RELATO DE CASOS
LINFOMA ILEAL PRIMÁRIO COMO UMA CAUSA DE INTUSSUSCEPÇÃO ILEOCECAL RECORRENTE
Primary Ileal Lymphoma as a Cause of Recurrent Ileocecal
Fábio César Miranda Torricelli1; Roberto Iglesias Lopes2; André Roncon Dias3; Giovanni Scala Marchini4; Wanderley Wesley Bonafé5; Juliana Magalhães Lopes6; Marcelo Rodrigues Borba7
1 Médico Residente do Departamento de Cirurgia Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP); 2. Médico Residente do Departamento de Urologia do HC-FMUSP; 3. Médico Residente do Departamento de Cirurgia do Aparelho Digestório do HC-FMUSP; 4. Médico Residente do Departamento de Cirurgia Geral do HC-FMUSP; 5. Interno do 6° ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 6. Médica Residente do Departamento de Coloproctologia do Hospital Heliopólis, São Paulo; 7. Médico Assistente do Departamento de Cirurgia Geral do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo - SP.
TORRICELLI FCM; LOPES RI; DIAS AR; MARCHINI GS; BONAFÉ WW; LOPES JM; BORBA MR. Linfoma Ileal Primário como uma Causa de Intussuscepção Ileocecal Recorrente. Rev bras Coloproct, 2008;28(2): 246-250.
RESUMO: Introdução: A intussuscepção ocorre quando um segmento proximal do intestino invagina para dentro do lúmen do segmento distal adjacente. Esta patologia é relativamente comum em crianças, sendo geralmente idiopática, diferentemente do que é evidenciado em adolescentes e adultos, os quais apresentam uma causa orgânica comprovada na maioria dos casos. O linfoma intestinal como etiologia desta patologia é extremamente raro. Relato de Caso: Um paciente de 16 anos, masculino, referindo dor abdominal em quadrante inferior direito há 36 horas associada a vômitos e fezes com sangue vivo compareceu em nosso serviço. O exame físico se apresentava dentro da normalidade exceto por uma massa palpável no quadrante inferior direito. A ultra-sonografia abdominal revelou intussuscepção ileocecal. A colonoscopia demonstrou uma massa protuberante proveniente do orifício da válvula ileocecal que foi reduzida, tendo o paciente um alívio completo dos sintomas. Três semanas após, o paciente retornou ao nosso hospital com recorrência dos sintomas. Uma laparotomia exploradora foi realizada evidenciando uma massa polipóide no íleo terminal com intussuscepção para dentro do ceco. Uma colectomia direita ampliada foi realizada. Após exame patológico da peça e estadiamento tumoral, um linfoma de Burkitt primário foi diagnosticado. A recuperação pós-operatória não apresentou intercorrências e o paciente foi encaminhado para quimioterapia adjuvante.
Descritores: Linfoma, Intussuscepção, íleo, Imuno-histoquímica, Neoplasias.
INTRODUÇÃO
A intussuscepção ocorre quando um
segmento proximal do intestino invagina para dentro do lúmen
do segmento distal adjacente. Congestão venosa e
edema da parede intestinal podem causar obstrução
intestinal, e infarto e perfuração intestinal podem ser
complicações subseqüentes. Se a intussuscepção progredir e
não for adequadamente tratada pode tornar-se fatal. A
causa desta patologia pode ser idiopática ou resultante
de uma lesão orgânica pré-existente, como divertículos
de Meckel, pólipos, hematomas, cistos, neurofibromas
ou doenças malignas (1). Esta patologia é relativamente
comum em crianças, sendo geralmente idiopática,
diferentemente do que é evidenciado em adolescentes e
adultos, que apresentam uma causa orgânica
comprovada na maioria dos casos. A intussuscepção é rara em
adultos, e representa 5% de todas
intussuscepções(1).
Em adolescentes, a intussuscepção possui
uma apresentação similar a crianças, mas
freqüentemente tem uma patologia de base, como observado em
adultos1. A intussuscepção é comumente
negligenciada, apresentando um diagnostico pré-operatório correto
em 32% dos casos (2).
Embora uma origem maligna de intussuscepção possa ser descoberta em metade
dos casos de adultos, o linfoma intestinal é uma
causa incomum de intussuscepção em adolescentes e
adultos (2).
RELATO DE CASO
Paciente 16 anos, masculino, previamente hígido procurou nosso serviço com história de
dor súbita e intensa em quadrante inferior do abdome
há 36 horas, associada a vômitos e fezes com
sangue vivo. Negava febre ou perda de peso, nunca
havia sido submetido a procedimento cirúrgico, e não
apresentava história familiar de doença inflamatória
intestinal ou neoplasia intestinal maligna. Ao
exame físico se apresentava levemente desidratado ,
afebril e não possuía linfonodos palpáveis. O abdome
era inocente, exceto por uma massa palpável
no quadrante inferior direito. O exame proctológico
revelava fezes com sangue.
O hemograma era normal e a radiografia simples de abdome demonstrou dilatação do intestino
delgado sugestiva de obstrução parcial. A
ultra-sonografia abdominal revelou espessamento focal da parede
do ceco com uma estrutura tubular em seu interior.
A colonoscopia demonstrou uma massa protuberante
proveniente do orifício da válvula ileocecal (Figura 1).
O segmento intussusceptado foi reduzido, e o
paciente apresentou alívio completo dos sintomas, sendo
então encaminhado para acompanhamento e
investigação ambulatorial.
Figura 1 - Colonoscopia revelando uma massa protuberante proveniente do orifício da válvula ileocecal. |
Figura 2 - Exame patológico revelando uma massa polipóide de 4,5 cm oriunda do íleo distal. |
Figura 3 - Histologia demonstrando numerosos macrófagos benignos com padrão de "céu estrelado". |
DISCUSSÃO
A intussuscepção em adolescentes é
patologia rara, e a maioria das informações é proveniente
de relatos de caso. Portanto, o manejo de
intussuscepção em adolescentes deve ser similar ao de adultos.
Enquanto em lactentes e crianças jovens 95%
das intussuscepções são idiopáticas, em adolescentes
e adultos uma lesão orgânica é geralmente
identificada em cerca de 80% dos casos. Quarenta e seis por
cento dos pacientes adultos têm uma doença
maligna subjacente. Em adultos, a causa mais comum
de intussuscepção entérica benigna são as aderências
pós-operatórias, enquanto lesões malignas
causando intussuscepção consistem essencialmente de
doença metastática (2,3).
A ocorrência de linfomas primários em
intestino delgado é rara e representam menos de 2% de
todas as neoplasias intestinais e 10-20% das
neoplasias do intestino delgado. O íleo é o local mais comum,
representando 50% dos linfomas do intestino delgado.
A imunossupressão relacionada ao HIV predispõe
ao desenvolvimento de linfomas não-Hodgkin (LNH)
e deve ser excluída em todos os casos
(4).
Linfomas são o terceiro câncer mais
comum em crianças e adolescentes nos Estados
Unidos, correspondendo por aproximadamente 13% dos
novos casos diagnosticados nesta faixa etária. LNH
representam 60% dos linfomas nesta população. O
linfoma de Burkitt é um linfoma de células B germinativo
altamente agressivo, freqüentemente apresentando
sítios extranodais. Translocação do gene myc no
cromossomo 8q24 é uma característica genética constante e o
vírus Epstein-Barr (EBV) é encontrado em uma
proporção variável de casos. Três variantes clínicas são
reconhecidas: endêmica, esporádica e associada
à imunodeficiência. No linfoma de Burkitt esporádico,
a freqüência de associação com EBV é inferior a
30%. Casos esporádicos de linfoma de Burkitt
tipicamente envolvem o abdome ou a cabeça e o pescoço.
Tumores abdominais freqüentemente se apresentam
com intussuscepção, como em nosso caso
(5).
Os sintomas predominantes da
intussuscepção são aqueles da obstrução intestinal. O paciente se
apresenta com náuseas, vômitos e dor abdominal.
Melena ou fezes em geléia de morango estão presentes em
apenas 29% dos casos. Febre, perda de peso,
constipação, diarréia ou massa abdominal palpável são raras
(2,3).
Grupta et al (6) recentemente, em 2007,
publicaram uma casuística de 189 pacientes pediátricos
com linfoma de Burkitt abdominal, tendo 33 (17,5%)
destes se apresentado com intussuscepção. A idade média
ao diagnóstico foi 10 (3 a 19) anos, e a maioria dos
pacientes se apresentou dor abdominal (88%), náuseas
e/ou vômitos (42%).
A radiografia simples de abdome não é útil
para o diagnóstico de intussuscepção. Na maioria
dos lactentes e crianças jovens a redução da
intussuscepção pode ser tentada com enema. Entretanto, em
adultos, a redução não é freqüentemente sugerida como o
tratamento da intussuscepção de etiologia incerta,
devido ao alto risco de malignidade como causa da intussuscepção, e também devido a possibilidade
de disseminação tumoral durante a manipulação
(7,8).
Exames mais acurados para o diagnóstico
são a tomografia computadorizada e a ultra-sonografia,
com uma sensibilidade de até 98,5% dos casos
(2,3). A ultra-sonografia é fácil de realizar, mais reprodutível e
menos invasiva do que outros métodos. Os achados
clássicos de intussuscepção incluem os sinais em
"alvo" ou "donut" na visão transversa e o sinal do
"pseudo-rim" na visão longitudinal
(9,10). A maior limitação
da ultra-sonografia para a avaliação de abdome agudo é
a presença de ar no intestino, que leva a uma pobre
transmissão e dificulta a interpretação da imagem.
A tomografia computadorizada exibe achados
semelhantes à ultra-sonografia, mas é mais cara e menos
disponível em situações de emergência
(11,12). A colonoscopia é também uma ferramenta útil para a avaliação
da intussuscepção e, como em nosso caso, pode ser
usada como abordagem inicial na obstrução intestinal,
tentando evitar uma cirurgia de emergência com o
paciente em más condições clínicas e permitindo uma
melhor investigação da causa da intussuscepção.
Brichon et al (13) publicaram uma série de
casos com 8 pacientes pediátricos com linfoma de
Burkitt que se apresentaram com intussuscepção, e
concluíram que a ultra-sonografia é o exame mais
eficiente para diagnóstico de intussuscepção intestinal e
algumas vezes da lesão primária. Neste trabalho, os
autores ainda afirmam que se o linfoma não for
visualizado pela ultra-sonografia, a laparotomia é necessária
para o diagnóstico e eventual ressecção.
O tratamento padrão da intussuscepção em
adultos não é um consenso universal. A intussuscepção
em adolescentes e adultos pode ser tratada
cirurgicamente de acordo com a condição subjacente mais provável
(maligna ou benigna). Pacientes adolescentes e adultos
com lesões entéricas que não tenham tido uma
laparotomia prévia devem ser submetidos à ressecção sem
redução, por causa da alta incidência de malignidade associada
(2). Isto pode ser realizado utilizando técnicas
laparoscópicas, com os benefícios de um bom resultado cosmético,
rápida recuperação e menos complicações
(14). Em nosso caso, nós preferimos uma laparotomia devido à possibilidade
de compressão mesentérica vascular.
A cirurgia tem um papel limitado no tratamento, e é indicada em casos onde a ressecção
completa pode ser realizada ou complicações do tumor
estão presentes, como obstrução intestinal
15. A quimioterapia varia de acordo com estágio da doença. Em estágio
II R, como em nosso caso, as taxas de sobrevida
alcançam de 85 a 95% em 5 anos5.
Abbasolu et al16 publicaram sua
experiência com 40 casos de linfoma de Burkitt abdominal
em pacientes entre 3 e 12 anos seguidos por mais de
10 anos. Em 10 casos o procedimento cirúrgico foi o
tratamento de escolha, todos devidos a abdome
agudos (5 obstruções intestinais, 3 intussuscepções, uma
perfuração e uma apendicite aguda), enquanto os
demais pacientes foram encaminhados para tratamento
clínico. Os autores concluíram que a cirurgia deve
ser reservada apenas para pacientes com doença
localizada, devendo os pacientes com doença extensa
intra-abdominal terem seus procedimentos limitados
à biópsia. Segundo os autores todos devem ser
submetidos à quimioterapia.
ABSTRACT: Introduction: Intussusception occurs when a proximal segment of bowel telescopes into the lumen of the adjacent distal segment. It is common in children being usually idiophatic, in contrast to adolescents and adults, who have a demonstrable etiology in most cases. Intestinal lymphoma is an unusual cause of intussusception in adolescents and adults. Case Report: A 16 year-old male presented with right lower quadrant abdominal pain lasting for 36 hours, with vomiting and bloody stool. Physical examination was unremarkable except for a palpable mass at the right lower quadrant. Abdominal sonography revealed ileocecal intussusception. Colonoscopy showed a protruding mass from the orifice of ileocecal valve which was reduced, and the patient had full withdrawal of symptoms. Three weeks later, the patient came back to our hospital with recurrent symptoms. Laparotomy was performed and a polypoid mass was noted at the terminal ileum with intussusception into the cecum. A right hemicolectomy was performed. After pathologic examination and tumor staging, a primary Burkitt lymphoma of the distal ileum was diagnosed. Postoperative convalescence was uneventful and the patient was referred to adjuvant chemotherapy.
Key words: Lymphoma, Intussusception, Ileum, Immunohistochemistry, Neoplasms.
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Endereço para correspondência:
Roberto Iglesias Lopes
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Recebido em 20/11/2007
Aceito para publicação em 27/12/2007
Trabalho realizado no Departamento de Cirurgia Geral do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo - SP.