias Gram positivas e negativas.
   Além desta importante função, estas proteínas desempenham hoje um papel fundamental nos estudos sobre doenças inflamatórias intestinais, uma vez que suas alterações têm sido consistentemente relacionadas à fisiopatologia destas doenças não apenas na sua incidência, mas também influindo em fatores importantes como suas características e evolução clínica, como analisaremos a seguir.

Proteína NOD2 (CARD 15): o fator genético
Em 2001 foi descrita uma associação entre mutações no gene CARD15, o qual codifica a proteína NOD-2, com a ocorrência de doenças inflamatórias intestinais, mais especificamente a Doença de Crohn. Desde então, um grande número de estudos tem confirmado de forma consistente esta relação, a qual pode ser melhor demonstrada da seguinte forma:
- Estima-se que 20-30% dos portadores de Doença de Crohn apresentem alguma mutação no gene NOD-2/CARD15. Riis e cols encontraram uma incidência de 23.9% de mutações deste gene entre portadores desta doença, enquanto a incidência observada entre pacientes com retocolite ulcerativa e indivíduos saudáveis foi de 9,6% e 14,4%, respectivamente, sem diferença significativa entre estes dois últimos grupos;
- Segundo uma metanálise publicada por Economou e cols envolvendo 42 estudos, indivíduos com mutação em apenas um alelo do gene NOD-2/CARD15 (heterozigóticos) apresentam um risco 2.3 vezes maior de apresentar a Doença de Crohn, sendo que este risco se amplia para 17.1 vezes (10-27) em portadores de mutações nos dois alelos (homozigóticos). Outros autores relatam este risco como sendo ainda maior, estimando-o entre 20 e 40%;
- Radford-Smith e Pandeya publicaram outra metanálise incluindo 12 estudos que buscaram correlacionar a presença de mutações NOD-2/CARD15 com aspectos relacionados à localização e o comportamento da Doença de Crohn, e confirmaram uma associação significativa com a forma ileal ou ileocólica e a presença de lesões estenosantes, além de uma possível precocidade na idade de surgimento da doença.
   Além de comprovar esta importante relação com fatores genéticos, estes achados demonstram ainda, a possível origem do desequilíbrio bactérias/hospedeiro observado nas doenças inflamatórias intestinais, uma vez que a proteína NOD-2 tem por função a ativação de uma resposta inflamatória moderada a partir do reconhecimento de um produto bacteriano específico, denominado como MDP. A partir destes achados, suspeita-se, entre outras hipóteses, que esta deficiência na resposta imunológica inata facilitaria uma infecção da lâmina própria, desencadeando um quadro inflamatório crônico de maiores proporções.

Proteína NOD1/CARD4
Além da proteína NOD2/CARD15, outra proteína da família NOD tem sido associada à fisiopatologia das doenças inflamatórias intestinais, embora existindo ainda poucas evidências a respeito. Trata-se da proteína NOD1/CARD4, expressa no intestino delgado e cólon, a qual também exerce papel no reconhecimento no epitélio de agentes bacterianos como Shigella flexeneri e E.coli invasiva. Mc Govern e cols testaram a associação entre mutações deste gene em uma coorte de portadores de doenças inflamatórias intestinais e controles e comprovaram, de forma semelhante ao NOD2/CARD15, uma relação significativa nos casos de Doença de Crohn, mas não em casos de retocolite ulcerativa. De qualquer forma, trata-se de outra evidência no sentido de que estas doenças sejam o resultado da alteração de reatividade a alguns antígenos presentes na mucosa intestinal.

Família TLR
Além dos receptores NOD, outra família importante de receptores de membrana em células de defesa no epitélio intestinal pertence ao grupo denominado como TLR (Toll-like receptor). Estes receptores reconhecem os lipopolisacarídeos produzidos por bactérias, em sua grande maioria comensais gram negativas, sendo possivelmente responsáveis na diferenciação entre estas e as bactérias patogênicas. Onze tipos diferentes de TLR já foram identificados, e diversos estudos têm demonstrado uma variação na expressão destes entre indivíduos normais e pacientes portadores de Doença de Crohn e retocolite ulcerativa.

Outros genes
Embora os segmentos gênicos referentes à expressão das proteínas NOD tenham recebido uma maior atenção devido à consistência e reprodutibilidade dos resultados, diversos outros segmentos cromossomiais têm sido citados como possíveis codificantes de proteínas relacionadas às doenças inflamatórias intestinais. Estes segmentos IBDs (inflammatory bowel disease) , conforme demonstrados na tabela 1, têm sido bastante estudados com o objetivo não apenas de identificar possíveis componentes hereditários destas doenças, mas também visando a compreensão dos mecanismos moleculares envolvidos em sua etiopatogenia e mesmo na resposta aos diferentes esquemas terapêuticos utilizados em seu tratamento.

Defeitos na barreira mucosa
Além das alterações ocorridas na flora bacteriana e na resposta imune à presença de bactérias, o comprometimento da barreira mucosa é considerado como um terceiro aspecto capaz de contribuir para a fisiopatologia das doenças inflamatórias intestinais.
   Responsável pela mediação entre as bactérias do lumen intestinal e o sistema linfóide, a integridade da camada epitelial tem por função atuar seletivamente para limitar a penetração de antígenos e permitir a passagem de líquidos, nutrientes e alguns microrganismos. Os estudos de biologia molecular demonstram que um grande número de proteínas são necessárias para que esta função de barreira ocorra de forma adequada. Dentre estas, poderíamos destacar como exemplos a proteína transportadora de cátions orgânicos (OCTN) e a DGL5, ambas expressas pelo cromossomo 5 (IBD5, na tabela acima), cujas alterações estão associadas à Doença de Crohn. Outras proteínas de grande relevância na integridade da barreira epitelial são as defensinas, as quais apresentam ação antibacteriana e cuja expressão alterada tem sido demonstrada em pacientes portadores de doenças inflamatórias intestinais, podendo contribuir para o desequilíbrio dos mecanismos de defesa, possibilitando uma intensificação da invasão bacteriana e a conseqüente inflamação crônica da mucosa.
   Assim sendo, observamos que a aplicação de técnicas de biologia molecular ao estudos das doenças inflamatórias intestinais tem possibilitado a identificação de um grande número de moléculas envolvidas em diferentes possíveis mecanismos fisiopatológicos destas doenças. A observação das variações de expressão destas moléculas correlacionadas à evolução clínica e respostas terapêuticas irá contribuir para que possamos em um futuro obter resposta a históricos questionamentos sobre estas complexas doenças.

ABSTRACT: Despite its high prevalence and many years of basic and clinical research, pathophysiology of Crohn`s disease and ulcerative colitis remains a great challenge. The recent advances in molecular biology techniques have provided identification of a great number of molecules related to these diseases that may help in a near future to understand its still obscure aspects. Many evidences have recently demonstrated that inflammatory bowel diseases (IBD) result from an imbalance between bowel commensal bacterial flora and the immunological mucosal apparatus. The very consistent finding that mutations in NOD2/CARD15 gene occur in a high percentage of Crohn`s disease patients and its phenotype correlation have boosted further research to identify other IBD-related molecules. Indeed, many other variations in gene expression have been demonstrated to be related to pathophysiology of IBD including different aspects such as inate immunity, inflammatory response and mucosal barrier disfunction. The observation of the correlation between these gene expression variation, disease behaviour and response to therapeutics may contribute in a near future to understand most questions regarding these complex diseases.

Key words: Crohn`s disease, Ulcerative colitis, molecular biology.

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Endereço para correspondência:
MAURO PINHO
Rua Palmares 380
Atiradores, Joinville, SC
89203-230
E-mail: mauro.pinho@terra.com.br

Trabalho realizado no laboratório de Biologia Molecular - Disciplina de Clínica Cirúrgica do Departamento de Medicina da UNIVILLE - Joinvile - SC - Brasil.